Dimensão religiosa na luta pela terra e por direitos. Por Gilvander Moreira[1]

No Brasil, é impossível compreender a luta pela terra e por direitos sem a compreensão do fenômeno religioso manifestado pelos sujeitos da luta pela terra e por direitos. O fenômeno religioso aparece explicitamente nos discursos dos sujeitos que fizeram e continuam protagonizando a luta pela terra e por direitos. Podemos citar alguns exemplos como amostra. Na marcha do MST[2] de Goiânia a Brasília, dia 7 de maio de 2005, alguns camponeses devotamente liam um salmo na Bíblia. Perguntamos: “A Bíblia precisa estar na marcha?” Obtivemos como resposta: “Sem dúvida, pois Deus caminha conosco. Aqui descobrimos que somos Povo de Deus em busca de terra, pão e liberdade. Deus está conosco. Infeliz quem tenta impedir nosso projeto que é libertar a mãe terra!”, respondeu-nos um camponês idoso na Marcha.

Agente de pastoral aguerrida na luta pela terra, a irmã Geraldinha, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ao ser entrevistada, volta e meia, revela a fé no Deus da vida que a move na luta em defesa dos empobrecidos:

Com base na Bíblialevamos o povo a descobrir que a terra pertence a Deus e, portanto, a todos” (Irmã Geraldinha, dia 09/6/2016). Ozorino Pires, 71 anos, camponês atualmente assentado em Salto da Divisa, MG, no Assentamento Dom Luciano Mendes, dizia evocando que a motivação para estar na luta pela terra está na fé em Deus: “A Escritura Sagrada diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem porteira para todo mundo viver dela. Pelo que eu sei, Deus quando fez a terra não passou escritura para ninguém, não. Somos filhos da terra e filhos de Deus”.

Assim, por uma perspectiva de fé que vem da experiência dos povos da Bíblia que lutavam por terra, justiça e paz, se questiona a propriedade privada capitalista como se fosse algo natural.

Na luta pela terra e por direitos, é imprescindível a fé das camponesas, dos camponeses e da classe trabalhadora na cidade. O camponês Olivério de Carvalho, do Assentamento Primeiro do Sul, em Campo do Meio, no sul de Minas Gerais, relata:

No início da nossa luta aqui, a gente ia para a cidade fazer panfletagem. Algumas pessoas pegavam um porrete e corriam atrás da gente dizendo que a gente estava roubando terra. Muita gente não entende. Deus criou a terra para todos, não colocou cerca e nem porteira. A luta pela terra não começou hoje. Começou com o povo da Bíblia, bem antes de Jesus Cristo, lá no Egito, com Moisés, Miriam e as parteiras, que, com muita luta, reuniram o povo e atravessou o Mar Vermelho. Quando a polícia do faraó quis impedir a libertação do povo, o mar fechou e não sobrou nenhum policial. No deserto, durante o dia, uma nuvem protegia o povo do calor e à noite uma coluna de fogo aquecia o povo e guiava todos. Depois que Moisés morreu, Josué passou a guiar o povo no deserto ruma à terra prometida. Na Bíblia está escrito que Deus enviou o povo para uma terra onde manava leite e mel. Logo, essa terra nossa aqui nesse latifúndio da ex-usina Ariadnópolis é a terra prometida. Não é fácil a luta pela terra, mas Deus está conosco. Quem poderá nos vencer, se Deus está do nosso lado?”

Obed Vieira de Jesus, camponesa assentada no Assentamento Nova Conquista II no latifúndio da ex-usina Ariadnópolis, afirmou:

Com fé em Deus e no MST, que somos nós povo do campo, nós não vamos mais ser despejados”. Getúlio Lopes do Nascimento, 61 anos, Sem Terra, atualmente assentado no Assentamento Dom Luciano, recorda: “Há muito que procuro um lugarzinho para a gente ficar sossegado, sem ser empurrado ou pisado, até Deus mandar chamar. A melhor alternativa é o caminho que nós estamos seguindo, primeiro, com Deus; depois, com o MST”. 

Feliz pela conquista do primeiro assentamento no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, no momento da oficialização do Assentamento Dom Luciano Mendes, Irmã Geraldinha exclama: 

A ‘reforma agrária’ chegando a Salto da Divisa está chegando a libertação dos filhos de Deus, dos pobres dessa terra.  Graças a Deus, estou viva aqui, pois foram tantas ameaças de morte”.

Não apenas na luta pela terra aparece a dimensão religiosa das pessoas como forte fator de mobilização e de envolvimento com a luta, mas na luta por todos os direitos fundamentais, no meio do povo, é marcante a dimensão de fé das pessoas. Ignorar a dimensão de fé das pessoas nas lutas sociais é uma burrice sem tamanho. No Brasil, a dimensão religiosa das pessoas tem sido uma questão política muito séria. Todas as pessoas envolvidas em lutas por direitos sociais e ambientais precisam estudar, compreender e lidar de uma forma respeitosa com a dimensão de fé das pessoas. O diálogo é o caminho e jamais ignorar ou menosprezar a dimensão de fé das pessoas. Nesse sentido, sugiro a leitura do livro “Teologias da Libertação para nossos dias”, de Marcelo Barros, Ed. Vozes, 2019.

Necessário se faz estudarsociologia da religião a partir da perspectiva marxista para lançarmos luzes teóricas sobre o peso e a influência da religião na consciência e na ação prática da classe trabalhadora e do campesinato, a opressão nas diversas religiões e especificamente na imensa variedade de igrejas cristãs, o enorme poder das igrejas eletrônicas (neo)pentecostais na vida das/os trabalhadoras/es na cidade e dos camponeses no campo, a corrosão que movimentos religiosos espiritualizantes, moralistas e intimistas das igrejas promovem diariamente nas relações sociais.

O que é ou o que deve ser Religião? Segundo a etimologia da palavra, o termo ‘religião’ vem do latim re-ligarere-legerere-eligere. Assim, segundo a Teologia da Libertação, para quem acredita em um Deus e, por isso, segue uma religião, religião diz respeito a religar a pessoa humana com Deus, com o outro (o próximo, alteridade), com o nosso eu profundo e com todos os seres vivos da biodiversidade. Nesse sentido, para quem é adepto de alguma religião, a religião integra a pessoa na grande comunidade da vida, guia até o mais profundo de si mesmo, seus medos e sonhos, suas forças e fraquezas. Entretanto, a história da humanidade está recheada de religiões enquanto instituições cúmplices dos poderes opressivos. Uma religião institucional tem sacerdotes, funcionários, dogmas, doutrina e hierarquia. Com a institucionalização das religiões, o espírito original ético e promotor de sociabilidade com respeito à alteridade acaba sendo abafado. O que deveria ser instrumento de emancipação humana torna-se instrumento de opressão, de legitimação da ordem estabelecida opressora/injusta.

Enfim, a dimensão religiosa das pessoas, dependendo da forma como é vivenciada, pode mobilizar para lutas libertárias ou pode estilhaçar lutas necessárias.

Referência

MOREIRA, Gilvander Luís. Mística evangélica do compromisso com os pobres, p. 85-102. In: RHEMA Revista de Filosofia e Teologia do Instituto Teológico Arquidiocesano Santo Antônio, v. 8, n. 29, 2002.

Foto: Divulgação / Portal das CEBs

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