Coronavírus já atinge 18 etnias no país, nas aldeias e nas cidades

Povos Kokama e Apurinã, no Amazonas, têm dois mortos cada por Covid-19; indígenas de outros cinco povos morreram no mesmo estado; no Pará, um indígena venezuelano; levantamento inédito do De Olho nos Ruralistas vai além dos dados incompletos do governo

Por Maria Fernanda Ribeiro, em De Olho nos Ruralistas

Menos de um mês após a confirmação do primeiro caso de coronavírus entre indígenas no Brasil, pelo menos 10 etnias enfrentam a pandemia em seus territórios e também nas cidades, seja com mortes ou com casos confirmados. Apesar de os registros ainda estarem majoritariamente concentrados nos estados da Amazônia, o Covid-19 já começou a se espalhar por outras regiões do país, com testes positivos também em Pernambuco, Ceará, Espírito Santo e São Paulo.

Confira:

O levantamento, realizado pela reportagem do De Olho nos Ruralistas, identificou dez óbitos até o fim da semana passada, além de duas mortes suspeitas. Os povos Kokama e Apurinã, ambos no Amazonas, são os que concentram mais mortes, dois casos por etnia. Os números diferem dos boletins divulgados diariamente pela Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, que não considera em seus dados os indivíduos que vivem na cidade, o que tem gerado críticas das organizações indígenas e da sociedade civil. Para se ter uma ideia, somente em Manaus há entre 30 mil e 40 mil indígenas.

GOVERNO NÃO CONTA MORTOS NAS CIDADES

De acordo com a última divulgação da Sesai, de 22 de abril, havia quatro mortes confirmadas, sendo de um Kokama, de um Sateré-Mawé, de um Yanomami e de um Tikuna. Os números da União deixaram de fora, por exemplo, a morte de Lusia Lobato dos Santos, 87 anos, do povo Borari, na Vila de Alter do Chão, no Pará. Ela faleceu no dia 19 de março. Também não entraram nas estatísticas do boletim as mortes de dois irmãos da etnia Apurinã: Adilson Menandes dos Santos, 77, faleceu em Manaus no dia 20 de abril; o irmão, Clevelande, um dia depois.

Os dados da Sesai também não esclarecem quais são os povos atingidos e os municípios onde eles se encontram, o que dificulta o monitoramento e qualquer tipo de auxílio. Os dados são disponibilizados de acordo com cada Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), 34 em todo o Brasil. “Em relação a esses dados, temos mais perguntas do que respostas e sem saber quem são e onde estão exatamente fica mais difícil de ajudar”, afirma Valéria Paye, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

O Dsei Médio Purus, por exemplo, tem, de acordo com o documento da Sesai, três casos confirmados. O órgão fica em Lábrea, no sul do Amazonas, e engloba uma região de 187,1 mil metros quadrados, com a presença de cerca de 10 mil indígenas, de 17 etnias, em 116 aldeias. A reportagem procurou o distrito para obter mais informações sobre os indivíduos que testaram positivo, mas não obteve resposta. A Coiab também não soube informar. O Dsei Alto Solimões, com doze casos confirmados, atende a uma população de 70 mil indígenas de 237 comunidades.

Um enfermeiro indígena de 28 anos da etnia Galiby Kalinã, no Amapá, é mais um caso que está fora das estatísticas da Sesai. Ele, que atua na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), no município de Oiapoque, teve o teste confirmado para Covid-19 em meados de abril e não entrou para as estatísticas, segundo explicação do próprio órgão governamental, porque reside na área urbana.

CENSO DE 2010 APONTOU 300 ETNIAS

Segundo o último Censo Demográfico, realizado em 2010, havia 896 mil pessoas que se declararam ou se consideraram indígenas no país, sendo 572 mil (63,8%) residentes em áreas rurais. Desse total, 517 mil (57,7%) residiam em terras indígenas oficialmente reconhecidas. O Censo 2010 contabilizou aproximadamente 300 etnias e 270 línguas faladas, o que representa um dos maiores níveis de sociodiversidade do mundo. Nessa análise foi considerada a população autodeclarada indígena.

“É latente o racismo institucional do órgão que deveria acompanhar o caso de qualquer indígena, vivendo ou não nas cidade”, afirma Dinaman Tuxa, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Os dados apresentados pela Sesai não são reais e isso é assustador porque a negação dos dados se dá também para o movimento indígena e isso prejudica a nossa busca por apoio porque, para todos os efeitos, esses são os dados oficiais, que o mundo acompanha”.

“Sesai está sendo omissa, deve ser para blindar o governo”

Foi uma dificuldade para a Apib descobrir a qual etnia pertence o caso positivo registrado no Ceará, de uma mulher de 29 anos que está em casa e se recuperando bem, que hoje se sabe pertencer à etnia Tupinambá:

— Precisamos identificar onde está cada caso específico de contaminação e se não é um prejuízo, inclusive, de ajuda humanitária. A Sesai está sendo omissa e não sabemos qual o intuito disso, mas deve ser para blindar o governo porque não há política de contingenciamento para combater o coronavírus para não chegar aos territórios indígenas.

O Amazonas foi o primeiro estado do país a registrar um caso do novo coronavírus entre indígenas. A paciente é uma mulher da etnia Kokama, de 20 anos, moradora da aldeia São José, em Santo Antônio do Içá, a cerca de 250 quilômetros da fronteira com a Colômbia.

A reportagem procurou a Sesai para solicitar as etnias dos registros, mas o órgão, por email, afirmou que o levantamento era apenas por distritos.

UM TERÇO DOS INDÍGENAS VIVE EM MUNICÍPIOS DE ALTO RISCO

Um terço dos indígenas residem em municípios com alto risco para epidemia de Covid-19, aponta estudo inédito realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A pesquisa analisou o potencial de exposição de populações indígenas, conforme ocorre a disseminação do SARS-CoV-2 pelo território brasileiro, integrando diversas bases de dados.

Dos 817 mil indígenas considerados nas análises, 279 mil (34,1%) moram em municípios com alto risco para epidemia e 512 mil (62,7%) residem em municípios com baixo risco. Com a interiorização da epidemia, o que é esperado para as próximas semanas, deve ocorrer um expressivo aumento do montante da população indígena em alto risco.

O levantamento da Fiocruz buscou identificar quais são os segmentos da população originária que apresentam maior vulnerabilidade segundo diferentes recortes populacionais, representados por indígenas residentes em municípios e zonas urbanas e rurais, em municípios abrangidos pelos Dseis e em terras indígenas.

Segundo a pesquisa, terras indígenas em municípios com alta probabilidade de introdução de Covid-19 ficam, em sua maioria, próximas de centros urbanos como Manaus, Rio Branco, Porto Velho, Fortaleza, Salvador e capitais do Sul e Sudeste. A população indígena em zona urbana, de 190.767 pessoas, reside majoritariamente em municípios com alto risco para Covid-19. No Centro-Oeste essa população em alto risco corresponde a 67,5% da população indígena urbana da região; no Sul-Sudeste, a 79,4%.

Foto principal: Alex Pazuello/Prefeitura de Manaus

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