Nunca pensei que um dia escreveria para falar que uma escola de samba pregou o evangelho no qual acredito
Na Folha
Realengo, nove e meia da noite.
Alex tá de olho no relógio.
O pastor pede pra igreja ficar de pé e fazer a última oração da noite.
O ministério de louvor canta a última música os irmãos se abraçam, e vão saindo da Igreja Batista Betânia.
Alex chama uns irmãos no canto do templo, e vão orar por um amigo.
Hoje eles vão orar por um pastor batista, que estará numa missão muito importante: desfilar na Marquês de Sapucaí.
O pastor se chama Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho.
Em outras igrejas, congregações, rodas de oração foram feitas para que Deus naquela noite de domingo tocasse os corações de milhões de pessoas que estariam olhando para um único lugar, assistindo ao Maior Espetáculo da Terra.
Irmãos na Baixada Fluminense, na Maré, no Capão Redondo. Nos pontos de ônibus, nas calçadas, nos portões de casa. Todos, nesta noite, estão orando pelo pastor que vai entrar na avenida.
Nunca isso aconteceu conosco. Nunca um de nós, cristão batista, protestante, sambou com uma escola de samba, no maior e mais importante evento nacional.
Do outro lado da cidade, no centro do Rio, o pastor está se vestindo. Se olha no espelho, e vê aquele que vai interpretar.
Jesus, o nazareno.
Nascido sob o governo de César Augusto, morto sob o poder político do governador Pôncio Pilatos, Jesus, o nazareno, foi um homem pobre, carpinteiro, morador da Judeia, atual Palestina, quando os romanos ocupavam militarmente todo o mundo de então.
Jesus era um judeu pertencente ao grupo dos fariseus. O grupo religioso mais ortodoxo do judaísmo. No entanto, rompera com este grupo, radicalmente, por perceber que a religião se preocupa apenas com ela mesma e não com os pobres.
Filho de Maria, uma mulher simples, e adotado por José, homem de muito mais idade do que Maria, Jesus cresceu entre relações de afeto que complementavam ausências, cuja pobreza obrigava a bater na porta do vizinho e pedir um arroz, uma roupa emprestada. Jesus viu, desde cedo, com o pai adotivo, a pobreza.
Era um menino inquieto, falador. Se tornou um jovem questionador da religião e da sociedade. Foi batizado no rio, pelo seu primo, outro questionador, João, o batizador, ou João, o Batista.
Um dia, João foi preso e decapitado.
Vieram até Jesus e disseram que ele havia morrido. Jesus então organiza o povo, e multiplica um cesto com pães e peixes para mais de 5.000 pessoas. Ele estava deixando uma mensagem. Quando um líder do povo morre, nós devemos organizar nossas utopias, nossa esperança e até nosso ódio para nos saciarmos uns aos outros e seguirmos com a luta.
Jesus, o nazareno, era considerado um profeta, um rabino, um homem da Galileia, negro, pobre, de uma periferia, um lugar onde só morava pobre. Pregando utopias de amor e liberdade entre soldados romanos, militares truculentos, odiosos, matadores. Como disse o pastor Fellipe dos Anjos: os Caveirões Romanos. E foi assim que a bateria da Mangueira estava fantasiada. De policiais do BOPE, caveiras, símbolos da opressão e da morte.
O nazareno era amado pelo povo. Pelos oprimidos. Acolhia doentes, excluídos, pobres, ricos, num tempo em que era proibido falar com mulheres na rua, ele escolheu falar com elas, ele escolheu se distanciar da política, ele escolheu não criar uma bancada para o senado romano, ele escolheu não se candidatar a César, ele escolheu as prostitutas e disse que, no Reino de Deus, elas entrarão na frente dos religiosos. Ele escolheu os marginais, as putas, os gays, os presos, os idosos, os esquecidos, abandonados, o povo de rua e todos aqueles que a igreja evangélica odeia, maltrata, pisa, traumatiza, fustiga, oprime, inferniza, exclui e quer matar.
Porque o Jesus das igrejas evangélicas quer matar o oprimido.
Mas o Jesus da Bíblia, o Jesus nazareno, o Jesus da Mangueira, escolheu morrer pelo oprimido.
Numa noite, esse Jesus foi preso. E não resistiu à prisão. Assumiu a culpa que nem era dele. Assinou o B.O. que entraria pra história.
Cuspiram. Como disse Bezerra da Silva: “apanhava que nem um ladrão”.
O condenaram à pior pena, a de morte. Morreu no Calvário, o Morro da Caveira.
No alto do morro, torturado por policiais, os militares de Roma, crucificado entre dois outros homens negros que também cumpriam pena.
Seus seguidores disseram que ele voltou da sepultura, vivo. E que, um dia, levaria todos para o Paraíso. O Reino de Deus. Com uma mesa farta, para todos. Sem distinção de raça, de gênero ou de classe. De toda tribo, língua e nação.
Um Jesus diferente do Jesus do Malafaia. Um Jesus diferente do Jesus de Feliciano. Um Jesus que nunca entraria numa Universal do Reino de Deus, do Macedo. Porque Jesus disse que não podemos servir a Deus e ao Dinheiro. Devemos escolher entre um ou outro.
Mas o Jesus evangélico escolheu matar pessoas, eleger quem mata, escolheu a prosperidade, o dinheiro, o ouro, escolheu queimar e destruir terreiros, bater em gays, escolheu o extermínio do povo negro. A igreja escolheu abençoar o Roberto Alvim, escolheu abençoar Bolsonaro, um messias diferente do Messias de Nazaré, porque é um messias de arma na mão.
A igreja evangélica é o que a Bíblia chama de a mulher perversa que bebe o sangue dos oprimidos, sentada numa besta-fera do diabo. Cheia de ouro, de poder, e que deu de beber do seu vinho a todos os poderosos. Trump, Bolsonaro, tantos outros Césares beberam do seu vinho de mentira, falsidade e ódio.
E foi na Sapucaí, um lugar onde a igreja afirma existir apenas para festas e sacanagem, foi nesse lugar, numa escola de samba, do mesmo povo negro, oprimido, pobre e do morro, um povo irmão e filho de Jesus, com Maria negra, com José negro, com doze discípulos negros, foi preciso a Sapucaí gritar a mensagem de amor das Boas Novas de Jesus, pois a igreja evangélica decidiu se calar e, em alguns casos, dar voz a Satanás, e destruir um país inteiro.
A Mangueira se posicionou e tem se posicionado, como outras escolas de samba, pela luta do oprimido, do pobre, daquele que, numa noite, samba debaixo de holofotes e câmeras e, no dia seguinte, volta a ser o alvo das miras das 762 da Polícia Militar do Rio de Janeiro ou de São Paulo ou de Sobral ou de Recife.
A Mangueira teve coragem de mostrar ao mundo Jesus, o Cristo, como ele é. Negro, pobre, homem, mulher, trans, gay, favelado, trabalhador, desempregado, oprimido.
A Mangueira, a Igreja Pentecossamba da Estação Primeira, desafiou as vozes do ódio, num momento em que estamos submersos em dor. Diante da opressão, a Mangueira se posicionou. Teve lado. Não se calou, como uma parte de uma classe artística, mas jogou o que tinha pra denunciar tudo aquilo que virou arte na avenida. As mortes por violência letal no Rio de Janeiro e nas grandes cidades, que matam mais negros do que brancos. Todas as estatísticas revelam um número estarrecedor de jovens negros mortos em operações policiais. Morrem no alto do morro, na frente da mãe. Igual Jesus e Maria.
É a opressão e a violência, a violação de direitos e a intolerância religiosa que fez com que a Mangueira se posicionasse. Porque Deus tem lado. Deus faz escolhas. E Deus, esse Deus, pai do Jesus nazareno, sempre escolhe o oprimido.
Ontem, o samba se apropriou do Evangelho. E, num pedido de paz, de compaixão, uniu religiosos de diversas correntes, e mostrou que o caminho que estamos tomando como país está errado, ao menos aos olhos de Jesus.
Eu nunca pensei que um dia escreveria num jornal de grande circulação no país para falar que uma escola de samba pregou o evangelho no qual acredito. Eu, filho de crente, neto de crente, que nunca pulei carnaval na Sapucaí, vi Deus falar com seu povo, entre tamborins, surdos, samba no pé.
Jesus voltou. E sambou com seu povo. Chorou com seu povo.
E um pastor estava lá, desfilando. Um pastor que entendeu o significado do evangelho.
A Mangueira fez história. E reconciliou os inconciliáveis.
E eu estou feliz por ter vivido o suficiente para ver este dia.
Igreja, volta pra Jesus. O Jesus preto, pobre. O Jesus que ama e respeita a todos. Que morre e não mata.
Igreja, sai de Babilônia. Para de se iludir com o poder. Para de odiar.
Volta pro primeiro amor. Pra estação primeira do amor.
Fala, Deus.
Fala, Mangueira.
–
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber
Mangueira: “Jesus da Gente”. Imagem capturada de vídeo
Reconfortante ler seu comentário, Ruth, em contraposição a tanto ódio que vem sendo dirigido contra a belíssima mensagem de amor da Mangueira.
Tenho 59 anos, filha e neta de cristãos batistas religiosos.
O melhor texto, o melhor estudo, a melhor aula de escola bíblica dominical que eu já li, assisti, senti.
Obrigada.