Quem nasce no Brasil é o quê mesmo? Por Carlos Walter Porto-Gonçalves*

Na CPT NE2

Uma curiosidade um tanto infantil talvez possa nos ser altamente reveladora. Afinal, o adjetivo pátrio, aquele que nos indica origem ou procedência de alguém, geralmente se expressa pelos sufixos ense ou ês ou, ainda ano. Assim, temos o francês, o português, o inglês entre tantos. Ou ainda, o italiano, o peruano, o venezuelano, o equatoriano e o norte-americano entre outros tais. Há ainda outras variações, como o paraguaio e o guatemalteco, que nos parecem muito originais e para os quais não encontramos paralelo. O mesmo se passa com brasileiro. Embora os franceses nos chamem bresilien, os ingleses brazilian e os italianos brasiliano, nós, insistimos em nos chamar brasileiros usando esse sufixo eiro que não se aplica a nenhum outro adjetivo pátrio.

E, aqui entre nós, também usamos o mesmo sufixo eiro para indicar a origem ou a procedência de quem nasceu nas Minas Gerais: o mineiro. A palavra brasileiro designava, no período colonial, aquele que vivia de explorar e fazer comércio com o pau-brasil, madeira de cor de brasa de grande valor comercial à época. O sufixo eiro, nesse caso, tem, entre outras funções, a de assinalar uma ação ou uma função como em madeireiro, mineiro, pistoleiro, grileiro ou garimpeiro. Todavia, o adjetivo pátrio brasileiro indica a origem colonial dos que aqui chegavam e o que vinham fazer aqui.

O Superdicionário da Língua Portuguesa, da editora Globo, (2000, Fernandes, F.; Luft, C.P. e Guimarães, F.M.) assinala que brasileiro, além de ser aquele ou aquela “natural ou habitante do Brasil” também é o “português que residiu no Brasil e que voltou rico à sua pátria”. È interessante observar que embora a língua portuguesa nos ofereça sinônimos para brasileiro, como brasiliense, brasilense e brasiliano essas variantes são desprezadas. O termo brasileiro para designar o natural do Brasil começa a ser consagrado na primeira Constituição Política do Império do Brasil, em 1824.

Era natural que um novo marco jurídico para conformar as regras do jogo no território que recém se tornava independente tivesse que nomear e diferenciar os nascidos no novo território. No nosso continente, até mesmo o nome, América, se afirmou como contraposição às metrópoles pela necessidade de afirmação da elite criolla que se emancipava. Afinal, se queriam daqui e não mais de lá. Até então, a expressão Índias Ocidentais era amplamente usada como designação, sobretudo pelos espanhóis para as terras que, depois, seriam denominadas americanas. Nos Estados Unidos, primeiro país a fazer uma revolução de libertação nacional no mundo, em 4 de julho de 1776, a expressão american foi brandida com força pelos revolucionários para se diferenciarem dos colonizadores ingleses. Enfim, o termo América só se consagra a partir dos ideólogos das elites criollas contra as antigas metrópoles.

O mesmo ocorreu com o regime republicano que passou a vigorar em todos os países da América que faziam a sua independência como forma de auto-afirmação das antigas metrópoles onde imperavam as monarquias. Exceto o Brasil que permaneceu com regime monárquico e se proclamou Império e, com isso, se diferenciando de todas as demais novas nações que nasciam no continente e não o fez sem um ar de superioridade por fazer suas as antigas instituições das metrópoles européias. Enfim, a colonialidade havia deitado raízes profundas. Talvez essa continuidade portuguesa nos ajude a entender o porquê da escolha pelas elites do adjetivo pátrio brasileiro e não brasiliano ou brasiliense.

Afinal, brasileiro é o “português que residiu no Brasil e que voltou rico à sua pátria”. Explorar o Brasil é o ser do brasileiro. Nos tempos da exploração da borracha na Amazônia dizia-se que o único crime que lá se cometia era não voltar de lá rico, conforme registra o ensaísta amazonense Samuel Benchimol. É ele quem nos conta que à entrada do rio Purus, o mais rico na exploração de borracha, havia uma ilha chamada Consciência, que era onde você devia deixar a consciência antes de subir o rio para não se lembrar do que você havia feito quando voltasse do alto rio. Não à toa, no interior do Nordeste, o paroara, aquele que voltava rico da Amazônia, era visto como tendo uma riqueza amaldiçoada. Assim tem sido o objetivo da ocupação do nosso território com grande influência na formação do caráter dos que aqui nascem. Não creio que estamos diante de um fato isolado, nem tampouco de fatos amazônicos.

Tudo indica que a atual onda expansionista em nome do desenvolvimento do Brasil, contra a Amazônia, o Cerrado, a Caatinga, o Pampa, contra a Mata Atlântica e contra a Mata de Araucária, que nunca foram vazios demográficos, é ser contra os que tradicionalmente ocupam nosso território. Enfim, está sendo atualizado o brasileiro. E brasileiro tem sido exatamente isso: aquele que vive de explorar o Brasil. Não é natural ser brasileiro. É uma opção. De minha parte, nasci no Brasil, mas não sou brasileiro. Sou brasiliano. Felizmente, para não ser acusado de apátrida, os nossos dicionários me dão essa opção.

* Doutor em Geografia e Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Pesquisador do CNPq – Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Ganhador do Prêmio Milton Santos, em 2018, conferido pelo EGAL e do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). Membro do Grupo de Assessores do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Autônoma da Cidade do México. Ganhador do Prêmio Chico Mendes em Ciência e Tecnologia em 2004 é autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais.

MATOPIBA: As terras na região viraram ativos financeiros e a especulação alimenta o processo de exploração das terras. / Reprodução

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