Por um feminismo de baderna, ira e alarde

Neste 8M, ocuparemos politicamente as ruas e as nossas casas, em festa e protesto. Não queremos flores, parabéns e elogios — mas sacudir uma ordem social irrespirável, que tem a mesma cara dos machos rivalistas e opressores

por SOS Corpo*

O feminismo veio para ocupar tudo! Não tem como conter essa forma de ver, pensar e transformar o mundo. O pensamento feminista foi fundamental para que a democracia ganhasse demandas reais em espaços do cotidiano, foi fundamental para compreendermos que ele é uma forma de organizar a vida social. Nós mulheres não só denunciamos as declarações sexistas de políticos ou escrachamos os machos que se esfregam “nelas” no metrô ou no carnaval. É mais que isso: o feminismo revelou que o espaço “privado” imposto a nós mulheres, à família e à casa nada tinha de privado, mas representou e representa violação e privação. O feminismo respondeu aos que enaltecem a família patriarcal burguesa, como núcleo sagrado abençoado por Deus, dizendo desde o seu começo que o pessoal é político e provando que pais, tios e irmãos são os principais responsáveis por estupros de meninas e assassinato de mulheres.

O feminismo, além de pensamento, é movimento. Suas ideias levam mulheres a se encontrar umas com as outras e ir às ruas, com lutas feitas por mulheres de carne, osso e coração sangrando. Nas periferias das cidades, no campo, nas florestas, à beira das águas e nas margens da sociedade nós mulheres estamos, na prática e no cotidiano, construindo a democracia. Somos nós, as mães, brigando com governos locais por creches e escolas para nossos filhos; somos mulheres indígenas defendendo umas às outras, nossas comunidades e também os nossos territórios; somos mulheres negras denunciando a polícia militar por racismo institucional contra nossos jovens filhos/as negros; somos mulheres transsexuais batalhando para conseguir reconhecimento de nosso nome social; somos mulheres lésbicas espalhando a potência do amor entre mulheres; mulheres agricultoras rurais estabelecendo uma relação orgânica, pessoal e natural com a Terra; somos mulheres quilombolas tomando a liderança de nossas comunidades para termos reconhecido o direito a nossos territórios ancestrais e nossa cultura; somos mulheres sindicalizadas declarando a importância da organização feminista no mundo do trabalho produtivo e denunciando as desigualdades trabalhistas fruto da desigual divisão sexual do trabalho. Somos trabalhadoras domésticas, mulheres que trabalhamos em casas de famílias, alertando para a continuidade da cultura escravocrata que se estampa na falta de reconhecimento de direitos trabalhistas básicos e violências sofridas constantemente no ambiente de trabalho; somos mulheres de fé enfrentando a violência dos que se dizem nossos companheiros em casa; mulheres de axé enfrentando ataques de fanáticos religiosos aos nossos terreiros e a nosso sagrado; somos jovens estudantes reclamando para nós a autoria de um feminismo combativo e ligado às lutas pela educação pública de qualidade; somos as mulheres que estão em postos de representação política que sofrem violências políticas e violências fatais, que nos transformamos em sementes desse novo tempo que está por vir. O feminismo é mais que uma ideia que está sendo combatida, ele tem se traduzido em organização política e movimento social pela transformação.

Em novembro de 2019, o mundo conheceu a performance “Un Violador En Tu Camino”, criada por um grupo performático interdisciplinar de feministas, o Las Tesis. Elas levaram para as ruas chilenas o hino que denuncia e nomeia os antagonistas na violência patriarcal em nossos cotidianos. A potência da ação artivista virou o fenômeno: em um mês, a performance chegou em todos os continentes. Mulheres de diferentes idades, ligadas ou não a movimentos feministas, replicaram a performance, mostrando que a culpa pela violência nunca é nossa e que a retórica de que a culpa é da roupa ou do lugar onde transitamos também é refutada. Por explicitar o caráter estrutural da violência contra as mulheres em suas dimensões sexista e racista, os homens violadores e a força patriarcal organizada no Estado e suas instituições, a performance ganhou visibilidade em todo o mundo.

O feminismo se espalhou, mas é preciso ter cuidado para não ser capturado pelas forças dominantes. O 8M não é sobre mulheres brancas estampando capas de revistas nacionais, posando como grandes executivas na tentativa de provar que existe alguma igualdade. Não haverá oportunidade para todas dentro de um sistema que se alimenta de crises e desigualdade, se apropriando do tempo e da força de trabalho das pessoas. Não existe igualdade possível nesse mundo de exploração e mercantilização capitalista. Por isso o 8 de Março não é sobre flores, parabéns, doces e elogios. Não é sobre um dia de folga para mulheres ou de equipe só de mulheres. Não é sobre ser empoderada sozinha e empreender para sobreviver. Nossa luta é antagonista a isto, é luta contra-hegemônica. Não existe empoderamento sem feminismo, sem luta coletiva.

É preciso lembrar que o 8 de março nasceu comunista. Todas as manifestações originais que aconteceram no século 18 tinham como objetivo dar visibilidade às péssimas condições em que se encontravam as mulheres trabalhadoras, no contexto fabril. É comum relacionar o Dia Internacional de Luta das Mulheres ao incêndio ocorrido em Nova York no dia 25 de março de 1911 na Triangle Shirtwaist Company, quando 146 trabalhadores morreram, sendo 125 mulheres e 21 homens. Entretanto, a data do 8 de Março vem de uma manifestação ocorrida na Alemanha. Em 1910, a comunista Clara Zetkin propôs a criação de uma jornada anual de manifestações que visibilizasse as condições de trabalho das mulheres nas fábricas. A proposta de Zetkin era de uma jornada anual de manifestações das mulheres pela igualdade de direitos. O primeiro dia oficial da mulher seria celebrado, então, em 19 de março de 1911. Em 1917, houve um marco ainda mais forte daquele que viria a ser o primeiro 8 de Março. Naquele dia, um grupo de operárias saiu às ruas para se manifestar contra a fome e a Primeira Guerra Mundial, movimento que seria o pontapé inicial da Revolução Russa. O protesto aconteceu em 23 de fevereiro pelo antigo calendário russo – 8 de março no calendário gregoriano, que os soviéticos adotaram em 1918 e é utilizado pela maioria dos países do mundo hoje.

Entretanto, para falar do sentido do 8 de março como marco de resistência feminina é imprescindível negritar que a luta das mulheres é muito mais antiga que essas resistências europeias e norte-americanas. Essa história oficial sempre tentou apagar a enorme resistência protagonizada pelo povo negro, especialmente as mulheres negras. No Brasil e na América Latina, as mulheres negras resistem desde o século XVI quando foram traficadas de África para este país. Dandara, Aqualtune e Luiza Mahin são mulheres negras símbolos, tanto no campo quanto na cidade, da luta contra a escravidão no Brasil. Elas estiveram em constante rebeldia para libertar a si e a seu povo da escravidão e violência. Estas e outras mulheres negras deram um sentido especial ao significado de revolta das mulheres no Brasil. Eram mulheres que iam às ruas vender quitutes e lavar roupas, conseguiam dinheiro para alforriar companheiros e se envolviam em rebeliões e aquilobamentos.

Há algum tempo, o Dia Internacional de LUTA das mulheres tem crescido em mobilização. A greve de mulheres na Espanha reuniu mais de meio milhão de mulheres nas ruas no ano passado. Na América Latina o movimento de protestos de mulheres também atinge a casa das centenas de milhares. No Brasil as manifestações têm crescido em número de mulheres nas ruas e em força. Lembramos todas as marchas, insurgências, ocupações e ações diretas. Recordamos a ação do Movimento de Mulheres Camponesas contra a empresa Aracruz Celulose. Na madrugada do dia 8 de março de 2006, 1.800 mulheres da Via Campesina ocuparam o viveiro florestal da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro, município que fica a cerca de duas horas de Porto Alegre. Na ação, elas destruíram estufas e bandejas de mudas de eucalipto para ampliar o debate sobre a monocultura de eucalipto que vem destruindo florestas selvagens, territórios quilombolas e indígenas. Em 2018, as mulheres rurais realizaram a Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra, organizada pela Via Campesina, Movimento Sem Terra, Levante Popular da Juventude e Marcha Mundial das Mulheres. Foram diversas ações diretas contra grandes corporações e latifundiários. Elas ocuparam o parque gráfico do jornal O Globo, no Rio de Janeiro, invadiram uma fábrica de roupas da Riachuelo no Rio Grande do Norte e ocuparam também a Superintendência Regional do Incra (Instituto de Reforma Agrária) em Brasília. Em Dourado, no Mato Grosso do Sul, as camponesas fecharam o trânsito e puseram fogo na entrada da empresa de fertilizantes químicos Heringer. Em Porto Velho, Roraima, os acessos aos portos e postos de gasolina foram bloqueados. Na Amazônia, a multinacional Hydro, com sede em Belém, foi invadida, pichada e denunciada como a maior responsável do crime ambiental no município de Barcarena. As mulheres têm feito do 8 de março um momento de desobediência civil, inspirador e mobilizador, porque o 8M é sobre um outro mundo que tornaremos possível. Resgatamos a memória de todas as Marielles que brotam como semente no seio da política para desespero dos bilionários machistas racistas, cujo projeto de poder é aumentar as desigualdades para ampliar suas riquezas, mesmo que isso signifique o genocídio da população negra, feminicídios, encarceramento em massa, pobreza, fome, epidemias e até mesmo a destruição do planeta.

O 8 de março é o símbolo da nossa luta conjunta em defesa das nossas vidas e de nossos territórios. É o dia em que todos os feminismos se encontram na mesma rua, no mesmo grito. Ele representa um marco de potência por articular todas as forças políticas do nosso campo. O 8M é como uma festa que reanima nossa resistência, é quando chegam novas companheiras, novos coletivos se formam, a história das que vieram antes é lembrada e podemos sonhar juntas um futuro feminista. A cada ano nos encontramos nas ruas e nas rodas, em luta, em festa, em música, em arte e em denúncias. Nossos corpos ocupam as ruas, ambos como território político, requerendo que a democracia aconteça nas nossas vidas, nos subúrbios e favelas, becos e vielas, nos territórios indígenas e quilombolas, nos interiores, nas cidades pouco habitadas e nas megalópoles. Neste ano de 2020, ocuparemos politicamente não apenas o poder legislativo municipal, mas também as praças e as nossas casas, os ônibus e as paradas, ruas, calçadas, postos de trabalhos, as quebradas, as fábricas, as feiras, as filas, as florestas, águas, aeroportos, rodoviárias, os lugares de prazer e os espaços de lazer tanto negados a nós mulheres.

Sabemos que todas essas lutas que fazemos são nas brechas deixadas pelo patriarcado racista e capitalista. Isso porque, trancafiadas em casa, as mulheres nunca tiveram liberdade para protestar. O patriarcado até aqui nos ofereceu concessões, mas, como nos ensinou Simone de Beauvoir, basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos de nós mulheres sejam questionados. Se somos desobedientes e insurgentes é porque sofremos na pele a violência política que se direciona a nós quando ocupamos os espaços públicos. Essa violência tem como objetivo nos excluir da arena política, da vida pública, dos espaços de poder. Enquanto as feministas forem demonizadas, apontadas como mulheres furiosas, raivosas, peludas e o feminismo difamado, atacado como um “machismo de saia”, “uma doença infantil do lulismo” ou uma ideologia de gênero, o espaço reservado a nós mulheres, no capitalismo, continuará sendo o da submissão. As igrejas defendem isso abertamente através de seus astros do mundo gospel dizendo que a mulher não deve esquecer o seu papel em casa, recusando igualdade entre homens e mulheres, levantando que a presença do feminismo nas igrejas é armadilha para desviar as mulheres das igrejas e de suas missões para com o lar.

Desde as violências perpetradas contra a primeira presidenta eleita democraticamente no Brasil, Dilma Rousseff, usadas para destituí-la do poder executivo do país, prevalece na sociedade brasileira um clima de ataque ao movimento feminista e a nós feministas. Michel Temer foi o autor da polêmica “Bonita, recatada e do lar”, muito bem contestada por feministas em todo o Brasil. A equipe de mídia social que faz terrorismo digital em nome do Palácio do Planalto, muito bem denunciada na CPMI das fake news ainda em curso no Congresso Nacional, também definiu como seu inimigo social o símbolo da vênus, utilizado para representar o feminismo. Os ataques sexistas do presidente, seus filhos e aliados às mulheres, como Patrícia Campos Mello e Joice Hasselmann, são exemplos de autorização e encorajamento para a prática de violência contra mulheres. Prova disto foi o ataque por simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro feito à então a deputada estadual e pré-candidata à presidência Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), enquanto concedia entrevista, no acampamento em Curitiba, cidade onde o ex-presidente Lula estava detido.

Essa violência patriarcal é expressa numa estrutura que tem o racismo como um sustentáculo, como se pode ver nos índices de feminicídio, onde 63% das vítimas são mulheres negras. Uma violência que furta direitos de ir e vir, de existir em plenitude e com cidadania, em cidades que garantam nosso bem viver. Estar em situação de pobreza e fome, sem direitos à moradia, acesso à água de forma gratuita, a uma alimentação sem veneno, à educação pública e de qualidade, a um sistema de saúde público e universal e a condições de trabalho dignas, e ainda ter imposta a dupla jornada de trabalho e o medo constante de andar nas ruas, são também expressões da violência como estrutura do capitalismo-racista-patriarcal. Ela tolhe direitos e a democracia.

A tentativa de silenciamento é grave. A violência “simbólica” está associada a violências institucionais que visam reprimir e massacrar os setores que se opõem ao conservadorismo reacionário e às medidas neoliberais que estão sendo implementadas à revelia da população. Ela se reflete na criminalização dos movimentos sociais, em ataques policiais a qualquer tipo de manifestação de rua contrária ao governo, em perseguição às lideranças de esquerda, assassinatos de lideranças indígenas, militarização dos territórios, instauração de processos criminais contra lideranças sociais em processos que dão maior credibilidade a convicções de juízes do que fatos e provas concretas. Assim que eleito, Bolsonaro apresentou um plano para acabar com todo e qualquer ativismo no Brasil. Desde então a política de criminalização tem seguido o caminho para caracterizar como “terroristas” de movimentos que lutam pelo respeito à Constituição Federal.

O objetivo da direita brasileira é criar um clima de ódio contra defensores/as de direitos humanos e contra a própria concepção de direitos humanos: visa destruir a subjetividade que crescia na população mais pobre e desfavorecida de que eles também são sujeitos com direito a ter direitos, visa destruir a concepção de um Estado Democrático de Direitos. É um governo que se pauta pela ode ao racismo, ao sexismo e à desigualdade e está promovendo um completo desmonte da solidariedade social coletiva para desobrigar a burguesia a arcar com os custos da necessária transformação social. A bem da verdade, este governo está usurpando o Estado brasileiro e colocando todas as suas políticas a serviço do rentismo nacional e internacional.

Se as crises do capitalismo nos ensinaram algo ao longo de todos esses séculos submetidos a esse sistema, foi que essas crises são seletivas: elas fazem os mais pobres ficarem miseráveis para que a burguesia acumule mais lucros. No Brasil, por exemplo, segundo IBGE, a taxa média nacional de desocupação em 2019 caiu de 12,3% em 2018 para 11,9% no ano passado, mas isso aconteceu porque a taxa de informalidade atingiu seu maior nível desde 2016 no Brasil (41,1%) e também em 20 estados. Ou seja, os empregos gerados são mais precários e dependem do empreendedorismo individual, que está ou submetido aos mecanismos tecnológicos das grandes plataformas do tipo uber e Ifood ou se refletindo nas vendas de sinais, calçadas e comércio. Enquanto a população está se virando como pode para sobreviver, os bancos acumulam lucros recordes. O lucro acumulado de Bradesco, Itaú Unibanco, Santander e Banco do Brasil neste ano é de R$ 59,7 bilhões, o maior para o período pelo menos desde 2006. Os quatro bancos são os maiores do país com ações negociadas na Bolsa. É assim que os donos dos meios de produção fazem para disfarçar seus lucros: financeirização. Assim trocou-se a figura do patrão pela do acionista.

Depois da tragédia de Brumadinho, em janeiro de 2019, que culminou em um cenário comprometedor para a empresa Vale S.A., a mineradora multinacional perdeu espaço entre os analistas, mas nas últimas 52 semanas suas ações na Bolsa de Valores ganharam valorização de 18,25%. Enquanto os acionistas da Vale continuam lucrando e pressionando por mais produtividade, a Justiça de Minas Gerais acatou denúncia do Ministério Público do Estado contra 11 executivos da empresa, incluindo o ex-presidente da mineradora e cinco funcionários da empresa de consultoria Tüv Süd por homicídio doloso duplamente qualificado e crimes ambientais causados pelo rompimento da Barragem em Brumadinho, na Grande BH.

Nunca acumularam tanto. Segundo relatório de 2020 da Oxfam, os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial. Os governos em geral vêm cobrando poucos impostos dos mais ricos e de grandes corporações. E o relatório enfoca em um tema invisível, mas que é um dos combustíveis que alimentam essa engrenagem: as economias do mundo são sexistas, valorizam mais a riqueza de um grupo de poucos privilegiados, na sua maioria homens, do que bilhões de horas dedicadas ao trabalho mais essencial – o do cuidado não remunerado e mal pago, prestado principalmente por mulheres e meninas em todo o mundo. A pesada e desigual responsabilidade pelo trabalho de cuidado perpetua as desigualdades de gênero e econômica. Ainda assim, os governos estão sub-financiando serviços públicos e infraestruturas essenciais que deveriam reduzir o peso do trabalho de cuidado sobre mulheres e meninas. Investir em saneamento básico, eletricidade, creches e saúde, por exemplo, poderia dar às mulheres e meninas oportunidades para melhorarem a qualidade de suas vidas.

O racismo, sem dúvida, é outro pilar de sustentação do capitalismo neoliberal! Definimos como NECROPOLÍTICA essa nova forma de exploração do trabalho de pessoas negras associado ao encarceramento em massa e ao genocídio da população negra. Em 2018, estava na população preta e parda do país a maioria dos trabalhadores desocupados (64,2%) ou subutilizados (66,1%),segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desde 2016, a taxa de homicídios de negros tem sido duas vezes e meia superior à de não negros. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros. Os dados são do Atlas da Violência (IPEA e FBSP). O racismo brasileiro chegou a patamares tão elevados que uma pesquisa recente do departamento de antropologia da Unicamp levantou a existência de 324 células neonazistas no Brasil. Os grupos se dividem em até 17 movimentos, entre hitleristas, supremacistas/separatistas, de negação do Holocausto ou até mesmo três seções locais da Ku Klux Klan.

Se estamos sobrevivendo a estes tempos, só as drogas podem dizer como. A depressão, a epidemia mais alarmante do nosso tempo, é a consequência das condições de vida das pessoas neste contexto político: estamos sucumbindo. Nossos alimentos estão envenenados, os remédios oferecidos pela indústria farmacêutica apenas combatem sintomas. Enquanto isso a política de proibição de algumas outras drogas é usada como desculpa para controlar e exterminar ainda mais corpos negros. E se tem algo que também foi transformado em droga foi “Jesus”. A destruição das culturas originárias do Brasil e afro-brasileiras serviu à manipulação da fé da população pobre, negra e periférica para enriquecimento ilícito de pastores neopentecostais que simulam religião para fazer negócios. Como o capitalismo sempre teve uma crença para valorizar seu espírito, os neopentecostais, em consonância com o neoliberalismo, produziram a teologia da prosperidade, uma doutrina religiosa cristã que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os cristãos, e que a fé, o discurso positivo e as doações para os ministérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material do fiel.

Esse é o retrato da crise civilizatória atual. Controla-se os corpos das mulheres, de pessoas afeminadas e os corpos negros como parte do sistema de poder, mas esconde-se com hipocrisia as contradições e os objetivos desta manipulação. A direita defende a vida de fetos, mas tanto criminaliza e prende as mães negras que conseguem sobreviver aos abortos clandestinos, quanto elimina jovens negros nas periferias. Para a burguesia há um único tipo de família digna de direitos: a família branca, de origem europeia, dona dos meios de produção. Para eles, qualquer outra raça é descartável. O feminismo tem uma importância crucial quando faz a contestação da família patriarcal burguesa, porque ela é o centro ao redor do qual gira também o capital.

Nós somos sujeitos da nossa própria emancipação, mas se ela não for coletiva, não haverá transformação real, porque não estamos confrontando pessoas, mas um sistema ineficaz, predador e falido que oferece às mulheres, população negra, indígena, LGBTQI+ e à classe trabalhadora majoritariamente precarizada apenas migalhas que sustentam a sobrevivência de alguns/as poucos/as de nós – o mínimo de nós. O feminismo é mais que uma organização de classe contra o capitalismo. Através da demanda de reorganização profunda e complexa das relações públicas e privadas, de trabalho e de afeto, relações pessoais e coletivas, o feminismo propõe um caminhar consciente para um novo sistema de relações sem dominação, sem exploração, não somente para nós mulheres, mas para todas as pessoas. O feminismo, como bem afirma bell hooks, “é para todas as pessoas”, e o 8 de março, não é o início, muito menos o único, mas é um momento forte na trilha que percorremos todas nós, para somar na tarefa inescapável de nossa emancipação coletiva.

*Foi no final da ditadura militar, em 1981, no processo de luta por democracia, que um grupo de mulheres fundou em Pernambuco esta coletiva: SOS Corpo. Nossa ação tem como fundamento a ideia de que os movimentos de mulheres, como movimentos sociais organizados que lutam pela transformação social, são sujeitos políticos fundamentais na reorganização profunda e complexa das relações públicas e privadas, de trabalho e de afeto, relações pessoais e coletivas. Entendemos que o feminismo como um caminhar consciente para um novo sistema de relações sem dominação, sem exploração, sem racismo não somente para nós mulheres, mas para todas as pessoas.

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