No Taqui Pra Ti
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo
(Drummond, 1940).
– Tem acetilcisteína 600 mg? – perguntei ao telefone. Tinha. A farmácia, porém, não fazia entrega domiciliar. Confinado há vários dias, saí de casa na segunda (16), morrendo de medo. Andei apenas três quadras. Nas ruas de Icaraí, em Niterói, parcialmente vazias, funcionava o comércio ambulante e algumas lojas. Diante de uma delas – Casa do Biscoito – fui abordado por um jovem negro, que aparentava uns 20 anos e mancava da perna. Tímido, mas digno, pediu em voz quase inaudível, que eu comprasse na loja uma caixa de caramelos para ele vender a retalho. Jeferson – esse é seu nome – mora no Morro do Cavalão. Desejei-lhe sorte ao me despedir.
Jeferson não é um caso isolado. São milhões de brasileiros que sobrevivem na economia informal, moram em cubículos, muitas vezes sem acesso à água sequer para lavar as mãos, desnutridos, sem assistência médica, num país com profundas desigualdades sociais. Pertencem ao segmento mais frágil e vulnerável da população, afetado pela crise social e econômica agravada pelo coronavirus, agora transmitido de “forma comunitária” e também combatido da mesma forma. Por isso, a Polícia Municipal – hoje eu vi da minha janela – está aconselhando os transeuntes a voltarem para casa.
A quarentena produz um “efeito econômico significativamente negativo” – reconhece nota assinada por reitores das universidades do Rio de Janeiro. Afirma, porém, que “é imperativo suspender temporariamente ou diminuir a frequência das atividades de trabalho, ensino, lazer e entretenimento para proteger a vida e a saúde das pessoas”. Segundo a nota, “o distanciamento social é a principal medida para achatar a curva de propagação, pois reduz drasticamente o contato físico”. Os reitores colocam a rede de hospitais universitários à disposição dos contagiados, assim como “o conhecimento científico básico aplicado” produzido pelas instituições que dirigem.
Distanciamento social
O termo “distanciamento social” talvez não seja o mais apropriado. Foi usado aqui para designar a necessária separação física que estamos vivendo, afastados de familiares e dos círculos de amizade. Sem encontros de avós com netos, de professores com alunos, os nossos afetos já não são adubados na interação presencial. Sinto falta do barulho álacre das crianças no recreio da escola quase em frente de casa, que gera vida, prazer, felicidade. O silêncio produz um zumbido ensurdecedor.
No entanto, como escreveu o psicanalista Contardo Calligaris, esta é na história da humanidade “a primeira pandemia em época de televisão e de streaming e, sobretudo, a primeira em que dispomos da possibilidade ilimitada de nos comunicar com os amigos, parentes e amantes. Podemos estar isolados, mas nunca sozinhos”.
É verdade. Confinados, mas acompanhados de irm@s, sobrinh@s e prim@s, alun@s e orientand@s. Diariamente converso com minhas netas pelo WhatsApp. Vitória, 6 anos, quer saber se estou lavando as mãos de suas bonecas que ficaram em casa. Ana, 9 anos, me fala de suas leituras, dos papos mantidos com suas colegas pela internet e, contente, me mostra o quebra-cabeça gigantesco que montou. Maia, 3 anos, me conta em detalhe seu último sonho – ela sempre relembra de forma minuciosa os seus sonhos – e pergunta da mãe: por que quando a gente abre o olho, o sonho vai embora?
Talvez esse pesadelo vá embora, quando a gente abrir os olhos e se conscientizar do real distanciamento social, aquele existente entre classes sociais, cujas políticas públicas não apenas discriminam os mais frágeis, mas agora desprezam até evidências científicas, classificando de “fantasia” e de “gripezinha” a tragédia que vivemos. Os panelaços coletivos de protesto contra Bolsonaro e os aplausos aos médicos e funcionários da saúde ocorridos nesses últimos dias mostram que estamos pessoalmente isolados, mas politicamente não estamos sozinhos, embora ainda debilitados.
Sentimento do mundo
O sentimento de impotência aparece quando a gente pensa em grande parte da população brasileira, isolada e abandonada à própria sorte. Ou nas aldeias indígenas, cuja organização e forma de vida dificulta o isolamento. Foi o que aconteceu no período colonial, onde a varíola, o tifo, o sarampo causaram uma das maiores catástrofes demográficas da história da humanidade, ceifando milhões de vidas. Agora, já surgiu um caso suspeito de um Pataxó na aldeia Coroa Vermelha, sul da Bahia, que pode ter contraído o coronavirus no contato com turistas estrangeiros. Como sobreviver sem a venda de artesanato? – pergunta o guarani Miro Silva, ex-aluno nosso.
Quanto tempo vai durar a quarentena? Quantos sobreviveremos à pandemia? Ninguém sabe. Na Itália, na sexta (20), em um único dia o vírus matou 627 pessoas, sem extrema-unção, sepultados em condições precárias, num desfile fúnebre de caminhões militares. Um amigo meu, com quem converso diariamente, está com câncer na próstata, sem poder operá-lo em decorrência dos riscos existentes. Diante da propagação do vírus em velocidade crescente, somos invadidos por um sentimento de impotência, similar àquele registrado por Carlos Drummond em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. Como ser solidário nessas circunstâncias?
– “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo” – lamenta o poeta, que anuncia: “Quando me levantar, o céu / estará morto e saqueado, / eu mesmo estarei morto, / morto meu desejo, morto / o pântano sem acordes”.
O que pode fazer o Brasil pelos Jefersons, pelos indígenas, por cerca de 2 milhões de pessoas na fila para a aposentadoria, por aqueles que serão contaminados pelo coronavirus independente da classe social? As respostas não foram dadas pelo ainda presidente Bolsonaro, mascarado, ao lado de ministros igualmente mascarados. Falou para o país como se estivesse se dirigindo à minoria de fanáticos no curralzinho do Alvorada, com uma retórica grotesca beirando a demência, sem a menor noção de que a sua fala institucional, como Chefe de Estado, faz parte de suas obrigações.
Limitado intelectualmente, manifesta seu rancor e agride a imprensa, o Congresso Nacional, o STF, o sistema democrático. Mente. Mente descaradamente. Mente sempre sem se preocupar com as evidências que destapam as mentiras. O país está à deriva.
Se Bolsonaro entrar nas barcas de Niterói, no metrô de São Paulo ou nos ônibus de Belo Horizonte em busca de aplausos, como prometeu por trás da máscara, certamente viajará, ele sim sozinho. Nós estamos isolados, mas nunca sozinhos. Isolado e sozinho parece cada vez mais o capitão. Como escreveu José Simão, “Bolsonaro testa negativo para presidente”.
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P.S. Em decorrência de complicações da cirurgia bariátrica, faleceu Devair Fiorotti, 48 anos, autor de “Urihi, nossa terra, nossa floresta” e “Panton pia”, com 79 cantos Macuxi e Taurepang. Deixou mulher, quatro filhos e muitos amigos. Seu corpo foi velado com música e poesia nessa sexta (20) no malocão do Instituto Insikiran da Universidade Federal de Roraima, da qual era professor. “Ele era um amigo generoso. Era um aliado dos índios. Tudo o que ele fez foi com paixão e poesia” – escreveu saudosa sua amiga Loretta Emiri. Quando Bolsonaro assinou o projeto de lei permitindo a mineração em terras indígenas, Devair indignado postou no facebook:
– A gente estuda pra caramba, vive com os indígenas pra tentar entender o que eles são e descobrir o que lhe causa males. Um ignorante desses, que nunca conviveu com ninguém nem se aprofundou no assunto, que se nega a ter especialistas a seu redor sobre o tema, assina uma merda dessas, expondo-os ainda mais, inclusive com a vulnerabilidade ambiental e de contato brusco.
Esse era o nosso Devair, que deixa muitas saudades.
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