Demissão de Moro marca o divórcio entre a Lava Jato e o bolsonarismo. Por João Filho

No The Intercept Brasil

O PEDIDO DE DEMISSÃO de Sergio Moro representou o fim da aliança entre o lavajatismo e o bolsonarismo. O fim é melancólico e previsível, mas não dá para dizer que a união não foi um sucesso enquanto durou. A Lava Jato, que começou como uma operação policial, se tornou uma máquina política capaz de derrubar e eleger presidentes da República. As publicações da Vaza Jato escancararam o cunho político da operação, que tinha obsessão punitiva em relação aos políticos do PT, mas poupava políticos mais à direita como FHC e Álvaro Dias. Havia uma preferência ideológica na operação, tanto que em 2014 seus integrantes já faziam campanha a favor da eleição de Aécio nas redes sociais. O antiesquerdismo foi a liga que uniu o lavajatismo e o bolsonarismo. Não foi à toa que Bolsonaro foi o candidato dos integrantes da Lava Jato na última eleição, como confessou um ex-chefe da operação.

Voluntariamente ou não, a Lava Jato pavimentou o caminho para o triunfo do discurso anti-política que colocou o bolsonarismo no poder. Durante a campanha presidencial, Sergio Moro atuou nos tribunais para influenciar o processo eleitoral. Faltando seis dias para o fim do primeiro turno, Moro resolveu, sem absolutamente nenhum motivo para isso, divulgar trechos de uma delação de Palocci que prejudicaria o então candidato petista Haddad. Mais tarde, a Vaza Jata comprovaria que nem o próprio Moro acreditava nas delações de Palocci, mas as divulgou mesmo assim.

Naquela época, Moro já conversava com Paulo Guedes sobre um convite para chefiar o Ministério da Justiça. Esse momento talvez tenha sido o nascimento formal da aliança entre bolsonarismo e lavajatismo. O que era namoro virou um casamento, diria Bolsonaro, tão afeito a esse tipo de analogia idiota. O homem que personificava a Lava Jato e era pintado como uma reserva moral decidiu integrar o governo de um extremista de direita que construiu uma carreira como deputado na base das rachadinhas, defendendo milícias, empregando funcionários fantasma e atacando valores democráticos. O lavajatismo emprestou seu verniz de seriedade para um bolsonarismo destrambelhado. Sem esse apoio, Bolsonaro jamais venceria a eleição.

No governo, Sergio Moro se mostrou um bolsonarista de quatro costados. Perdoou o caixa 2 de Onyx, atuou como advogado da família Bolsonaro em episódios cabeludos como do condomínio Vivendas da Barra, e apoiou o presidente em quase todas as suas loucuras autoritárias. Em boa parte da sua gestão, não atuou com a grandeza que requer o cargo, mas como um  soldado raso do bolsonarismo.

Houve muitos atritos também. Bolsonaro vetou nomeações do ministro, tirou o Coaf do ministério e interferiu na Polícia Federal. Mesmo assim, a manutenção da aliança continuava interessante para ambos. Moro seguia com seu palanque eleitoral — a essa altura imagino que ninguém mais duvide das suas pretensões políticas —, e Bolsonaro mantinha o seu fiador ético.

Para proteger seus filhos de investigações, Bolsonaro determinou a exoneração do diretor-geral da PF Maurício Valeixo à revelia do ministro. Esse teria sido o estopim para a demissão de Moro. Não foi um pedido de demissão qualquer. Foi uma demissão histórica. Moro saiu, mas saiu atirando. O ministro mais popular do governo Bolsonaro acusou, ainda que indiretamente, o presidente de diversos crimes durante o exercício do cargo, entre eles: falsidade ideológica, obstrução da justiça e crime de responsabilidade. Disse ainda que Bolsonaro admitiu que a exoneração do diretor da PF era, sim, uma interferência política. Revelou também que o presidente tinha preocupação com inquéritos em curso no STF, desejava colher informações diretamente com o diretor-geral e os superintendentes, e exigia ter acesso a relatórios de inteligência. Moro também fez uma acusação de falsidade ideológica ao afirmar que o decreto da exoneração de Valeixo não foi assinado por ele. Além disso, a exoneração publicada no Diário Oficial da União consta como se tivesse sido um pedido do diretor, o que é mentira. Ou seja, um importante instrumento de transparência do governo foi usado para fazer politicagem barata e enganar a população.

Há quem diga que Moro sai do governo maior do que entrou. Se essa leitura está levando em conta apenas a questão eleitoral, está certa. O ministro mais popular do governo saiu atirando e se colocou como um dos principais antagonistas da reeleição de Bolsonaro. Já do ponto de vista moral, o ex-ministro saiu ainda mais minúsculo. Fez uma gestão ruim, marcada essencialmente pela repressão à violência, sem grandes projetos para a segurança pública.

Na coletiva de despedida, Moro listou uma série de feitos da sua gestão, como o “recorde de destruição de plantação de maconha no Paraguai”. Depois de quase um ano e meio à frente de um ministério complexo, o ex-juiz sai se gabando por uma bobagem dessas. Como ministro da Justiça do Brasil, Sergio Moro foi um excelente xerifinho do interior do Paraná.

À tarde, Bolsonaro fez um discurso atacando Moro, usando um tom pessoal, um texto confuso, misturando assuntos. Se pintou como uma vítima, um homem que foi largado ferido na estrada.  Acusou-o de usar a permanência de Valeixo no cargo como moeda de troca para uma vaga no STF.  Moro apenas negou no Twitter, mas já tinha preparado um grande jogada contra Bolsonaro à noite. O ex-ministro vazou conversas que manteve com a deputada Carla Zambelli e o presidente para a Globo, que exibiu no Jornal Nacional. Em uma delas, a deputada, que é muito próxima do presidente, tenta comprar a permanência de Moro com uma vaga no STF. O ex-juiz responde “prezada, não estou a venda”. Uma frase que parece ter sido pensada já no vazamento. Pareceu tudo muito roteirizado. Um dos prints da conversa com Bolsonaro foi tirado antes mesmo do presidente visualizar a última mensagem, o que sugere que Moro já projetava o vazamento. O Jornal Nacional fez um resumo das suas realizações à frente do ministério, mas ignorou a Vaza Jato, escândalo do qual foi protagonista. Foi assim que Sergio Moro brilhou no jornal de maior audiência do país como o homem que não se corrompeu, que não se vergou diante da sanha dos poderosos. O ex-juiz não está de brincadeira no jogo político.

O heroísmo de Sergio Moro foi uma fabricação midiática. Mesmo depois da Vaza Jato, continuou sendo incensado pelo jornalismo lavajatista. Bolsonaro apanha bastante, mas Moro ainda conta com simpatia. Após o anúncio da demissão, já se via pipocar na imprensa a ideia de que o ex-ministro saiu porque, coitadinho, não aguentou mais interferências políticas de Bolsonaro. Ora, façam-me o favor! Sergio Moro sabia exatamente onde estava pisando quando topou integrar o governo de um político que fez fama atacando a democracia e exaltando a ditadura militar. Foi conivente com absolutamente todas as falas golpistas do presidente. Em fevereiro, a Polícia Federal sob o seu comando concluiu não haver indícios de que Flávio Bolsonaro cometeu os crimes de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica, mesmo havendo uma pororoca de provas. Esse é o paladino moral do bolsonarismo.

Parte da imprensa parece que já começou a encerar o piso e acender as luzes da ribalta para o herói voltar a brilhar. A Folha, por exemplo, fez questão de lembrar que ele foi “juiz da Lava Jato” ao anunciar a sua demissão.

Na Globo News, Sergio Moro passou a tarde sendo exaltado pelo time de jornalistas que cobriram sua demissão. Mais de uma vez cometeram o ato falho de chamá-lo de “presidente”.

É assim que se vai construindo os monstros autoritários. Durante a coletiva, Sergio Moro surpreendeu ao elogiar os governos do PT por terem preservado a autonomia da PF. A declaração parece inusitada, mas há cálculo eleitoral embutido nela. Moro está se oferecendo ao público uma alternativa moderada (e de direita) a Bolsonaro. Depois da demissão, o juiz que não queria virar político acabou virando um potencial candidato à presidência da República. Se depender da generosidade costumeira da imprensa lavajatista, já está eleito.

Foto: Adriano Machado /Reuters

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