Estudo mostra que menos de 10% dos municípios brasileiros com terras indígenas possuem leitos de UTI; sistema de saúde indígena atende apenas quadros leves
Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca, Agência Pública
Está na Amazônia a maioria das Terras Indígenas (TIs) em situação crítica para a pandemia do coronavírus no Brasil. Além de sete territórios com maior fragilidade, os estados da Amazônia Legal possuem 239 TIs com índices de vulnerabilidade intensos ou altos em relação à Covid-19.
Os dados estão em um estudo recém-publicado pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) a que a Agência Pública teve acesso.
No trabalho, demógrafos, antropólogos, geógrafos e economistas avaliaram 471 TIs em relação à vulnerabilidade à pandemia de coronavírus. O estudo levou em consideração fatores como a distância de centros com unidades de terapia intensiva (UTI), saneamento e porcentagem de idosos na população, entre outros.
Índice de vulnerabilidade em terras indígenas na Amazônia Legal
E um dos dados é alarmante: de 1.228 municípios brasileiros onde há ao menos um trecho de TIs, apenas 108 possuem algum leito de UTI.
Além das TIs, os pesquisadores avaliaram que seis Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) estão em situação crítica, todos eles nos estados da Amazônia Legal.
Um deles é o Yanomami, em Roraima, onde está a TI de mesmo nome. Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), submetida ao Ministério da Saúde, o distrito já registrou uma morte: a de um menino Yanomami de 15 anos. Alvanei Xirixana faleceu no início de abril, após seis dias internado na UTI do Hospital Geral de Roraima (HGR), em Boa Vista.
Os indígenas estão entre as populações com mais risco para a Covid-19 devido à própria vulnerabilidade social e histórica a que esses povos estão submetidos, explica Marta Azevedo, demógrafa, indigenista, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e uma das autoras do estudo. “Todos os indicadores demográficos de saúde são piores entre os indígenas. A taxa de mortalidade é mais alta entre todas as raças, a de mortalidade materna, mesmo controlando o nível socioeconômico”, afirma.
Por isso, “o ideal é que o vírus não entre nas aldeias”, declara a médica sanitarista Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu, programa de extensão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que há mais de 50 anos atua no atendimento dos povos da bacia do rio Xingu. “É preciso interromper o acesso a essas comunidades, mas mantendo a comunicação e a criação de estratégias junto com os indígenas”, diz. Por si mesmos, os povos indígenas têm tomado medidas para evitar que o vírus os atinja: são vários os casos de etnias que têm bloqueado os acessos às aldeias, por exemplo.
UTI, um gargalo ainda maior para os indígenas
O levantamento da Abep mostra que todas as TIs em situação mais crítica para enfrentar a Covid-19 possuem um fator em comum: estão distantes dos centros urbanos com UTIs.
Para se ter uma ideia, a TI Acapuri de Cima – a mais crítica de todo o estado do Amazonas –, habitada pelos Kokama, está a quase 700 km em linha reta da cidade de Manaus, o único município do estado que possui leitos de UTIs para tratamento dos casos mais graves da Covid-19. Atualmente, mesmo Manaus já está com o sistema de saúde em colapso: o Hospital Delphina Aziz, unidade de referência para atenção às vítimas do coronavírus, atingiu sua capacidade máxima em 10 de abril, assim como os outros três hospitais de apoio na cidade.
No estado do Amapá, não há nenhum município com UTI; em Roraima e no Acre, os leitos de tratamento intensivo existem apenas nas regiões metropolitanas das capitais.
A sobrecarga do SUS é fator de risco para os indígenas tanto quanto para a população em geral. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), que engloba 34 DSEIs, cuida de ações de saneamento e da atenção básica de saúde nas aldeias, como o acompanhamento de pacientes com doenças crônicas. Administrado pela Sesai, ele foi instituído por lei em 1999 para que as ações e serviços de saúde voltados para os povos indígenas sejam prestados de forma diferenciada, considerando suas especificidades culturais, epidemiológicas e territoriais – e, inclusive, abrangendo os saberes tradicionais dessas comunidades.
No entanto, não é atribuição dos DSEIs o atendimento de média ou alta complexidade, que demanda profissionais especializados e recursos tecnológicos, como no caso das internações em leitos clínicos ou UTI.
Isso significa que, se um indígena apresenta suspeita de Covid-19 e seus sintomas são leves, ele pode ser tratado pela equipe de saúde de sua própria aldeia, “mas será necessário, dependendo da situação clínica desse paciente, encaminhá-lo para um serviço de referência. Ele segue então para um polo-base, onde poderá ter acesso a exames – como a testagem para o coronavírus”, explica a médica Sofia Mendonça. “Porém, se não estiver bem, tem que ir para uma unidade que atenda média e alta complexidade”, afirma.
“Esse vai ser o nó dessa epidemia”, diz a também médica Ana Lúcia Pontes. “A capacidade dos serviços de saúde é limitada, o sistema público já vinha num contexto de estrangulamento há anos com cortes de gastos, a população já enfrentava muitos problemas de desassistência, e agora, de uma vez só, tem um conjunto muito grande de pessoas necessitando dessa ajuda”, destaca a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenadora do Grupo Temático Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Por isso, há uma preocupação especial entre os povos indígenas com a disponibilidade dos leitos de UTI. “A partir do momento em que foi identificado um caso e vai precisar de atendimento pelo estado, essa é a questão. Como o município e o estado vão receber o indígena? Vai ter vaga?”, questionou a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, em entrevista online a jornalistas no começo do mês. “Se estão faltando leitos para os não indígenas, imagina para os indígenas, que estão longe.”
A inquietação da deputada tem base em números: de acordo com o Instituto Socioambiental, mais de 80% da extensão de todas as TIs do país se concentram no Norte, justamente a região que, junto com o Nordeste, dispõe dos maiores desertos de UTI no país. “É certo que isso torna os povos indígenas mais vulneráveis ainda, junto com os ribeirinhos, quilombolas e populações que vivem naquela região. Precisa-se assumir, enquanto política pública, que os indígenas são um grupo vulnerável, um grupo de risco”, argumenta Sofia Mendonça.
A insuficiência de leitos de terapia intensiva somada à velocidade com que pode evoluir o quadro clínico da Covid-19 faz com que as pesquisadoras ouvidas pela Pública chamem atenção para a importância de estabelecer estratégias específicas para a atenção aos povos indígenas. No início do mês, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) enviou cartas a todos os governadores do Brasil pedindo justamente que os planos emergenciais para atendimento dos pacientes graves de municípios e estados incluam a população indígena, “deixando explícitos os fluxos e as referências para o atendimento em tempo hábil, em articulação com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e DSEIs”.
Outra reivindicação da Apib, em alerta emitido no dia 18 de abril, é a construção de hospitais de campanha exclusivos para indígenas, como o Ministério da Saúde anunciou que fará em Manaus.
Falta de demarcação de terras é bandeira de Bolsonaro e aumenta vulnerabilidade
Apesar de a Amazônia Legal concentrar a maior parte das terras mais vulneráveis, há territórios indígenas em situação crítica por todo o Brasil – e um dos fatores é falta de conclusão na demarcação das TIs. Entre as dez terras mais vulneráveis ao coronavírus no país, sete estão com demarcação incompleta.
A região com a maior quantidade de territórios que ainda não passaram pela homologação – a última etapa do processo de demarcação – é o Sul do Brasil. Fica em Santa Catarina o maior número de territórios nessa situação: o estudo mapeou três TIs em situação de vulnerabilidade crítica que não tiveram a regularização concluída.
Uma delas é justamente a com uma das situações mais críticas de todo o Brasil, a Guarani do Araça’i, no extremo oeste do estado, habitada por populações Guarani e Guarani Ñandeva. Além de três terras em situação crítica, em Santa Catarina há dois outros territórios não demarcados em situação de vulnerabilidade alta e intensa.
Como aponta o estudo, em territórios não demarcados é mais fácil a entrada de não indígenas e mais difícil estabelecer o isolamento das comunidades. Segundo os pesquisadores, nesses locais os indígenas são mais expostos a “possíveis contaminações por outras doenças e também pelo coronavírus”.
O governo Jair Bolsonaro não homologou nenhuma TI, apesar de ter herdado do governo anterior mais de 50 com processo julgado e que poderiam ter sido demarcadas. O governo Bolsonaro foi acusado pelo Ministério Público Federal de manobrar para travar a demarcação de TIs no Brasil, por meio de pedidos de análises de estudos já realizados e a constante troca de funcionários e atribuições da Funai. Antes mesmo de assumir, o presidente já havia declarado que “no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”.
Nas TIs, falta saneamento e população está envelhecendo
Além da distância de hospitais com UTIs e falta de demarcação, as TIs têm outro ponto de vulnerabilidade na pandemia: a falta de saneamento. Segundo o estudo apontou, cerca de quatro em cada cinco domicílios nos territórios indígenas não possuíam abastecimento de água, de acordo com o último Censo, de 2010. Mais da metade das terras tinham todos os domicílios sem acesso a tratamento de água.
Afora o baixo acesso a água tratada, o trabalho apontou que quase um terço dos domicílios em terras indígenas não possuía banheiro de uso exclusivo, um indicador de falta de saneamento. A falta de sanitário também pode aumentar a possibilidade de contágio por doenças infecciosas, no caso de banheiros compartilhados. A maior parte das terras sem banheiro de uso exclusivo fica no Amazonas.
Outro elemento de vulnerabilidade é o envelhecimento da população: o Censo de 2010 já havia apontado 17 TIs onde pelo menos um quinto da população tinha mais de 50 anos de idade, fator considerado de risco para o coronavírus. A maioria desses territórios está na Amazônia Legal, mas também há uma grande proporção de indígenas idosos em TIs nas regiões Sul e Nordeste e no Mato Grosso do Sul.
Por fim, há ainda seis TIs com mais de dez moradores por domicílio, a maior parte no estado do Mato Grosso.
A morte de indígenas idosos pela Covid-19 não é só uma consequência nefasta do ponto de vista da saúde pública, mas também no aspecto cultural, afirma o antropólogo Márcio Meira, ex-presidente da Funai. “A chegada do coronavírus é uma ameaça muito grande da perda eventual de pessoas detentoras de grandes conhecimentos”, declarou Meira em entrevista ao portal Amazônia Real. “Se um ancião se for, vai com ele toda uma história. Os jovens dependem totalmente dessas pessoas para receberem o conhecimento das tradições, que só eles possuem. É uma população pequena, mas com importância cultural imensa.”
Indígenas em cidades são deixados de fora da contagem
A Sesai tem divulgado diariamente dados sobre casos confirmados e óbitos por Covid-19 entre indígenas. No entanto, a Apib e especialistas afirmam que os números podem estar subestimados, já que a secretaria contabiliza e atende apenas pessoas que vivem em aldeias. Por exemplo, no momento, enquanto a Sesai registra três mortes pela doença, a Apib conta sete.
Em um segundo alerta, a organização “repudiou” a diferença de contagem e classificou a situação como uma “ação de racismo institucional que invisibiliza e desassiste os povos indígenas que vivem em áreas urbanas”. “Somos indígenas dentro ou fora de nossos territórios. Estamos em uma situação de grande vulnerabilidade, com risco real deste novo vírus causar outro genocídio”, diz o texto.
De fato, uma portaria de 2004 determina que a saúde indígena deve ser voltada para as “populações aldeadas”. Mas existe uma discussão em torno do assunto. Para Ana Lúcia Pontes, isso pode gerar subnotificação. “Não será possível fazer uma análise da progressão da epidemia na população indígena brasileira. Só vamos ter dados sobre quem estava dentro dos territórios. Nesse sentido, parte da população ficará inviabilizada”, aponta. “Tem que haver o acompanhamento de um cenário epidemiológico indígena amplo e plural.”
Os indígenas que vivem em áreas urbanas, mas fora de aldeias, normalmente já encontram dificuldades para acessar os serviços de saúde e muitas vezes precisam suprimir sua identidade para conseguir atendimento no SUS. Com o sistema de saúde sobrecarregado por causa da pandemia e fora da abrangência de políticas específicas, sua situação pode piorar. “Entendemos que a Sesai não tem como garantir a assistência a essas pessoas, mas é possível estimular as secretarias municipais e estaduais a olharem para a população indígena urbana e garantir que esteja devidamente acompanhada e identificada”, afirma a médica.
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Foto: Alex Pazuello/Semcom – Arte:Bruno Fonseca/Agência Pública