Funai e isolados: “Consequência será o genocídio”

Em entrevista à DW Brasil, sertanista acusa Funai de ignorar regimento e usar pandemia de coronavírus como pretexto para forçar contato com povos indígenas isolados. “Vai acontecer o que o passado já nos ensinou.”

Por João Soares, na DW

Uma portaria da Fundação Nacional do Índio (Funai) publicada no Diário Oficial da União na última quinta-feira (19/3) causou forte apreensão entre indigenistas. O texto concede autorização para que as 39 coordenações regionais do órgão, que estão repletas de gestores indicados politicamente, possam estabelecer contato com povos isolados por conta da pandemia do novo coronavírus.

Mas, pelo regimento interno da autarquia, as coordenações regionais não têm poder para isso. Somente os técnicos das Frentes de Proteção Etnoambiental estão autorizados a acompanhar esses grupos, em casos de necessidade à sobrevivência deles. 

Na portaria, a atual gestão da Funai afirmou que em princípio esses povos seguirão sem contato, mas que esse entendimento “pode ser excepcionado caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado e deve ser autorizada pela CR (coordenação regional)”.

Em entrevista à DW Brasil, o consultor internacional de políticas para povos indígenas isolados Antenor Vaz projeta um cenário de genocídio caso a medida seja colocada em prática. Para o sertanista, com mais de 25 anos de experiência em campo junto a essas populações, o episódio configura mais uma investida de grupos religiosos com representação na autarquia e outras instâncias do governo federal.

Em outubro do ano passado, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, manobrou internamente para exonerar o técnico que estava há nove anos na coordenação que responde pelos isolados e nomeou o  missionário evangélico Ricardo Lopes Dias para o cargo — ocupado por um nome externo ao quadro técnico pela primeira vez desde sua criação.

“Duas frentes muito fortes ameaçam os povos isolados. Uma mira o território e tem como agentes o agronegócio, as mineradoras e as grandes empresas de infraestrutura. A outra, liderada pelas missões evangélicas proselitistas e fundamentalistas, quer as almas. Essas duas frentes se aliam e estão dentro do governo”, avalia. “Minha posição é de extrema dor por ver todo um processo de evolução, compreensão e formulação de políticas sendo jogado no lixo”.

DW: Como o senhor avalia a recente portaria da Funai que autoriza o contato com povos indígenas isolados pelas coordenações regionais?

Antenor Vaz: Inicialmente, é uma iniciativa positiva que o órgão indigenista oficial brasileiro se posicione e tome medidas efetivas envolvendo os povos indígenas com relação à pandemia. No entanto, ao ler a portaria, fica bastante evidente que a as decisões tomadas ferem o próprio regimento interno da instituição, o qual deixa muito claro que a atribuição da promoção dos direitos dos povos isolados está direcionada à Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato. Não é possível transferir a autorização de um possível contato a outra instância da instituição que não tenha essa competência. É completamente descabida a medida.

Caso a decisão não seja revista, como pede o Ministério Público Federal, que riscos estão implicados aos povos isolados?

Nossa análise sai do campo da ignorância e desconhecimento do regimento interno para o campo da má fé. Vamos concluir que a Funai vai, realmente, aproveitar-se dessa situação dramática do coronavírus para implementar um processo de contato com os povos indígenas isolados.

Antes de iniciar qualquer processo de contato, respeitando a autodeterminação desses povos, é preciso implementar medidas efetivas de proteção territorial para que esse território não seja invadido e, assim, evite o risco de uma possível contaminação. Boa parte dos territórios com a presença de índios isolados vem sendo invadido por madeireiros, garimpeiros, pescadores e grileiros. Justo neste momento mais dramático, cabe à Funai convocar a Força Nacional e o Exército Brasileiro para retirar esses invasores, e não utilizar esse pretexto para um possível contato.

Esses grupos não têm memória imunológica para determinadas doenças, principalmente as infecciosas. Pelo menos 50% das populações contatadas foram exterminadas após o contato, principalmente pelo fato de não existir uma atividade consistente para a atenção à saúde a fim de mitigar os efeitos dessa interação.

Geralmente, o contato é feito com uma parte grupo isolado. Como todos nós somos portadores do Influenza, mesmo não apresentando os sintomas, transmitíamos a eles e, na aldeia, a doença acometia 90% da população. A gripe causa reações muito fortes nos povos indígenas. Rapidamente, eles ficam debilitados e, em curtíssimo tempo, essa gripe se transforma em uma pneumonia, que é fatal. Sem alimentação, medicação e vacina, a consequência é o genocídio.

Esse cenário poderia se repetir nos dias de hoje?

Imagine uma equipe atuando de forma inapropriada, sem, às vezes, conhecer a língua. Vai acontecer o que o passado já nos ensinou. Foi justamente essa experiência que levou a Funai, no ano de 1988, a mudar sua política de proteção aos isolados radicalmente.

Se, antes, o caminho era fazer o contato, percebeu-se que a proteção passava pelo respeito a esse isolamento, ancorado na autodeterminação desses povos prevista na Constituição, que lhes assegura o direito de escolher suas formas de vida, organização, língua, cultura e tradições.

O conceito é bem diferente da balela que representantes de um setor atrasado do Exército propagam, como se fosse a criação de outro país. É importante dizer que os contatos sempre foram guiados por interesses econômicos voltados à abertura de caminhos para obras de infraestrutura, principalmente estradas ou linhas telegráficas.

A política instituída a partir de 1988 no Brasil se tornou uma referência mundial. Agora, pelo desconhecimento do governo e interesses messiânicos, estão tentando jogar essa política no ralo.

Duas frentes muito fortes ameaçam os povos isolados. Uma mira o território e tem como agentes o agronegócio, as mineradoras e as grandes empresas de infraestrutura. A outra, liderada pelas missões evangélicas proselitistas e fundamentalistas, quer as almas. Essas duas frentes se aliam e estão dentro do governo. Minha posição é de extrema dor por ver todo um processo de evolução, compreensão e formulação de políticas sendo jogado no lixo.

Pela primeira vez, o responsável pela coordenação de isolados na Funai não é oriundo do quadro técnico. O que está guiando a atuação do missionário Ricardo Lopes Dias?

Essa estratégia não é de hoje. A presença missionária junto aos povos indígenas remete à época da colonização. Já houve situações na República em que eles ocuparam espaços do Estado na relação com os povos indígenas e no fornecimento de serviços básicos e fundamentais.

A atual gestão está colocando isso em prática. No passado, os missionários eram um grupo mais heterogêneo. Hoje, restringem-se a evangélicos fundamentalistas, quase uma seita messiânica imbuída da pretensão de que Cristo voltará à Terra a partir do momento que o último habitante do planeta escute sua mensagem. Esse pensamento é difundido pela missão Novas Tribos do Brasil, origem de Lopes Dias, uma sucursal da organização estadunidense que recentemente mudou de nome para Ethnos360.

Nos mais de 25 anos que trabalhei em campo com povos isolados, as missões evangélicas proselitistas e fundamentalistas sempre se configuraram como ameaça à autodeterminação dos povos isolados ­— na verdade, à sobrevivência deles.

A rede de atenção à saúde indígena está preparada para lidar com os possíveis efeitos da pandemia sobre esses povos?

Minha visão é de muita preocupação. Houve um momento muito específico de melhora na atenção à saúde dos povos indígenas, quando o programa Mais Médicos funcionou na plenitude. Foi das poucas vezes em que havia presença médica em boa parte das terras indígenas, mesmo que esporadicamente. Com a expulsão dos cubanos, esse componente indígena ficou bastante prejudicado. A estrutura é muito debilitada, porque o atendimento primário ocorre na aldeia, sendo que a maioria das aldeias não tem estrutura adequada para essa questão.

Havendo necessidade de um atendimento de atenção secundária, esse indígena tem que ser removido. Normalmente, são levados para os municípios. Qual é a opção de atendimento para esse tipo de problema nos municípios da Amazônia? É extremamente preocupante. A solução mais clara e imediata para os povos com histórias de contato é exatamente o isolamento.

Há duas ações movidas contra o presidente por genocídio contra os povos indígenas na esfera internacional. Esse risco é real?

Estou de pleno acordo com as iniciativas. É o mandatário maior da nação, que propaga ideias completamente contraditórias com todo o arcabouço jurídico nacional e internacional em relação à defesa dos direitos humanos dos povos. Nesse caso específico, contra os povos indígenas do Brasil. São declarações grotescas, sem fundamento científico, que partem de um tipo de pensamento vulgar que não tem assento na contemporaneidade. Esse discurso de ódio inflamatório, discriminatório, só pode trazer uma situação dramática para os povos indígenas.

Os povos indígenas com história de contato se representam junto ao Estado, acessam os canais de defesa. Os isolados não têm isso. Fico espantado pelas declarações dos militares que estão nos ministérios, baseadas na concepção de que o índio é um problema e vive no atraso. Apesar da perspectiva integracionista que guiava a atuação do Marechal Rondon, ele tinha todo um respeito por esses povos. Eles têm prestado um desserviço à nação e retomam um pensamento do século 16.

Agora, estamos vendo quem é atrasado. Os povos isolados vivem dessa forma há séculos pela pandemia mundial que dizimou pelo menos 25% da população indígena. Espero que, agora, o mundo — especificamente a sociedade brasileira — entenda o que significa para um povo ficar isolado, principalmente devido à contaminação por um vírus. Será que a sociedade brasileira vai acordar para o fato de que existem, no país, 114 registros de povos indígenas que vivem em eterna situação de isolamento? Não é do cinema, do supermercado. É isolamento geográfico, de séculos. A maior ameaça para eles hoje, além da pandemia, é o modelo de desenvolvimento extrativista agroexportador estabelecido em toda a América do Sul.

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Membros da tribo assistem o helicóptero passar. O grupo vive em uma região protegida nas nascentes dos rios Humaitá e Envira. Foto: Ricardo Stuckert

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