A grave situação por trás do deboche

Brasil tem mais um recorde nas mortes diárias. Governo federal quer rejeitar centenas de médicos. Os problemas dos testes em farmácias. Leia também: Trump acena distanciamento

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

E DAÍ?

“E daí? Quer que eu faça o quê?”. Jair Bolsonaro chocou o país com essa mesmíssima reação após o incêndio do Museu Nacional, quando concorria à presidência. Já no governo, também lançou a indagação quando confrontado com dados que indicavam o aumento das queimadas na Amazônia. Mas nunca essas palavras tiveram um tom de deboche tão pesado quanto ontem, quando ele se referiu às pessoas que morreram por covid-19 no Brasil – e, por tabela, às milhares que ainda vão morrer. As palavras foram ditas à noite, em frente ao Palácio da Alvorada, em referência ao (novo) recorde de óbitos diários registrados no país. Foram 479 entre segunda e terça-feira, chegando a um total de 5.385. O número de casos no extremamente subestimado registro oficial chegou a 71,8 mil.

No vídeo, ouvem-se risadas com ‘piada’ que o presidente fez a seguir: “Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Depois de ser informado de que sua entrevista estava sendo transmitida ao vivo, ele tentou parecer menos cruel, mas, convenhamos, nem assim foi bom: “Lamento a situação que nós atravessamos com o vírus. Nos solidarizamos com as famílias que perderam seus entes queridos, que a grande parte eram pessoas idosas. Mas é a vida”.

O escárnio é ainda maior porque, desde que a pandemia começou, tudo o que modelos matemáticos, especialistas de saúde pública, a OMS e até jornalistas fazem justamente é indicar sobre o que ele e outros chefes de Estado deveriam fazer. Bolsonaro prosseguiu sua ‘argumentação’ ontem explicando que “o vírus vai atingir 70% da população, infelizmente é a realidade”. Mesmo que seja essa a realidade (o que ninguém tem certeza ainda), já estamos cansados de saber que 70% da população procurando atendimento de uma vez só é muito, muito diferente do que de forma escalonada.

Parece que, na cabeça do presidente, o melhor é que esses 70% (147 milhões de brasileiros) se infectem logo, que deixemos mesmo morrer na fila do hospital quem poderia ser salvo em condições adequadas e que tudo acabe o quanto antes porque ‘o Brasil não pode parar’. Ele ele voltou a dizer que está preocupado com a economia: “O próprio pessoal da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) de hoje disse que tem que ser retomado”. Antes, havia conversado com empresários da Firjan por videoconferência e garantiu a eles: “Hoje mesmo conversei com o ministro da Saúde e ele é favorável, vai emitir um parecer de modo que se volte com o futebol, com portões fechados (…). É, da nossa parte, o que nós podemos fazer, nós estamos colaborando com pareceres de modo que o comércio volte a funcionar o mais rápido possível”. Como já dissemos por aqui, o primeiro protocolo de reabertura no Brasil não foi feito pelo governo federal, mas pela Fiesp.

A propósito: termina hoje o prazo para que o presidente apresente o laudo do seus exames do novo coronavírus. Como dissemos aqui, na segunda-feira o Estadão conseguiu na Justiça o direito de obtê-los em 48 horas. O presidente segue afirmando que não pretende obedecer: “Eu quero mostrar que eu tenho o direito de não mostrar. Pra que isso? Daqui a pouco quer saber se eu sou virgem ou não, vou ter de apresentar exame de virgindade para você. Dá positivo ou negativo, o que vocês acham aí?”, disse Bolsonaro, também no Alvorada.

POPULARIDADE

Como vimos ontem, a última pesquisa do Datafolha mostrou que segue estável o número de brasileiros que apoiam Jair Bolsonaro, considerando seu governo bom ou ótimo. Mas, ao longo da pandemia, o perfil dos bolsonaristas está mudando. Segundo a Folha, parte dos mais ricos e escolarizados se afastou da base do presidente, enquanto entraram nela pessoas mais pobres e mais dependentes das políticas públicas. Justo os mais prejudicados pela crise do coronavírus. Em relação à pesquisa de quatro meses atrás, no segmento com renda maior que cinco salários mínimos a aprovação do presidente caiu 11%, enquanto cresceu 8% entre pessoas com até dois salários mínimos, assim como entre trabalhadores autônomos e informais que ganham até três salários.

PENSANDO BEM…

Na semana passada, o ministro da Saúde Nelson Teich disse que não era possível afirmar se havia uma “tendência” no forte aumento do número de mortes por covid-19 no Brasil. Agora, mudou de ideia. “O que tem que ficar claro é que é um número que vem crescendo. Há uns dias atrás eu falei que poderia ser um acúmulo de casos de dias anteriores, que foi simplesmente resgatado. Mas como a gente tem a manutenção desses números elevados e crescentes, temos que abordar isso como um problema, como uma curva que vem crescendo, como um agravamento da situação”, afirmou na coletiva de ontem, optando por ignorar que o crescimento também era cristalino antes.

O secretário de vigilância Wanderson Oliveira disse, mais uma vez, que boa parte dos 474 óbitos registrados ontem não são efetivamente das últimas 24 horas, mas referem-se a mortes anteriores que só agora foram registradas. Mas o Ministério continua não divulgando os dados completos, sobre quais mortes se referem a quais dias.

Na curtíssima entrevista, só foram respondidas cinco perguntas, todas previamente selecionadas pela assessoria do Ministério.

DE JOELHOS

Em um vídeo gravado em Campina Grande, na Paraíba, trabalhadores do comércio estão ajoelhados, ‘orando’ pela reabertura do setor. Mas parece que não era uma ação espontânea, e sim humilhante: várias denúncias feitas ao sindicato dos comerciários afirmam que as pessoas foram obrigada a participar. Em nota divulgada pelo Brasil de Fato, a entidade diz que os trabalhadores “foram coagidos a participar do movimento por parte de alguns empresários chefes de algumas empresas, com a ameaça da possibilidade de afastamento dos seus postos de trabalho”. O presidente do sindicato, José Nascimento Coelho, disse à Folha que não sabe se os funcionários foram obrigados a ajoelhar propriamente. “Não tenho essa informação”. 

A Câmara dos Dirigentes Logistas nega envolvimento. “Eles participaram de maneira espontânea, usaram a palavra no carro de som, porque sabem que se as empresas fecharem, perdem seus empregos. Em Campina Grande, está havendo apenas isolamento comercial. Os demais setores, bancos, lotéricas, supermercados, estão funcionando. No fim do evento, houve um momento em que decidiram fazer uma oração para que superemos a pandemia e muita gente participou. Eu mesmo me ajoelhei pedindo a Deus que esse momento difícil passe. O resto é distorção da esquerda“, disse seu presidente, Artur Bolinha. A Procuradoria do Trabalho da cidade está apurando.

OS PRIMEIROS NÚMEROS OFICIAIS

O governo federal divulgou pela primeira vez dados relativos aos efeitos da pandemia sobre o desemprego. A estimativa é a de que, até agora, haja cerca de 150 mil pedidos de seguro-desemprego a mais do que no mesmo período do ano passado. “Um ligeiro aumento, mas não é nenhuma explosão perto do que pensávamos, o que todos esperavam que poderia acontecer”, disse o secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Guaranys. Segundo o secretário de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, nas próximas semanas vão ser publicadas medidas para a manutenção dos empregos. A ver.

Na indústria, embora não haja estatísticas oficiais, a situação parece muito ruim. Das 65 fábricas de automóveis, 64 suspenderam suas operações neste mês. Uma sondagem da FGV/Ibre indica que a utilização da capacidade industrial no país caiu para 57,5%, ante 74,2% verificados em março. No setor calçadista já foram cortadas 24,4 mil vagas. A Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil) estima que 10% a 15% dos trabalhadores do setor perderão o emprego. O problema é que reina sempre a dicotomia entre empregos e vidas. “A primeira prioridade é a saúde, não há dúvidas. Mas gente tem que ter como a segunda grande prioridade o emprego (…). Se esse isolamento se prolonga, passa a ter fechamento de fábricas, desemprego em massa e com isso vai ter outro problema, que é crise social”, argumenta o presidente do Instituto Aço Brasil, Marco Polo de Mello Lopes, na Folha. 

NEGANDO MÉDICOS

O Ministério da Saúde resolveu descumprir uma liminar judicial que está valendo desde 6 de abril e determina que a pasta aceite inscrições de profissionais que participaram do Mais Médicos no edital de contratação lançado no fim de março para reforçar a atenção básica durante a epidemia. Isso porque o governo federal implementou uma trava bem pouco transparente e só aceitou inscrições de médicos que constassem de uma lista de “pré-aprovados”. E essa relação excluiu pelo menos 1,1 mil profissionais que participaram da iniciativa do governo Dilma Rousseff – embora a incorporação de todos os que estivessem trabalhando no Mais Médicos em 13 de novembro de 2018 esteja garantida pela lei que criou o programa substituto, Médicos pelo Brasil. 

Ao não cumprir a liminar judicial, além de estar sujeito à multa diária, o Ministério da Saúde atrasa todo o processo de envio desses profissionais para os locais que deles precisam, já que, em tese, a contratação prevista no edital não poderia ser concluída. O governo, no entanto, responde que os médicos devem chegar aos postos de saúde agora em maio. E que vai incorporar os médicos cubanos “caso o Judiciário entenda, liminarmente, ser necessário incluir determinado profissional”.

Há outas inconsistências na história, como mostra a reportagem do Intercept Brasil. Isso porque o Ministério alega que a tal lista de pré-aprovados foi elaborada pela Organização Pan-Americana de Saúde. Mas em e-mail obtido pelo site, a Opas nega qualquer participação no imbróglio. 

LIBERAÇÃO DE TESTES: BOA OU MÁ IDEIA?

Ontem, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou que a aplicação de testes rápidos para covid-19 seja feita por farmácias e drogarias. Os resultados saem em 10 a 30 minutos. Esses exames são feitos a partir de uma amostra de sangue, que revela se a pessoa tem ou não anticorpos para o novo coronavírus. Mas a própria Anvisa alerta que há limitações no procedimento. Por exemplo: se a pessoa estiver no estágio inicial da infecção, o exame pode dar falso negativo. De modo que nunca é possível definir se há uma infecção ativa pelo teste rápido.

Questão de Ciência explica que os testes rápidos utilizados na Coreia do Sul, país que virou exemplo para o mundo, são muito diferentes dos que estão disponíveis por aqui. Isso porque os sul-coreanos lançaram mão do teste rápido molecular, que é uma variação do exame padrão-ouro, o PCR, e detecta a presença do material genético do vírus no organismo. No Brasil, os únicos testes PCR disponíveis são lentos. E os testes autorizados agora em farmácias são sorológicos, capazes de detectar anticorpos que começam a ser produzidos, em média, 12 dias depois da infecção. 

“Por ser mais barato, fácil de usar – parece um teste de gravidez, não exige treinamento especializado nem EPI – à primeira vista, parece muito atraente. Mas é preciso esclarecer qual sua real utilidade. O teste rápido pode ser útil para mapear quem já teve a doença. Mas não serve para fazer diagnóstico preciso, nem para liberar pessoas da quarentena”, destaca a repórter Natalia Pasternak.

Os especialistas ouvidos pelo Estadão acreditam que a liberação dos testes levará a comportamentos de risco. “Pessoas que fizeram teste na rua [em Brasília] saíram dizendo ‘graças a Deus deu negativo’. Mas isso não quer dizer nada. Pode ser um falso negativo, pode ser que nunca esteve doente, que está doente e ainda não desenvolveu o anticorpo. Ela pode achar que está segura e vai visitar os pais idosos”, criticou a bióloga Natália Pasternak, da USP. O virologista Amilcam Tanuri, da UFRJ, aponta outro problema: “Os farmacêuticos vão orientar as pessoas, falar sobre todas essas questões? Vão encaminhar as pessoas a hospitais, se for o caso? Vão notificar o Ministério?”.

OUTRAS MEDIDAS

Também ontem, a Anvisa liberou a importação, venda e doação de equipamentos de UTI usados. Na lista, estão os respiradores. Só são permitidos aparelhos com, no máximo, cinco anos de uso e garantia de manutenção prévia.

E o governo federal decidiu estender até 27 de maio as restrições para ingresso de estrangeiros no Brasil por voos internacionais. A restrição começou por aqui no dia 27 de março. 

MAIS QUE O VIETNÃ

Se o aumento no número de casos e mortes no Brasil não preocupa Bolsonaro, o mesmo não pode se dizer de Donald Trump. Ontem, o presidente norte-americano afirmou que “o Brasil tem praticamente um surto” do novo coronavírus e questionou o governador da Flórida, Ron De Santis, se ele não cogitava banir voos que chegassem do Brasil. O político respondeu que pensa em instituir a obrigação de que os brasileiros sejam testados antes de desembarcar, mas reconheceu que, hoje, o maior problema da Flórida é a chegada de pessoas vindas de Nova Iorque, epicentro da epidemia nos EUA.

Ontem, o número de casos confirmados chegou à marca do um milhão por lá. O total de óbitos – 58.351 – já é maior do que as baixas registradas na Guerra do Vietnã, conflito que se estendeu por duas décadas. Mesmo assim, a flexibilização das quarentenas também está acontecendo no país. Dos 50 estados, 19 já começaram a reabrir estabelecimentos comerciais.

SINAIS DE SUBNOTIFICAÇÃO

Um levantamento feito pelo Financial Times sugere que o número de mortes causadas pela covid-19 pode ser 60% maior do que o registrado oficialmente. Isso significaria que ao invés dos cerca de 202 mil óbitos contabilizados pela Organização Mundial da Saúde, o planeta teria uns 320 mil. O jornal pesquisou registros de óbitos feitos nos meses de março e abril em 14 países, dentre eles Áustria, Espanha, Itália e Suíça. E comparou com o mesmo período do ano passado, concluindo que houve um aumento da ordem dos 122 mil óbitos. 

O Brasil não está entre as nações pesquisadas, mas por aqui o fenômeno se repete. Como divulgamos ontem, o Portal da Transparência do Registro Civil detectou alta de 47% nos atestados de óbito por causa indeterminada desde o início da pandemia.  

A suspeita é que muitas dessas mortes tenham sido causadas pelo novo coronavírus. Há também muitos registros de mortes por “pneumonia” ou “síndrome respiratória aguda” que não têm confirmação para covid-19. O jornal destaca ainda que o aumento nos índices pode ser um efeito colateral da pandemia, já que as pessoas têm evitado buscar atendimento em todo mundo com medo de contaminação, o que é particularmente sensível para cardíacos, por exemplo.  

VAI DAR PRA COMPARAR

A Organização Mundial da Saúde deve lançar, nas próximas semanas, uma plataforma que reúne dados sobre as centenas de medidas tomadas por governos em todo o mundo para conter a disseminação do novo coronavírus. A iniciativa é fruto de uma parceria da OMS com a London School of Hygiene and Tropical Medicine e pretende padronizar essas informações, que vem sendo coletadas por diferentes grupos de pesquisa. Na Universidade de Oxford, por exemplo, os cientistas estão monitorando 13 intervenções em mais de cem países. A partir disso, desenvolvem uma escala que mede o rigor das respostas dos diferentes lugares. Na Universidade de Viena, o número de intervenções compiladas chega a 170. Vão desde adesivos usados no chão para demarcar o espaço de dois metros entre pessoas numa fila até o fechamento de escolas. Com o lançamento da plataforma da OMS, essas medidas poderão ser acompanhadas em tempo real e comparadas com a situação dos países, o que vai garantir mais clareza sobre o que funciona ou não no combate ao vírus

EM BUSCA DE COBAIAS

A ONG americana 1 Day Sooner começou a convocar voluntários para testar vacinas contra o novo coronavírus em humanos. Mais de 3,9 mil pessoas já se ofereceram em 52 países; 200 só no Brasil. A ONG não desenvolve nem produz as vacinas, mas quer colocar esses voluntários em contato com as famarcêuticas para acelerar os testes das mais de 70 substâncias que estão sendo desenvolvidas atualmente. E não se trata de uma participação como outra qualquer. Normalmente – explicando de modo bem simplificado –, o que se faz para testar vacinas em humanos é pegar uma quantidade de pessoas, dividir em dois grupos, dar vacina para um e placebo para o outro. Depois, todos os envolvidos voltam à vida normal e são monitorados. Há indício de que a vacina funciona se, depois de um longo tempo de monitoramento, se observar que o grupo que a tomou ficou menos doente do que o do placebo.

Já ideia do 1 Day Sooner, diferente, é conhecida como ensaio com ‘desafio humano’: os voluntários tomam uma vacina experimental e, então, são propositalmente infectados, permanecendo sob observação em vez de voltarem para casa. Isso torna o processo muito mais rápido, é claro. Mas também muito mais questionável do ponto de vista ético. Afinal, quando tomam um composto cuja segurança já foi testada, os participantes dos testes ‘normais’ não enfrentam riscos extras. Eles só seguem vivendo sua vida, expondo-se aos mesmos riscos que já teriam caso não tivessem tomado vacina nenhuma. Já no ‘desafio humano’, todos estão arriscando suas vidas.

A reportagem da Vice observa que esse tipo de ensaio tem sido defendido por vários pesquisadores durante a pandemia, e que a modalidade já foi usada para doenças menos perigosas, como a gripe comum. A grande questão é que não se sabe muito sobre o novo coronavírus. Mesmo que só entrassem no estudo voluntários de fora dos grupos de risco (só jovens e saudáveis), ainda não se sabe direito o tipo de efeito que a doença pode provocar. Ontem mesmo falamos aqui sobre os AVCs observados em pacientes na faixa dos 30 anos, e autópsias têm revelado efeitos do novo coronavírus em órgãos como cérebro e coração. O site entrevistou um dos pesquisadores favoráveis ao “risco humano” nesse caso, Arthur Caplan. De acordo com ele, ter uma vacina no ritmo tradicional pode levar de quatro a cinco anos, e até lá muita gente vai ter morrido – um número maior do que as que podem morrer nesse estudo. Daí a justificativa.

INFECÇÃO EM CRIANÇAS

Reino Unido e EUA registraram casos de crianças com covid-19 que estão sendo tratadas com uma rara síndrome inflamatória. Os sintomas incluem inflamação no coração e intestinos, além de erupções cutâneas. O fenômeno já tinha sido visto na Itália e na Espanha, segundo a Reuters. O NHS, o sistema universal de saúde britânico, emitiu um aviso alertando os médicos ontem. Mas, por lá, nem todas as crianças com essa inflamação testaram positivo para o novo coronavírus, o que deixa dúvidas se não há uma infecção ainda não identificada por trás dos cerca de 20 casos. 

Nos EUA, os três casos divulgados têm relação com a covid-19. As crianças têm entre seis meses e oito anos. Os médicos acreditam que elas desenvolveram uma resposta imunológica equivocada, mas descartam o diagnóstico para doença de Kawasaki – uma inflamação nos vasos sanguíneos causada por proteínas produzidas pelo sistema imunológico. 

VAI CONVERSAR

Quase duas semanas após a posse, finalmente Nelson Teich decidiu convidar secretários estaduais de saúde para uma reunião. Ele vem sofrendo várias críticas, com razão, pelo seu distanciamento. Está marcada para hoje a conversa com Alberto Beltrame, presidente do Conass (que reúne os secretários estaduais de saúde)  e Wilames Freire, presidente do Conasems (o conselho dos secretários municipais). Amanhã é a vez dos demais secretários. Suas conversas com os governadores começaram ontem.

GIRO PELOS ESTADOS

Ontem, Santa Catarina registrou a maior alta nos casos confirmados nas últimas 24 horas: 519. Mas de acordo com o secretário estadual de saúde, Helton Zeferino, o aumento aconteceu porque houve uma integração a dois sistemas de cadastro do Ministério da Saúde. “O primeiro faz a compilação dos testes rápidos que são realizados pelos municípios e o segundo faz a compilação daqueles dados de pacientes que têm quadro clínico compatível e histórico de proximidade, onde para efeito de contabilidade em números também são considerados como casos de covid”, disse. O estado  vem flexibilizando cada vez mais as medidas de distanciamento social. Na segunda, o governador liberou atividades esportivas ao ar livre. Na semana passada, uma aglomeração de pessoas em um shopping de Blumenau chocou o país. A cidade tem 177 infecções confirmadas, sendo a segunda em pior situação no estado que já registrou, no total, 1.995 casos da doença.

Enquanto isso, a situação no Amazonas continua sendo a mais dramática do país. Foram registrados 409 casos nas últimas 24 horas, com 4.337 confirmações no total. A prefeitura de Manaus voltou atrás da decisão de enterrar caixões empilhados depois que famílias protestaram. A Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário denuncia, por sua vez, que o governo federal negou aviões para abastecer a cidade com mais caixões. Há caminhões em trânsito, mas a viagem por via terrestre demora vários dias e esse hiato pode provocar desabastecimento. 

O cenário está ficando cada vez mais parecido com o do Equador. O cadáver de uma mulher que morreu em casa no domingo foi recolhido mais de 24 horas depois. Maria Portelo, de 61 anos, tinha sintomas de covid-19. Ela passou mal, mas não recebeu atendimento do Samu a tempo. As UTIs atingiram há dias 100% de ocupação. Ontem, em uma transmissão ao vivo organizada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva, o prefeito da capital Artur Virgílio (PSDB) voltou a ressaltar que há muitas mortes ocorrendo em casa e atestados que levam “causa indeterminada” ou “pneumonia, etc.” – e que, para ele, a maior parte desses óbitos é, sim, causada pelo novo coronavírus. 

Virgílio resolveu mandar vídeos para o G-20 pedindo máscaras, respiradores e dinheiro. Ele disse ao Estadão que, até a noite de segunda-feira, nem o presidente Bolsonaro nem o ministro da Saúde haviam entrado em contato com ele.

Ontem, o governador do Amazonas voltou a pedir trabalhadores e equipamentos, como respiradores, em uma videoconferência feita com Nelson Teich. O ministro afirmou que vai enviar “uma equipe de técnicos” para auxiliar nas ações da secretaria estadual de saúde. 

A reunião também contou com a participação de outros governos da região Norte. A essa altura do campeonato, o número dois do Ministério da Saúde, general Pazuello, pediu que os estados enviem a Brasília seus planos de contingência, com as medidas que estão adotadas e as necessidades mais urgentes. 

No Pará, 42% das pessoas que foram infectadas pelo vírus são trabalhadores da saúde. Os profissionais reclamam da falta de EPIs e denunciam que, no dia 26 de março, o governo ordenou que todos os trabalhadores voltassem aos seus postos. Segundo o Estadão, pelo menos três idosos que voltaram ao trabalho foram infectados; um morreu. 

No Ceará, foi registrada uma espera de oito dias por um leito de UTI. O caso foi denunciado pela família de Rosa Maria, 61 anos, que aguarda a internação entubada em uma UPA. As unidades de pronto-atendimento estão abarrotadas de casos graves aguardando transferência. E Fortaleza está tomada pela covid-19. Ontem, a secretaria municipal de saúde divulgou um boletim que informa que todos os 121 bairros da capital têm casos – e 90 deles  registraram mortes causadas pelo coronavírus. 

Para o ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, Julio Croda, Fortaleza e Manaus deveriam adotar lockdowns. Ou seja, bloquear totalmente a circulação de pessoas, medida adotada no dia 23 de janeiro em Wuhan, na China. Nenhum lugar do Brasil adotou lockdown – mas o recurso está previsto no boletim divulgado pelo Ministério da Saúde na última segunda-feira. “Eu recomendaria o lockdown para Manaus e Fortaleza porque, se você não tem capacidade de ter mais leitos, tem que aumentar as medidas de isolamento – e aumentar o que a gente já tem é lockdown“, argumentou o infectologista em entrevista ao G1

Mas a pressão contra o isolamento vem dos lugares mais inusitados. No Rio Grande do Norte, o procurador do MPF Kléber Martins entrou com duas ações populares questionando os decretos governamentais que restringem o funcionamento do comércio e do transporte e fecham escolas. Em relação a esse último ponto, o procurador argumenta que o fechamento pode causar falências de instituições de ensino. A situação obrigou a Procuradoria Regional do Estado a emitir nota esclarecendo que as ações são um posicionamento pessoal, não institucional. O estado registrou 44 mortes por covid-19. Em um mês, o novo coronavírus fez mais vítimas do que a dengue e a chikungunya juntas somando 2018 e 2019.

No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC) admitiu o colapso do sistema de saúde, com mais de 300 pessoas aguardando leitos de UTI. Ao mesmo tempo, ele anunciou que estuda a ideia de reabrir o comércio, fazendo um rodízio de estabelecimentos pelo número do CNPJ. É a dissociação completa. Já o prefeito da capital, Marcelo Crivella (Republicanos), disse ontem que o isolamento social só será relaxado quando a curva de casos começar a cair na cidade. Lembramos que a recomendação da OMS é outra: precisa ser uma diminuição estável, no mínimo.

Na cidade de São Paulo, o número de mortes triplicou em duas semanas e os casos suspeitos quadruplicaram. A prefeitura divulgou que pretende comprar vagas na rede privada para ampliar sua capacidade de internações. A matéria da Folha afirma que representantes de hospitais privados criticam o Ministério da Saúde e os governos por lentidão em procurá-los para suprir falta de leitos de UTI. Seria cômico se não fosse trágico: tanto o governo federal, quanto os governos estaduais e municipais podem requisitar serviços e infraestrutura privada em emergências sanitárias. A verdade é que nenhum gestor do SUS precisa comprar vagas, dizem especialistas. Mas há, no Brasil, grande reticência em lançar mão desse expediente, assim como há temor na decretação de lockdowns

RÁPIDO AUMENTO

Bastou uma semana de flexibilização nas regras do isolamento. O Instituto Robert Koch, responsável por monitorar a evolução do coronavírus na Alemanha, já registrou um aumento do índice de infecção. Ele chegou a 1, o que significa que cada pessoa com o vírus infecta mais uma. Quando decidiu reabrir algumas coisas, o governo identificava um índice de 0,7, e Angela Merkel já disse que um índice de 1,1 pode levar à lotação completa das UTIs do país até outubro; com 1,3, isso aconteceria em junho.  A situação ainda não é ruim, mas, se persistir, isso pode complicar os esforços das autoridades para o retorno à normalidade.

A matéria do Estadão observa que, embora venha aumentando, a taxa de letalidade do vírus na Alemanha ainda é relativamente baixa e está em 3,8%. Por aqui, observamos nós que essa taxa se baseia também em uma testagem bem mais ampla do que na maior parte dos países. Se a Alemanha fizesse metade dos testes que realiza (ainda seria bastante) e encontrasse metade dos casos confirmados que tem hoje, o índice seria o dobro, perto dos 8%. Ou seja, apesar de o sistema de saúde alemão estar longe do colapso, morre-se bastante lá com o novo coronavírus. O país conta 6,3 mil mortes e cerca de 160 mil casos.

QUASE TUDO AZUL

Em Wuhan, todos os pacientes de covid-19 tiveram alta. Na China inteira só foram registrados três novos casos e nenhuma morte. Em Pequim, as aulas recomeçaram na segunda-feira. Tirando o (grande) medo da segunda onda, as coisas parecem caminhar bem. Quer dizer, quase bem. O esquema de segurança na volta às aulas mostra que a normalidade ainda é algo muito, muito distante.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

13 + 7 =