Líderes de etnia no oeste do Amazonas emitem nota pública para denunciar o descaso do poder público; em crítica direta ao presidente Bolsonaro, eles dizem que o que ele chamou de gripezinha “está acabando com a vida de nossos parentes”
Por Alceu Luís Castilho, em De Olho nos Ruralistas
Uma nota assinada por três líderes do povo Kokama pede socorro. Diante da morte de nove integrantes da etnia por Covid-19, Glades Kokama Rodrigues, Eladio Kokama Curico e Edney Kokama Samias contam que já há registros diários de óbitos. “Estamos aflitos e desesperados”, afirmam.
Eles se declaram indignados diante da negligência, descaso e omissão do poder público, nos três níveis: federal, estadual e municipal. E reclamam que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde, “insiste em fazer diferença entre o atendimento de parentes que vivem na cidade e os que estão na aldeia”.
Os três líderes apontam descaso das unidades de saúde e “desconhecimento no trato com os povos indígenas”. E contam que o Hospital de Guarnição de Tabatinga (HGuT), na região da tríplice fronteira com Colômbia e Peru, tem registrado os indígenas como “pardos” nas declarações de óbito.
Eles também dizem que foram comunicados de mortes somente 24 horas após elas ocorrerem.
A frase do presidente Jair Bolsonaro sobre a Covid-19 ser uma “gripezinha” ganha menção na nota pública:
— Este maligno invisível chamada “gripezinha” está acabando com a vida de nossos parentes, nosso povo Kokama.
E perguntam: “Quem irá se fazer responsável pelas perdas de nossos anciãos e professores?”
CONFIRA A NOTA NA ÍNTEGRA
NOTA PÚBLICA:
NÓS, POVO KOKAMA, PEDIMOS SOCORRO, ESTAMOS MORRENDO!
São nove óbitos Kokama por Covid-19 nestas últimas semanas. Quem irá se fazer responsável pelas perdas de nossos anciãos e professores?
Nós, povo Kokama, habitantes originários deste extenso território do Alto e Médio Solimões, viemos através desta DENUNCIAR para a mídia nacional e internacional e os órgãos públicos o descaso do poder público frente ao combate do Covid-19 nesta região.
Nas cidades de Tabatinga, Benjamin Constant e Santo Antônio do Içá, estado do Amazonas, Brasil, encontra-se declarada a contaminação comunitária.
O prefeito de Tabatinga e o DSEI [Distrito Sanitário Especial Alto Indígena] do Alto Solimões comunicaram que a situação está fora de controle. E nós, povo Kokama, estamos registrando óbitos todos os dias. Estamos aflitos e desesperados.
Nós estamos indignados devido à negligência, descaso e omissão do poder público a nível Federal, Estadual e Municipal, apesar deste último já ter feito o possível para conter a propagação do vírus.
Por ser uma região de fronteira com Peru e Colômbia, de grande mobilidade terrestre e fluvial, as ações das autoridades se tornam insuficientes.
O sistema de saúde público encontra-se sobrecarregado e sem os equipamentos necessários para responder à demanda de casos confirmados por este vírus.
Este maligno invisível chamada “gripezinha” está acabando com a vida de nossos parentes, nosso POVO KOKAMA.
Ainda o Estado, através da SESAI insiste em fazer diferença entre o atendimento de parentes que vivem na cidade e os que estão na aldeia.
Deixando o nosso povo ainda mais exposto para o contágio deste vírus.
Estamos sofrendo com a falta de atendimento, despreparo das equipes médicas e falta de estruturas hospitalares, Unidade de Pronto Atendimento – UPA e Unidade de Terapia Intensiva – UTI para receber os pacientes.
Soma-se ao descaso das unidades de saúde o desconhecimento no trato com os povos indígenas, negando a nossa identidade. De fato, o Hospital Militar HGUT de Tabatinga tem insistido em registrar na Declaração de Óbito do nosso parente como “pardo”.
Queremos deixar claro a todos que RANI {Registro Administrativo de Nascimento de Indígena] não faz a gente indígena! E sim, o reconhecimento de nossos líderes e representantes natos KOKAMA.
Nós SOMOS INDÍGENAS ANCESTRAIS! Além das dores do que é perder um parente, os médicos aspirantes precisam estar cientes dos fatos das ocorrências, juntamente com a Assistência Social.
Pois fomos comunicados dos óbitos 24 horas após o falecimento. Sabemos da dificuldade dos profissionais de saúde, ao transferir um paciente faz-se o necessário o intercâmbio da totalidade da vida do estado do paciente, onde ocorreu o descaso com o nosso parente, nossa família, o professor ANCELMO. A UPA não repassou os dados completo do nosso primo para HGUT, e agora a culpa é de quem?
Estamos indignados por essa fatalidade! Não tem mais respeito com NÓS indígenas! Independente de quem for, pois todos são pessoas humanas.
Ressaltamos o apreço da compreensão de todos.
EXIGIMOS QUE FUNAI, SESAI, MPF atuem de forma URGENTE para o fortalecimento das unidades hospitalares nos municípios do Alto e Médio Solimões, onde o vírus está se propagando com rapidez e matando os nossos parentes.
EXIGIMOS que se tomem as medidas necessárias para o isolamento social com mais vigor!
PEDIMOS que as autoridades, SESAI e FUNAI, disponibilizem transporte para deslocar os familiares de nossos parentes falecidos.
EXIGIMOS um mínimo de dignidade aos povos indígenas nessas horas difíceis e de dor.
Apesar de nosso ente querido fazer a travessias para a vida espiritual sem dor, eles continuam a nos apoiar nessa luta!
Lembramos de nossos parentes falecidos por COVID 19:
Augustinho Samias – Aldeia Sapotal e falante materno
Idelfonso Tananta de Souza – Aldeia Sapotal
Lindalva de Souza Moura – Manaus
Anselmo Rodrigues Samias – professor da Aldeia Sapotal
Antônio Vela Sammp – Sapotal
Antônio Castilho – Manaus
Alberto Guerra Samias – Aldeia Sapotal
Assinamos esta carta os representantes legítimos do povo Kokama:
Glades Kokama Rodrigues
Presidenta/ TWRK [Tapɨya Weteratisun Ritama Kukama, Federação Indígena do povo Kokama]
E-mail: [email protected]
Eladio Kokama Curico
Presidente / OGCCIPK [Organização Geral dos Caciques das Comunidades do Povo Kokama]
E-mail: [email protected]
Edney Kokama Samias
Patriarca Tradicional
[email protected]
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil