‘Quantos ianomâmis vão morrer?’ O isolamento deste líder indígena na floresta

Filho de Davi Kopenawa, o autor do livro ‘A queda do céu’, revela o medo de o xawara, coronavírus no idioma yanomami, chegar às aldeias por meio dos garimpeiros

Por Bertha Maakaroun, no Estado de Minas

“Os garimpeiros estão na nossa casa e não temos a barreira contra a transmissão da pandemia. Pode espalhar dentro da terra indígena, temos nossos velhinhos. E se chegar, se entrar lá, quantos ianomâmis vão morrer? Não sabemos. É problema muito sério e corremos esse risco trazido por garimpeiros em nossa comunidade. Nós, yanomami, estamos com muito medo. Quem vai nos proteger, quem vai barrar essa doença?”

O desabafo é de Dário Vitório Kopenawa Yanomami, de 36 anos, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, com sede em Boa Vista (RR), que representa a Terra Indígena Yanomami – 96.650 quilômetros quadrados de floresta tropical, demarcada por decreto presidencial em 25 de maio de 1992, de incalculável biodiversidade, localizada entre os estados de Roraima e do Amazonas. Vivem nesse território 26.780 yanomamis em 380 aldeias, ou casas coletivas (malocas), onde famílias estendidas partilham o labor, o sabor e os sonhos de uma existência, em que as atividades preferidas estão na floresta, de onde soam os cantos dos espíritos que habitam rios, árvores, animais e plantas.

Dário é filho do xamã, ativista e porta-voz yanomami Davi Kopenawa, autor do livro A queda do céu – Palavras de um xamã yanomami, que escreveu com o etnólogo francês Bruce Albert.  Dário foi pego pelo isolamento social com a filha e a esposa, em Boa Vista, onde passa nove meses do ano – os outros três são na aldeia Watoriki. O pai, Davi Kopenawa, está afastado com o seu povo na floresta.

E é por meio de rádio, pois não há sinal de celular no território yanomami, que Dário acompanha a situação. Ele está muito preocupado com o fantasma da pandemia, que chama de xawara, consequência do desequilíbrio provocado pela destruição da terra-floresta.

“Todas as aldeias estão em isolamento social. E assim vai continuar até que essa pandemia volte para a sua origem. E eu aqui, em Boa Vista, com a minha mulher e filha, vamos ficar 14 dias em quarentena e fazer o exame, antes de poder voltar pra Watoriki”, explica Dário.
“Cansamos de pedir: não destruam as florestas, não poluam os rios, vai dar problema, vão surgir doenças. Mas o homem branco não entende. Nós sabemos. Mas agora vocês jornalistas, médicos, juízes, promotores, presidente, deputados, vocês têm de aprender hoje: esse é o resultado. O mundo global está morrendo. E não foi falta de os povos indígenas avisarem”, assinala Dário.

Como está o enfrentamento da pandemia pela comunidade yanomami?

Essa pandemia está muito próxima da terra yanomami e querendo entrar. Essa pandemia é imaterial, é como vento, não tem planejamento, não tem semana para entrar. Muitos indígenas já pegaram a Covid-19 no Amazonas e estão morrendo. São nossos parentes. Estamos muito tristes, porque somos povos da floresta. E aqui em Boa Vista, a pandemia chegou em vários municípios; Alto Alegre, Cajaí, Pacaraima, Cantá e outros. Ela está muito próxima das nossas comunidades, da terra indígena yanomami. Estamos monitorando por radiofonia, conversando com as lideranças para que não saiam do nosso território, para que cada comunidade fique em sua aldeia. Todas as 350 aldeias de nosso território estão em quarentena. Mas a doença pode chegar pelos garimpeiros, que entram ilegais no nosso território, sem pedir permissão, sem fazer teste. A pandemia é um problema mundial: não vai escapar nem formiga.

Que tipo de proteção vocês estão tendo para o isolamento do territóri yanomami e o enfrentamento do coronavírus?

Não temos proteção. Essa doença é muito forte, muito perigosa. Na terra yanomami os garimpeiros entram por vários lugares, como os rios Mucajaí e Uraricoera. Por esses rios, os invasores vão trazer a pandemia do coronavírus para os yanomamis. Entram e andam em qualquer canto, pelos rios, pelas matas, na proximidade das aldeias, ficam ao redor das comunidades.  Os garimpeiros estão na nossa casa e não temos a barreira contra a transmissão da pandemia. Pode espalhar dentro da terra indígena, temos nossos velhinhos. E se chegar lá, se entrar lá, quantos yanomamis vão morrer? Não sabemos. É problema muito sério e corremos esse risco trazido por garimpeiros para nossa comunidade. Nós estamos com muito medo. Quem vai nos proteger, quem vai barrar essa doença? Aqui em Boa Vista, o governo não dá conta. Imagina na terra yanomami isolada, com tantos invasores.

Atualmente, há diversos núcleos ilegais de garimpagem encravados no território demarcado. Esses garimpeiros chegam às aldeias, onde estão as casas coletivas?

As maiores invasões de garimpeiros ilegais na terra yanomami começaram na década de 80.  Nessa época havia 40 mil garimpeiros. Muitas pistas clandestinas foram abertas na região de Rio Branco. Eles trouxeram doenças. Morreram muitos ianomâmis nessa época, assassinados, massacrados, por violência, prostituição, arma de fogo, malárias e muitas epidemias trazidas pelos garimpeiros. Desde 2015, esses garimpeiros voltaram a aumentar. Está tendo um aumento grande, e a maior preocupação com esse garimpo ilegal é que entram sem autorização, sem permissão e sem ser examinados. Esses garimpeiros vão transmitir o coronavírus na Terra Indígena Yanomami. Os garimpeiros entram, não pedem autorização. Mas sabem onde vão entrar, pois tem outros garimpeiros que mantêm contato com eles, que estão dentro do nosso território. Eles fazem contato pelo rádio, via satélite, usam internet na Terra Indígena Yanomami. Por isso eles têm contato, se organizam e mandam mensagens a outros estados. É um grupo de garimpo organizado.  Eles levam equipamentos de tecnologia, já há muitos anos. Eles chegam ao estado de Roraima, depois pegam avião, helicóptero e pousam nas pistas ilegais. Então são grupos organizados.  Nós temos apoiadores e parceiros que nos ajudam a localizar onde pousam, como se organizam, sabemos tudo isso. Já foi encaminhado ao Exército, à Polícia Federal, ao Ministério Público todo o mapeamento das pistas clandestinas. Já fizemos várias denúncias, encaminhamos aos órgãos públicos, ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal, ao Exército Brasileiro. Já fomos em Brasília, entregamos denúncia para o Ministério da Justiça, ao Ministério da Defesa, à Secretaria de Governo. E a outros órgãos públicos. Entregamos denúncia há muitos anos para tomarem providências e retirar os garimpeiros da nossa terra.

Com a pandemia, que tipo de assistência a comunidade yanomami está recebendo do governo? 

O Distrito Sanitário Especial Yanomami trabalha na saúde indígena. Esses profissionais estão trabalhando nas nossas comunidades. Mas não podem fazer nada contra os invasores, que estão ao redor e podem levar a doença.

Como ocorreu a morte de um jovem yanomami de 15 anos?

O nosso jovem era natural da aldeia Rehebe, localizada na terra indígena yanomami às margens do Rio Uraricoera. Ele morava em Alto Alegre (a 87 quilômetros de Boa Vista), não estava em nossa comunidade quando adoeceu. Depois ele entrou no seu território, a gente não sabe se vai transmitir a doença em sua comunidade. Quando ele voltou para Boa Vista, no dia 3 de abril, ficou na UTI, no Hospital Geral de Roraima. Depois de uma semana, saiu o primeiro resultado para a Covid-19. Os médicos falaram que deu negativo. Ele continuou no hospital, fizeram outro exame e saiu o resultado positivo. Foi a primeira morte de um yanomami de coronavírus em Boa Vista. Em meio à pandemia de coronavírus, há novos alertas de devastação da floresta feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), realizados pelo sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real). Foi registrado recorde no primeiro trimestre de 2020, com aumento de 51,4% da área ameaçada por atividades ilegais em relação ao mesmo período de 2019.

Além do garimpo ilegal, vocês têm tido também desmatamento em seu território?

O desmatamento está se aproximando do nosso território. Está acontecendo na região do Alto Alegre, no Cajaí, onde os municípios são integrados no limite do território yanomami. Estamos monitorando. É desmatamento, é garimpo, é ambição do homem branco. Está aí o desequilíbrio que afeta todo o planeta.

No livro A queda do céu, seu pai, Davi Kopenawa, descreve o desastre ambiental do planeta, discorrendo sobre o envenenamento e o aquecimento do céu, decorrentes, no limite, do fetichismo “da mercadoria” (a busca da riqueza, o consumo desenfreado), cultivado pelo homem branco. Ao descrever esse processo, Davi Kopenawa considera que apenas os xapiri (espíritos da floresta) podem conter esses seres maléficos, combater as epidemias (xawara) e “manter o céu em seu lugar”. O que esta obra tem a nos dizer sobre o momento que vivemos hoje?

N.a nossa língua, o coronavírus se chama xawara. A xawara é da cosmologia yanomami. Antes de acontecer essa pandemia, meu pai já alertava. Nossa cosmologia ianomâmi e Y’ekwana avisou. Quando a vida está em harmonia, não morrem as crianças nem os adultos nem os animais nem a floresta adoece. A floresta é harmonia para todos. Mas os próprios homens brancos, procurando riqueza através de ouro, petróleo, mineradores, desmatamento, espalharam esse desequilíbrio, essa epidemia, que se espalha como uma fumaça no mundo global.  É a ambição dos brancos pelos minérios debaixo da terra que empurra as invasões de garimpeiros e provocam a degradação da floresta. Esse é o desequilíbrio. Por isso as pessoas estão adoecendo. Isso os xamãs sabem. Por isso meu pai xamã escreveu A queda do céu, para que jovens, antropólogos, mestrandos, doutorandos, possam aprender nesse livro, antes que seja tarde. A catástrofe dessa pandemia é consequência do desastre ecológico, do massacre e do assassinato dos povos da floresta, que preservam as matas, que vivem em harmonia com a natureza. Cansamos de pedir: não destruam as florestas, não poluam os rios, vai dar problema, vão surgir doenças. Mas o homem branco não entende. Nós sabemos. Mas agora, vocês jornalistas, médicos, juízes, promotores, presidente, deputados, vocês têm de aprender hoje: esse é resultado. O mundo global está morrendo. E não foi falta de os povos indígenas avisarem. Na nossa cosmologia, meu pai Davi nos fala que só os xamãs sabem ainda chamar os xapiri (espíritos da floresta). Mas se a floresta for destruída, os rios secarão, as árvores morrerão e as montanhas vão rachar com o calor. Os xapiri que brincam na floresta vão fugir e não vão mais nos proteger. Sem eles, os xamãs não poderão mais evitar as fumaças-epidemias, nem vão conseguir deixar “o céu em seu lugar”. O mundo vai viver o caos. Vai ser o tempo da queda do céu. Todos adoecerão. Todos morrerão.

”Quando a vida está em harmonia, não morrem as crianças nem os adultos nem os animais nem a floresta adoece. A floresta é harmonia para todos. Mas os próprios homens brancos, procurando riqueza através de ouro, petróleo, mineradores, desmatamento, espalharam esse desequilíbrio, essa epidemia, que se espalha como uma fumaça no mundo global” (Dário Kopenawa)

De Boa Vista, Dário Kopenawa monitora pelo rádio a situação da aldeia onde está seu pai: “Estamos com muito medo” Foto: Arquivo pessoal

Livro ajuda a entender a origem de um povo

A terra-floresta é um ente vivo, parte integrante de uma complexa interação cosmológica entre humanos e não humanos. Nas palavras de Davi Kopenawa: “A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão”.

Na cosmologia yanomami, a Terra é chamada de o “velho céu”, pois, no princípio de tudo, o mundo fora esmagado pelo colapso do céu, lançando os seus habitantes ao submundo. Com a “queda do céu”, o seu avesso (o outro lado do céu) foi exposto, tornando-se a terra-floresta onde os ianomâmis emergiram e permanecem desde tempos memoriais. Um “novo céu” ergueu-se, mantido por fundações de metal, guardadas nos subsolos pelo deus (princípio organizador do universo) Omama. Contudo, esse “novo céu” e a terra-floresta estão sob constante ataque das forças do caos, representadas pelos agentes da devastação ambiental. Nessa leitura cosmológica, os xamãs yanomamis têm a função de trabalhar incansavelmente com seus aliados espirituais, os xapiri (espíritos da floresta), para evitar um novo apocalipse. Um “terceiro céu” bem acima, estaria a postos para substituir o colapso do “novo céu”, o que levaria, mais uma vez, à extinção do mundo.

A narrativa etnográfica, que parte da oralidade autêntica e vibrante do xamã Davi Kopenawa, foi apresentada, a partir dos anos 80 e ao longo de quase três décadas, ao antropólogo francês Bruce Albert. Transportada para o idioma francês e deste traduzido ao português, a cultura ancestral xamã foi transcrita para a obra A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (Companhia das Letras, 2015). Discorre sobre a história recente desse povo – sociedade de caçadores-agricultores, assentada na floresta tropical do Norte da Amazônia. Os yanomamis vivem em extenso território de 192 mil quilômetros quadrados em dois lados da fronteira Brasil-Venezuela, nas duas vertentes da Serra Parima, entre os vales dos rios Orinoco, no Sul da Venezuela, e na margem esquerda do Rio Negro, ao Norte do Brasil. A população soma, nos dois países, aproximadamente 36 mil pessoas em 640 aldeias, das quais 380 em solo brasileiro, reunindo 26.780 indígenas entre os estados de Roraima e do Amazonas, na demarcada terra indígena yanomami.

Mas, para além dos fatos recentes da história desse povo, ao eleger o interlocutor branco Bruce Albert, Davi Kopenawa pretendeu deixar o legado escrito de sua cultura ancestral à sociedade de “brancos” e aos próprios descendentes. Advertiu: “Se quiser pegar minhas palavras, não as destrua. São as palavras de Omama (deus ou força primordial) e dos xapiri. Desenhe-as primeiro em peles de imagens, depois olhe sempre para elas. Você vai pensar: ‘Haixopë! É essa mesmo a história dos espíritos!’. E, mais tarde, dirá a seus filhos: ‘Estas palavras escritas são as de um ianomâmi, que há muito tempo me contou como ele virou espírito e de que modo aprendeu a falar para defender a sua floresta’. Depois, quando essas fitas em que a sombra das minhas palavras está presa ficarem imprestáveis, não as jogue fora. Você só vai poder queimá-las quando forem muito velhas e minhas falas tiverem já há muito tempo sido tornadas desenhos que os brancos podem olhar. Inaha th a? Está bem?”

A partir de sua perspectiva cosmológica, Kopenawa pontua e interpreta a ambição e o fetichismo pela “mercadoria” na sociedade branca, que leva à busca predadora por riqueza, ao ataque à Terra e promove as mudanças climáticas no planeta. 

Aqui as profecias emanadas do coração da floresta são dirigidas não apenas ao Brasil do extrativismo brutal, do garimpo ilegal que leva à linha de frente homens miseráveis e igualmente violentos, que, rincões afora, sujam as mãos em assassinatos de ativistas indígenas e ambientalistas. 

O recado é sobretudo dirigido àqueles empresários, políticos e representantes eleitos, que proporcionam a retaguarda para a corrida extrativista ilegal em terras indígenas. A crítica se dirige também ao resto do mundo que repousa sob o mesmo fetiche. 

A densa abordagem narra, sobretudo, a cultura ancestral, a origem mítica e a dinâmica invisível do mundo, confrontada pela civilização ocidental em atos que o levam a predizer um futuro trágico para o planeta. (BM)

***

A queda do céu: palavras de um xamã yanomami•  De Davi Kopenawa e Bruce Albert•  Companhia das Letras•  768 páginas•  R$ 84,90 e-book: R$ 44,90

Trecho de A queda do céu

“Os brancos não pensam muito adiante no futuro. Sempre estão preocupados demais com as coisas do momento. É por isso que eu gostaria que eles ouvissem minhas palavras através dos desenhos que você fez delas; para que penetrem em suas mentes. Gostaria que, após tê-las compreendido, dissessem a si mesmos: ‘Os yanomami são gente diferente de nós, e, no entanto, suas palavras são retas e claras. Agora entendemos o que eles pensam. São palavras verdadeiras! A floresta deles é bela e silenciosa. Eles ali foram criados e vivem sem preocupação desde o primeiro tempo. O pensamento deles segue caminhos outros que o da mercadoria. Eles querem viver como lhes apraz. Seu costume é diferente. Não têm peles de imagens, mas conhecem os espíritos xapiri e seus cantos. Querem defender sua terra porque desejam continuar vivendo nela como antigamente. Assim seja! Se eles não a protegerem, seus filhos não terão lugar para viver felizes. Vão pensar que a seus pais de fato faltava inteligência, já que só terão deixado para eles uma terra nua e queimada, impregnada de fumaças de epidemia e cortada por rios de águas sujas!” Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa. Quero fazê-los escutar a voz dos xapiri, que ali brincam sem parar, dançando sobre seus espelhos resplandecentes. Quem sabe assim eles queiram defendê-la conosco? Quero também que os filhos e filhas deles entendam nossas palavras e fiquem amigos dos nossos, para que não cresçam na ignorância. Porque se a floresta for completamente devastada, nunca mais vai nascer outra.

Davi Kopenawa no Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, que condenou o garimpo em suas terras. Foto: Victor Moriyama /ISA

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