O suplício do CPF para tirar o CNPJ “da UTI”

Representantes do setor industrial topam entrar no picadeiro presidencial e vão ao STF pedir para “colocar a roda para rodar”. Bolsonaro não engana lá fora: Lancet afirma que ele é ameaça ao enfrentamento do coronavírus no país & mais

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

AS PALAVRAS TÊM MEMÓRIA

A roda era um instrumento de tortura cuja finalidade era dilacerar os membros do corpo humano. Nas Américas, esse suplício chegou a ser usado pelos senhores para castigar seus escravos. Ontem, essas informações, aprendidas há muito em algum banco escolar ou livro de história, vieram à tona em um outro contexto. A memória foi despertada por uma frase dita por Marco Polo de Mello Lopes, presidente-executivo do Instituto Aço Brasil e coordenador da Coalizão Indústria, uma entidade que reúne empresas de 13 ramos econômicos e se gaba de representar 45% do PIB brasileiro e empregar 30 milhões de pessoas. Segundo ele, o setor industrial precisa “colocar a roda para rodar” mesmo durante a epidemia do novo coronavírus.

O cenário da declaração não podia ser mais insólito: o Supremo Tribunal Federal (STF). Os acontecimentos também não ficam devendo nada à ficção. Tudo começou no Palácio do Planalto, onde 15 integrantes da Coalizão Indústria foram recebidos pelo presidente Jair Bolsonaro. A pauta oficial da reunião era debater crédito, energia e tributos. Isso porque as empresas têm perto de R$ 45 bilhões de créditos concedidos entre elas, mas não conseguem receber, nem pagar o que devem por inação do Executivo. Além disso, continuam arcando com as contas de luz, mesmo com a produção paralisada total ou parcialmente, já que seus contratos com as concessionárias são por demanda fixa. Finalmente, foram cavar um refinanciamento de dívidas, já que Paulo Guedes não as liberou do pagamento de impostos, como gostariam, apenas adiando o vencimento dos boletos.

Mas, ao que tudo indica, o assunto principal do encontro acabou sendo a reabertura econômica. Há relatos de que o tema foi introduzido por Bolsonaro. O fato é que o presidente não deixou escapar a oportunidade de criar mais um esgarce institucional. Falou aos empresários que não depende dele a decisão de reabrir lojas, por exemplo. Isso porque o STF confirmou, por unanimidade, a prerrogativa constitucional de estados e municípios decretarem medidas de isolamento social no combate à covid-19. 

Segundo a FolhaBolsonaro perguntou aos empresários “se eles teriam coragem de falar que a indústria brasileira está na UTI, precisando de oxigênio, com quem estivesse de plantão no STF”. Eles tiveram. E assim teve início o que foi bem caracterizado como “marcha da insensatez” e “passeata da morte”.

A Presidência ligou para a assessoria do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, pedindo uma audiência urgente. Bolsonaro mandou ligar as câmeras, que transmitiram ao vivo a inacreditável comitiva se deslocando a pé na Praça dos Três Poderes em direção ao STF. Entre os empresários que acompanharam Bolsonaro estavam dois representantes do setor farmacêutico: Elizabeth de Carvalhaes (Interfarma) e Reginaldo Arcuri (FarmaBrasil). Entre os ministros, além de  Guedes, estava o núcleo militar: Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Fernando Azevedo (Defesa). Também teve ‘filho zero’: o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Na reunião, Paulo Guedes foi o primeiro a fazer comparação entre a situação das empresas e a dos seres humanos: “Os empresários vinham dizendo que estavam conseguindo preservar os sinais vitais e agora o sinal que passaram é que está difícil, a economia está começando a colapsar. E aí não queremos correr o risco de virar uma Venezuela, não queremos correr o risco de virar sequer uma Argentina, que entrou em desorganização, inflação subindo, todo esse pesadelo de volta”, disse.

Coube a Synésio Batista da Costa, presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), a metáfora mais inadequada – e mais escancarada – do dia. “Vou plagiar o ministro Paulo Guedes: nos sinais vitais, a indústria está rodando a 40 dos cem possíveis do sinais vitais. O ambiente econômico produziu o socorro às pessoas  e às empresas na medida que foi possível. Agora, quando terminar o socorro às pessoas, as empresas vão estar fragilizadas, disse. E continuou: “O que a gente não queria é que, por conta de ter estado junto no combate à pandemia, o meu coração que está batendo a 40, eu não consigo retomar, os funcionários caem de novo na nossa folha. Aí eu tenho um inimigo lá fora que é meu adversário comercial, prontinho para suprir o mercado interno. Aí então haverá a morte de CNPJ”. 

Marco Polo de Mello Lopes – aquele que quer ‘rodar a roda’ – acrescentou: “Eu diria que a indústria está na UTI e ela precisa sair da UTI, por que senão as consequências serão gravíssimas”. 

O fato é que, neste exato momento, vários CPFs estão morrendo por falta de unidade de tratamento intensivo…  Primeiro estados e municípios decretaram as quarentenas, mas, agora, quando o SUS colapsa em vários cantos do país, começaram os necessários bloqueios totais da circulação. Afinal, se não há UTI, a única forma de proteger mais pessoas infectadas de morrer sem atendimento é obrigá-las a ficar em casa. Tudo isso parece ser incompreensível para os empresários que, como distintos membros da elite que são, podem fretar um jatinho e buscar atendimento em outros estados – e, por que não, em outros países. 

Agora, eles tentam emplacar na imprensa as mais variadas versões para reduzir os danos de imagem causados pelo episódio. “Somos escravos da ciência e não podemos ir contra o que ela diz. Seria contraditório tomar qualquer decisão de reabertura da economia que não tenha base científica”, afirmou Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma, que não estava presente na reunião. Outro que não estava presencialmente lá, mas participou por videoconferência, é Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), que admitiu ao El País que a expressão “indústria na UTI” foi infeliz.

A reunião foi plenamente metabolizada pela economia política de ‘circo e circo’ de Jair Bolsonaro (dado a recursar o pão) – com direito a transmissão ao vivo sem o conhecimento de Dias Toffoli. “Parte da responsabilidade disso tudo também é dele. É do Supremo. Tem de jogar no mesmo time”, afirmou o presidente aos repórteres depois do encontro. De noite, em outra transmissão ao vivo no Facebook, ele ainda capitalizava a grande sacada de colocar Toffoli e parte do PIB no centro do seu picadeiro: “Nós ouvimos hoje os dez empresários lá na Presidência e mais de centenas por videoconferência, que representam 45% do PIB do Brasil. Eles falaram da necessidade de voltar a trabalhar. Eles agora dizem que estão na UTI, e você sabe o que acontece depois da UTI: ou vai para casa, ou vai para o repouso eterno”. 

O PAPELÃO DE TOFOLLI

A postura do presidente do Supremo foi celebrada por parte da imprensa. Dias Toffoli teria dado um “puxão de orelha” em Jair Bolsonaro ao apontar a seguinte obviedade: ao Executivo cabe executar; ao governo federal cabe coordenar um plano com os demais entes da federação. É verdade que ele lembrou que a Constituição garante autonomia para estados e municípios e defendeu que o governo federal encontre uma saída negociada com governadores e prefeitos. 

Mas o presidente do Supremo também mandou sinais confusos para a população ao propor a criação de um “comitê de crise” com a participação dos três poderes, patrões e trabalhadores. A esse comitê caberia buscar saídas para a retomada da economia. Fracamente, não há pior semana para falar em reabertura. O momento é de lockdown, medida custosa politicamente que coloca, de novo, governadores e prefeitos na berlinda. Por isso, muitos hesitam.  

Isso não é tudo: Toffoli, o “pacificador”, declarou na reunião que o Brasil “conseguiu conduzir muito bem essa situação”, em referência à resposta nacional à pandemia covid-19. “Apesar daquilo que aparece na imprensa, uma coisa aqui e ali, a verdade é que as instituições funcionaram. Os ministérios funcionaram, o SUS funcionou, as medidas que o governo adotou e o Congresso Nacional aprovou, adequou, melhorou ou de alguma forma também sancionou, foram medidas extremamente importantes para que o país não entrasse em situação de calamidade pública”. Fica parecendo que para o presidente do Supremo o pior já passou quando o próprio Ministério da Saúde admite não fazer ideia de quando será o pico das contaminações desta primeira onda do surto de coronavírus. 

Nos bastidores, ministros do Supremo reclamaram dessa postura subserviente ao governo federal, explicitada de novo ontem. “Na visão de alas distintas da corte, o gesto de Toffoli deixou o STF fragilizado num momento em que era necessário demonstrar força”, apurou a Folha.

Em tempo: ontem, o pleno do STF suspendeu a medida provisória do governo federal que obrigava empresas de telecomunicações a enviar ao IBGE dados pessoais dos clientes, com a justificativa de dar suporte à produção de estatísticas durante a pandemia. A MP havia sido questionada por PSD, PSDB e OAB. A relatora, ministra Rosa Weber, entendeu que a manobra era um risco à intimidade e ao sigilo da população. Foi acompanhada por nove ministros; o único contrário foi Marco Aurélio Mello.

NOSSO MAIOR OBSTÁCULO

O Brasil atingiu um total de 135.106 casos confirmados e 9.146 mortes. Pelo terceiro dia seguido, o país registrou mais de 600 novos óbitos. 

Em editorial, a Lancet – uma das mais importantes revistas científicas do mundo – afirma que Jair Bolsonaro talvez seja a maior ameaça que o Brasil enfrenta no combate ao novo coronavírus. O presidente, diz o texto, “semeia confusão” ao se posicionar como antagonista de governadores e prefeitos em sua campanha pela livre circulação de vírus e pessoas, além de promover “distrações mortais” em meio a uma emergência sanitária quando salta de uma crise política para a outra. “Ter liderança no mais alto nível de governo é crucial para evitar o pior resultado dessa pandemia, como ficou evidente em outros países”, diz o texto. E continua: “O Brasil deve se unir para dar uma resposta clara ao ‘E daí?’ dito pelo seu presidente. Ele precisa mudar drasticamente de curso ou deve ser o próximo a sair”. 

Falando nisso… Pressionado a aceitar algum dos 33 pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse à Globo News que, “se Deus quiser”, o assunto “não estará na pauta nos próximos anos”. 

ZOMBARIA INFINITA

No final da tarde de ontem, Jair Bolsonaro editou um decreto que inclui a construção civil e toda a indústria entre as atividades essenciais durante a pandemia. “Nós botamos lá atrás as atividades essenciais que não podiam fechar, e o restante ficou a cargo dos governadores e prefeitos. Nós começamos a abrir do lado de cá. Em grande parte, o pessoal da construção civil já pode voltar ao trabalho”, afirmou de noite, na transmissão ao vivo pelo Facebook. 

Antes, quando chegou à residência oficial, ele voltou a defender para a claque de apoiadores que fica plantada na entrada do Alvorada a reabertura comercial e elogiou as pessoas que, diante da falta de agilidade do governo federal, estão furando as quarentenas “a todo o vapor”. “Essa questão de ‘fica em casa, não saia’ não está funcionando. Está servindo apenas para matar o comércio”, disse.

Bolsonaro também aproveitou o momento para dizer que vai recorrer até a última instância para não revelar os resultados dos testes que fez para o coronavírus e anunciar que planeja fazer um churrasco para 30 convidados no Alvorada amanhã. “Estou cometendo um crime”, se gabou.

Aliás: o ministro da Saúde Nelson Teich caracterizou a ida do chefe ao STF como um gesto de preocupação “com o país e as pessoas”. 

PASSOS DE TARTARUGA

Foram necessários nove dias para que Nelson Teich decidisse assinar uma portaria do Conselho Nacional de Justiça elaborada para proibir que pessoas não identificadas sejam cremadas. O documento vem para substituir uma portaria anterior, do dia 30 de março, que liberava indiscriminadamente essas cremações, gerando riscos de desaparecimento de corpos durante a pandemia – corpos de pobres, moradores de rua e, especialmente, de presidiários. O carioca Teich só assinou o texto depois que O Globo publicou uma reportagem sobre a demora. 

Aliás, o ministro tomou posse há três semanas e, até hoje, não parou de avaliar, analisar e discutir temas que deveria dominar. A lentidão excessiva para tomar decisões na pandemia está esgotando a paciência dos secretários estaduais de saúde. Ainda segundo O Globo, eles agora propuseram reuniões diárias com a Pasta – mas na esperança de que os encontros sejam com os assessores do ministro, e que assim se consiga sair do lugar. As situações das videoconferências que seriam risíveis, se não evidenciassem um cenário tão perigoso. Na semana passada, quando conversava com senadores, o áudio mostrava como Teich depende de auxiliares mesmo para responder às perguntas mais singelas.

Ainda está em segredo a tão esperada “matriz” do governo para orientar estados e municípios sobre graus de distanciamento social que devem ser adotados. A equipe jura que ela está pronta, mas ninguém viu, e Teich segue disparando obviedades, como a ideia de que deve haver diferentes medidas para diferentes locais. “Vai ter lugar em em que você vai fortalecer a lavagem das mãos, o álcool em gel, a ‘elegância da tosse’. Em outro, você vai ter que explicar para as pessoas o que está acontecendo e por que elas têm que ficar fora”, disse ele ontem num ato falho, já que as pessoas precisam é ficar dentro. Aos secretários de saúde, o ministro garantiu que faria campanha pelo isolamento. Convenhamos, com um garoto-propaganda esquivo assim, não deve ser fácil convencer alguém.

Em tempo: ontem o ministro exonerou 13 servidores da Pasta, e agora estão vazios cargos em secretarias importantes no combate ao coronavírus, como a de vigilância em saúde. Como dissemos, há uma verdadeira ocupação militar em curso, mas Teich diz que os militares irão embora quando acabar o “momento de guerra”… Na coluna Painel, da Folha, um dos funcionários exonerados fala sobre isso. Francisco Bernd, servidor do ministério desde 1985, diz que nunca viu “uma mudança tão drástica, com a chegada de pessoas tão estranhas à Saúde“.

JÁ ERA RUIM

Até dezembro, havia no Nordeste oito regiões com mais de 200 mil habitantes sem nenhum leito de UTI, segundo um levantamento do IBGE e do MonitoraCovid-19, da Fiocruz. Os dados, que se referem aos leitos públicos e particulares, não incluem os leitos adicionais que vieram na pandemia, mas dão uma boa dimensão da dificuldade de ter o atendimento necessário. Na população brasileira em geral, a distância média percorrida até um leito de UTI era de 155 quilômetros (também com dados pré-pandemia). A maior proporção de leitos para cada 100 mil habitantes estava no Distrito Federal (30), seguido pelo Rio de Janeiro (25) e Espírito Santo (20). Na outra ponta, em Roraima essa taxa era de quatro. 

AS FRAUDES

Um dos lados perversos dessa gigantesca crise de saúde pública é o quanto o terreno se torna propício para fraudes, com muitas compras e contratações precisando ser feitas às pressas, ao mesmo tempo e sem licitação. Ontem foi preso no Rio o ex-subsecretário-executivo da secretaria estadual de Saúde Gabriel Neves, por “obter vantagens” na compra de ventiladores pulmonares. A Folha resume esse e outros casos: em Roraima, o pagamento antecipado para a compra de 30 respiradores provocou a queda do ex-secretário Francisco Monteiro; o governo do Amazonas contratou uma loja de vinhos para a compra de respiradores, o que virou alvo de investigação da Procuradoria-Geral da República.

MUITO GRAVE

Temos falado aqui na newsletter sobre a grave situação da população indígena durante a pandemia. Já são cerca de 30 os povos atingidos, e nos últimos dias os números de casos e óbitos começaram a crescer com mais força. A editora do Outra Saúde Raquel Torres conversou com algumas lideranças indígenas no podcast Tibungo, de Outras Palavras. Elas contam como as próprias comunidades têm se organizado para garantir cuidados, e como canetadas do governo no meio da crise ameaçam ainda mais sua sobrevivência. Ouça aqui.

A propósito, 40 indígenas venezuelanos refugiados estão com o novo coronavírus em João Pessoa. Eles estavam alojados em um centro social administrado pela Igreja Católica. Para se ter uma ideia do problema, os 40 resultados positivos são de um total de apenas 48 testes, ou seja, uma imensa maioria. Os exames foram feitos depois que uma mulher do grupo foi internada em estado grave.

A VULNERABILIDADE E O DESCASO

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou ontem um documento destacando que os confinamentos durante a pandemia deixam cerca de 1,6 bilhão de trabalhadores informais do mundo todo sob ameaça de aumento de pobreza. Nos países mais ricos, os níveis de pobreza dessas pessoas devem subir 52%, e nos de renda média a taxa deve ser de 21%. Ao mesmo tempo, são esses trabalhadores que menos conseguem ficar em casa, já que precisam trabalhar para comer, colocando-se em risco ao mesmo tempo em que diminuem os esforços locais de isolamento.

Não é 100% mentira quando figuras como Jair Bolsonaro dizem que as quarentenas podem prejudicar trabalhadores. A questão é o que se faz com essa meia-verdade: deveria estar claro para todos que é do Estado a obrigação de prover condições para a população continuar vivendo – e em casa –, mas por enquanto  pesquisas de opinião parecem indicar que o argumento do presidente ganha vulto entre as camadas mais pobres da população, justamente as mais prejudicadas pelas medidas econômicas e sanitárias do bolsonarismo.

Um grupo que não para de crescer é o dos entregadores de aplicativos. O que tem sido bom para as empresas que os gerenciam, mas não para eles, que já tinham um esquema muito precário de trabalho. Um levantamento da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista ouviu 252 entregadores de 26 cidades. Apesar de estarem trabalhando mais durante a pandemia, 60% deles disseram que estão ganhando menos. “O trabalhador já vive no limite financeiro e não pode parar. Não interessa se a saúde está em risco, se eles não estão dando proteção ou garantias de trabalho. A Rappi em março teve um aumento de 300% do número de cadastros. Provavelmente aumentou o contingente enquanto está rebaixando o valor da hora de trabalho sem deixar isso claro. Inclusive não há nenhuma pré-determinação do valor mínimo da hora de trabalho desses motociclistas”, diz, na BBC, a pesquisadora da Unicamp Ludmila Costhek Abílio, uma das coordenadoras do estudo.

O documento da OIT, que aponta para o aumento de pobreza, não prega que se flexibilizem as restrições de mobilidade. Suas recomendações envolvem políticas para diminuir a exposição dos trabalhadores informais ao vírus e a garantia de renda e alimentação às suas famílias.

No Brasil, sabemos que a merenda escolar é a principal (às vezes a única) fonte de alimentação para várias crianças e adolescentes. Desde que foram decretadas as primeiras suspensões de aulas, essa foi uma preocupação, e a reportagem da Agência Pública descreve como falhas nos programas de manutenção da alimentação escolar estão deixando crianças com fome. O governo federal não estabeleceu nenhum padrão ou orientação nesse sentido (novidade…), e cada local adotou uma medida diferente. Em Pernambuco, por exemplo, o governo deu R$ 50 para cada aluno, inclusive para os que estudavam em tempo integral e tinham três refeições diárias na escola. O dinheiro, que deveria durar um mês, não dá nem para dez dias – e mesmo assim só consegue cobrir o básico, como arroz, feijão, macarrão e alguma carne mais barata. Se é difícil viver assim, pode ser pior ainda: várias famílias ainda não receberam o benefício.

Bolsonaro, que foi ao STF pautar a “aflição” dos empresários, não tem o mesmo tato quando se trata de defender as famílias que estão passando por necessidades. Em sua live de ontem, ao se referir a quem ainda não conseguiu receber os R$ 600 emergenciais, disse que se trata de uma “minoria barulhenta“.

QUERER NÃO É FAZER

Mais de 70% das pessoas são favoráveis ou muito favoráveis a que toda a população fique em isoalmento social, segundo um levantamento da empresa Behup, que entrevistou 1,7 mil pessoas do Brasil inteiro via celular. O dado é ótimo, mas também um pouco estranho quando se compara com a adesão real ao isolamento na maior parte do país…

Medidas mais duras continuam sendo estabelecidas em alguns locais, e parece que só assim para as ruas ficarem vazias. No Rio, Niterói se tornou a primeira cidade do Sudeste a decretar bloqueio total – e por lá as cidades vão precisar tomar para si essa responsabilidade. O governador Wilson Witzel (PSC) disponibilizou as polícias militar e civil para a fiscalização nos municípios, mas disse que não vai mesmo decretar nada. Na Bahia, Salvador vai bloquear a circulação nos três bairros com maior crescimento recente no número de casos.

OUTRA ABORDAGEM

Com a quase eliminação do coronavírus em seu território, a China parece estar conseguindo testar amplamente, e por aqui observamos o quanto são relevantes os casos assintomáticos.  Ontem, por exemplo, foi registrado apenas um caso sintomático, enquanto 16 pessoas sem sintomas testaram positivo.

Esse tipo de achado faz pensar sobre as melhores maneiras de usar os quase sempre escassos testes nos países que ainda estão no sufoco. Na Vox, a reportagem de Umair Irfan traz a incômoda pergunta: deveríamos nos preocupar em testar casos leves? A questão é contra-intuitiva, mas tem uma interessante argumentação. É que testagem em massa importa muito para identificar casos e impedir que o vírus se espalhe (do ponto de vista clínico não faz tanta diferença, já que não existe tratamento); por outro lado, incontáveis pessoas sem sintomas estão por aí ajudando a espalhar o vírus, e obviamente não vão procurar serviços de saúde para obter um diagnóstico.

Segundo os pesquisadores entrevistados, pessoas com sintomas, mesmo leves, já estão infectadas há alguns dias e possivelmente também passaram o vírus adiante. Elas não deveriam ser testadas, mas ficar isoladas. Eles defendem que os testes ‘economizados’ dessa maneira deveriam ser voltados para encontrar aqueles que, mesmo sem sintomas, têm grandes chances de contaminar e de ser contaminados: os contatos dos pacientes que testaram positivo, mesmo que eles não apresentem sintoma algum; trabalhadores que ficam expostos ao contato diário com muita gente, como profissionais de saúde, caixas de supermercado e entregadores; pessoas que vivem e circulam em casas de repouso, prisões e instalações para imigrantes. Além disso, pessoas que têm mais chances de desenvolver complicações, como idosos em geral e com doenças pré-existentes, também deveriam ser testados sem sintomas, para que fossem monitorados de perto.

Nada disso resolveria o problema de não entender a real prevalência do vírus em cada local, algo que dificulta a tomada de decisões sobre endurecimento ou flexibilização das quarentenas, por exemplo. Para isso, a solução talvez esteja nas pesquisas por amostragem, testando (sintomáticos e assintomáticos) grupos da população. Ainda que tomado a partir de amostras, o resultado de levantamentos desse tipo provavelmente é bem mais exato do que aquele obtido pela testagem de todas as pessoas com sintomas.

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