Por Ana Gretel Echazú Böschemeier[1] e Marília Melo de Oliveira[2]
Leonardo Boff esteve em março deste ano em Natal, capital do Rio Grande do Norte, convidado para dar uma palestra dentro do ciclo “Nas trilhas da democracia” organizado pela ADURN – Associação de Docentes Universitários do RN Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Dias depois, entre o 27 e o 29 de março, teve lugar a XVII Semana da Antropologia, que estava sendo organizada pelo Departamento de Antropologia da mesma universidade. Desde a organização do evento e levando em consideração os tempos desafiadores nos quais nos toca o exercício da nossa prática, colocamos como leit motiv do evento as “demandas dos movimentos sociais à antropologia”. Na relação entre democracia e direitos humanos a partir do ponto de vista de uma antropologia crítica, elaboramos alguns eixos para a discussão, com demandas que partiam desde uma perspectiva interseccional, ou que focavam nas margens como espaço produtivo, ou bem que se pensavam e sentiam desde os corpos; trouxemos também a discussão da criminalização e resistência de e desde os movimentos sociais e, finalmente, abrimos o espaço para uma discussão sobre o antropoceno – que é um conceito vindo dos estudos da ecologia para se referir às mudanças estruturais acontecidas no planeta terra a partir da ação humana. Foi com a intenção de conversar sobre essas problemáticas inspirando xs estudantes, colegas e líderes de movimentos sociais que viriam para o evento que marcamos e gravamos nossa entrevista coletiva com Leonardo Boff.
A entrevista teve a duração de uma hora e quinze minutos e aconteceu em uma das salas de reunião de um conhecido hotel da praia de Ponta Negra, na zona sul da cidade. A publicação de trechos selecionados da transcrição desta entrevista se coloca aqui à disposição da comunidade antropológica para continuarmos pensando nas urgências que nos atingem a partir de uma perspectiva holística, plural e aberta ao diálogo, como a que Boff vem desenvolvendo há décadas. O olhar do pensador e ativista foi sendo moldado pelas lutas de décadas atrás durante e após as intervenções militares no país: trazer o espírito dessas lutas, o seu germe dissidente, nos ajudará a melhor compreender os rápidos processos de virada à direita que estamos vivenciando como comunidade e nação. Da entrevista participaram a professora de letras e ativista de direitos humanos Sandra Fernandes Erickson, o professor da educação básica Marcelo Dias, Richardson Lenine como representante dos terreiros do RN e as antropólogas Marília Melo de Oliveira e Ana Gretel Echazú. Pedro Feitosa foi quem se encarregou de realizar o registro audiovisual. Na edição das falas estruturamos o texto em tópicos relativos ao clima da conversa, colocando depois, de forma textual, as respostas de Boff.
O lugar da academia no diálogo entre saberes
Leonardo Boff: Acho que devia ser a regra que toda universidade, como ela incorporou o saber medieval, que é o saber humanístico e somou a isso o saber científico e técnico, que é a razão analítica e instrumental, ela deve incorporar os saberes da razão cordial, da razão sensível, do sentimento humano, que é a razão mais ancestral que temos. Temos mais de cento e vinte bilhões de anos, quando surgiram os mamíferos, que sentem, pensam, amam, cuidam. E só há sete, oito milhões de anos atrás que surgiu o neocórtex, o saber teórico, falado, o discurso, mediante o qual nós organizamos a realidade – e precisamos [dele] para dar conta dos problemas. Chegou o momento de os dois lados, tanto do lado acadêmico, como do lado do povo se encontrar e se encontrar numa convergência na diferença: são diferentes saberes, mas juntos colocam algo que é o grande desafio: como compreender os problemas que temos, como olhá-lo de distintas facetas e como encontrar soluções ou encaminhamentos que sejam fruto dessa soma de saberes.
E isso acho que nós estamos fazendo, mas de forma muito inicial. Não é ainda o projeto das universidades. Por exemplo, na experiência que eu tenho, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e mesmo a PUC, não tem essa dimensão. Lá na UERJ, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que foi orientada por Darcy Ribeiro, a primeira coisa que se colocou foi “a universidade tem que estar aberta à sociedade”. Por isso os professores têm que ter projetos, cada professor com a sua pesquisa, que incluam o povo. Que convidem lideranças e convidem gente do povo para virem na universidade, sem inscrição, sem as burocracias, para eles escutarem um saber mais crítico, e eles darem testemunho dos seus saberes. Acho que esse encontro é extremamente frutífero, eu como professor vários anos nessa universidade, participando de muitos fins de semana nas várias comunidades para formar líderes em direitos humanos, em proteção e defesa da terra, e as principais chaves do discurso ecológico [mas] o povo não tem acesso a isso.
Você pode levar [para as pessoas] uma linguagem compreensível utilizando os meios de hoje, que são os vídeos, que são os pequenos filmes, as novas tecnologias, que fazem com que as pessoas incorporem. E eu mesmo faço os filminhos, e gravo para universidade e ficamos extasiados, até pela beleza estética, pelo impacto das falas e também o drama que [as pessoas] vivem: como eles em 500 anos encontraram formas de subsistência, a pesar de toda a marginalização que sofrem pela casa grande, eles conseguiram sobreviver, e no fundo dizem “vocês quiseram nos exterminar, mas nós estamos aqui, resistindo e lutando!”
Pela porta dos fundos
Leonardo Boff: Eu acho que o saber ele foi sempre privilégio de classes que detém o poder [que ainda] chamam os outros da massa ignorante. Bom, ignorante é aquele que pensa que o povo é ignorante. O povo sabe muito, só que não é escutado. O desafio nosso é deixar eles falarem: quando vamos nas suas reuniões, entrar pelas portas dos fundos. E não falar! Escutar, escutar, escutar. Talvez no fim – e nisso a universidade nos ajuda – tirar uma articulação de tudo [aquilo] que se ouviu, fazer uma síntese criadora que eles podem levar. Aí o [trabalho do] intelectual entra: ele tem categorias para sistematizar, e devolve para o povo aquilo que ele recebeu do povo.
Ele devolve [as experiências] com princípio, organizadas, enriquecendo o próprio povo. O povo ganha consciência e diz que “tem professores que nos escutam, que respeitam o nosso saber”. O professor não deve ter uma linguagem cifrada, própria da ciência. É o saber, entretanto, sobre a realidade que todo mundo conhece de alguma maneira. Nós temos que enriquecer todas essas janelas, perspectivas, para que sejamos mais humanos, que a ciência seja cada vez mais socializada. Que ela seja um bem cultural da sociedade, não da academia, nem dos grupos. A sociedade inteira cresce.
Cidadanias do saber e o “emburrecimento intencional”
Leonardo Boff: Hoje nós vivemos, infelizmente, o emburrecimento intencional do povo brasileiro. Se eles puderem fechar escola, eles fecham, porque é mais fácil manipular e dominar o povo ignorante. A classe dominante, em quinhentos anos, fez isso. Mas ela tem pavor e treme quando um pobre tem consciência e sabe dos seus direitos, e fala. Eles tremem, porque esse [ser] não é mais dominado. Ele é cidadão. Todos temos direito à cidadania do saber: o saber tem que ser um bem comum, um pertence comum, assim como a água, o oxigênio, as florestas, como a cultura. Todos eles são bens comuns. O saber tem que virar bem comum e não bem de alguns.
Eu digo muitas vezes aos europeus quando falam, vocês são privilegiados. Primeiro, vocês têm dinheiro e vão para universidade, que geralmente é gratuita. Tem dinheiro para comprar os livros. Tem dinheiro para ler os livros, e tem dinheiro para fazer reuniões na rede de vocês para intercambiar e mostrar que cada um sabe mais do que o outro. Digo, nós não! Nós nos inserimos lá no povo. Nós viemos da “escola do faraó” que é a escola de vocês, que forma os dominadores. Mas do povo nós aprendemos.
Matrizes abertas do conhecimento
Leonardo Boff: Eu acho hoje que o direito mais agredido é a falta de respeito com o outro, que é a intolerância, a incapacidade ver a verdade, de ver a perspectivas no outro também com o qual nós podemos dialogar. Então todo o fanatismo, todo o fundamentalismo, é a ditadura da minha verdade, escolhida às demais. Aqui vale um verso do grande poeta espanhol, que morreu no exílio, que se chama Antônio Machado. Então Machado deixou um verso genial que diz: “A verdade? Não! Busquemos juntos a verdade. A tua verdade, guarde-a para ti. Se juntos buscamos, encontramos uma verdade mais rica”. Então nós devemos somar nossos conhecimentos, e eu estou profundamente convencido que as tradições afro nos trazem uma outra cosmologia, uma outra imagem do mundo, uma nova experiência do sagrado, e uma dimensão profundamente ecológica, porque eles se sentem unidos a essas energias. Nós podemos interpretar de muitas maneiras os orixás – seja do candomblé, seja da umbanda – que mais do que entidades consistentes, são energias poderosas, que estão na natureza e estão em nós. Esse saber a razão nossa, ocidental, ela não consegue entender. Porque as tradições africanas não são cartesianas, elas não vêm da matriz greco-latina. É outra matriz!
O saber [das tradições] afrodescendentes é um saber profundo sobre a realidade, que não divide, não setoriza, não atomiza o real, mas entra em comunhão, se sente parte daquele universo. O saber ocidental tem medo desse mergulho profundo, nessa realidade, porque solaparia, tiraria os fundamentos, daria uma consciência dos limites do saber.
O mercado das consciências na pós-democracia
Leonardo Boff: Eu entendo que a liquidação de todas as instâncias de controle, e especialmente dos movimentos de participação popular, como uma fase atual do capitalismo que chegou ao seu extremo para população. Um momento onde menos de vinte pessoas possuem a riqueza de mais da metade da humanidade. Então eles não querem ser controlados. Isso cria uma ditadura do capital. Em todas as instâncias que [os movimentos sociais] os criticam, que se enfrentam com eles, eles são demonizados, perseguidos, e se possível, eles são liquidados.
Então, é importante recuperar o sentido mais originário da democracia. A democracia é tudo aquilo que interessa a todos, pode e deve ser discutida e decidida por todos. Esse é o sentido em grau zero, o sentido originário da democracia. Depois nós afinamos e ficou somente a democracia representativa, delegaticia. Porém ela não representa ao povo, representa as grandes empresas que financiaram as campanhas. E eles estão lá, com os seus lobbys, querendo definir os seus interesses, de costas para o povo. Hoje a nossa democracia é uma democracia frágil, débil. Uma democracia de baixa intensidade.
No atual momento nós vivemos uma fase de pós-democracia, uma fase de um estado sem lei, porque não respeita a constituição, que foi o pacto que fizemos em 1988. O pacto social em que uns se reúnem [com os outros] e que nos faz conviver nas diferenças. [Nossos atuais representantes] não respeitam a constituição, não respeitam as leis, passam por cima delas, o arbítrio domina no mundo do judiciário, daqueles que decidem. Então a luta é muito grande, para recuperar aqueles elementos mínimos que formam a sociedade. A sociedade só existe quando há um mínimo de consenso, de pacto social. Sem pacto social [a sociedade é] o encontro dos indivíduos. Quando cada um diz eu, eu, eu, há a guerra dos “eus”. Nós devemos aprender a dizer “nós”. Colocar o bem comum no centro, não um bem particular. E [por] a política e a economia a serviço da vida, e não a serviço do mercado. Hoje tudo que se inventa, da tecnologia mais moderna – nanotecnologia, tecnologia 4.0, que é a mais avançada de todas – não é para melhorar a vida humana nem preservar a natureza: é para aumentar os lucros do capital. E tudo é colocado como mercadoria. Essa foi, aliás, a grande revolução denunciada já em 1944, com esse grande livro “A grande transformação”, de Karl Polanyi, onde ele diz “a grande revolução que estamos vivendo, que é única na história, que de uma economia de mercado [se transforme em] uma sociedade de mercado. Assim, tudo vira mercadoria, desde a linguagem, que você vende, desde a tua imagem que você coloca e vende na propaganda, desde as religiões e coisas mais sagradas, tudo vira mercadoria em função de ganhar mais dinheiro.
Então a grande transformação foi isso. Mercado sempre houve, mas junto com outras coisas. Agora só existe mercado, a ditadura do mercado. Isso é a grande transformação, e curiosamente, Marx previu isso, em seu escrito em 1834, “A miséria da filosofia”. Lá, ele diz: vai chegar o dia, em que as coisas mais sagradas, como a liberdade, como é a consciência, e são os valores ligados ao amor e a amizade, vão ser colocados no mercado e vão ganhar o seu preço. Isso é a grande perversão, isso é a maior corrupção. E nós estamos assistindo exatamente isso. Ele não só foi um grande analista da realidade: ele previa as tendências para onde levam a dinâmicas das sociedades. Criar tudo como objeto, e vendendo, trocá-lo e perder o ser humano, como subjetividade, como liberdade, como consciência e como amor.
A luta de agora, a nossa, é imensa. É de resgatar o mínimo de um rosto humano da nossa convivência, porque ela está sendo destruída pelo ódio, pela exclusão, pelo fanatismo, por tudo aquilo que representa o processo de desumanização. Ocorre que eles se instalaram no centro do poder de Estado, e utilizam esses instrumentos para agredir a todo mundo, sujeitar a todo mundo. Toda sociedade, toda a história, se construiu sobre o ódio, sobre o amor, sobre a violência. E estão sempre as patologias. Tudo que é são, que é sadio, pode ficar doente. Hoje nós vivemos numa sociedade doente, onde toda doença reclama a sua saúde. Nós temos que resgatar a saúde, lutando por direitos, pela democracia em grau zero, pelo respeito uns aos outros. E para superar toda a ideia de fundamentalismo e de exclusão do diferente, aprender a conviver com o diferente. Pois o diferente, por ser diferente, nos torna enriquecidos. Nos desafia, mostra que o ser humano pode ser humano de mil maneiras: à maneira afrodescendente, à maneira yanomami, à maneira do camponês. Tudo isso são formas da riqueza profunda que é a natureza humana, pluri e diversa. E tudo isso está sendo negado no pensamento único, que é a ditadura de um saber como penalização de todas as alternativas de diferença.
Um cantinho para as plantas silvestres
Leonardo Boff: Devemos partir dessa lei básica que é da natureza: na natureza todos os rios convivem, [há] a associação de todas as espécies, diferentes. Há os povos que são as florestas, os povos que são os animais, os povos que são os microrganismos: tudo convive! É a lei da natureza. Muito mais do que aquela de Darwin que só o mais apto sobrevive. Isso [também] é uma tese da física quântica e uma tese da ecologia: tudo tem a ver com tudo em todos os momentos, em todas as circunstâncias. Então tudo é relação e nada existe fora da relação. Isso é a lei básica da realidade e do universo. O universo se elege por essa lei básica, e se chama até uma lei cosmológica, uma constante cosmológica, que é a convivência dos diferentes, e todo mundo um ajudando o outro, nessa solidariedade, cósmica, universal. Até o mais fraco tem direito a existir, porque ele tem uma mensagem a dizer.
O Darwinismo [social] elimina os fracos. Mas também há lugar para eles. São Francisco escreveu para os frades, “quando vocês criarem as hortas, deixem um cantinho para as plantas silvestres e daninhas”. Quando o Papa escreveu a encíclica, eu mandei um bilhete a ele. O número 12 da encíclica fala dessa integração de todos com todos: respeitem também as ervas selvagens, porque elas também pertencem a natureza, nós não devemos considerá-las daninhas. Nós talvez não sabemos qual a função que ela tem, mas elas têm uma função. Esse momento é de a gente respeitar as diferenças, não deixar que as diferenças se transformem em desigualdades: elas têm direito de existir. [É preciso] reconhecer que o outro tem o direito de estar aí, diferente.
Nós podemos nos encontrar, fazer uma aliança entre nós, que é a aliança social, o pacto social. Como nós já fizemos uma aliança que é inconsciente, o pacto natural. Ele nos dar tudo o que nós precisamos, para comer, para respirar, para viver. E nós, devemos, então como todo pacto, ter os dois lados. Você dá uma parte e a outra dá outra. Nós invés de cuidar da terra, cuidar das árvores, cuidar do ar, chutamos a terra, agredimos a terra, rompemos o pacto natural. Hoje o desafio é recuperar os dois pactos. O pacto natural, cuidando, regando, respeitando todos os seres. Porque tudo o que existe e vive, merece existir, merece viver. E o pacto natural dá suporte ao pacto social.
Notas finais: pautas para o pensamento e a ação
Ao finalizarmos a entrevista, nos invadiu a sensação de que as lutas por um olhar do diverso dentro de uma perspectiva democrática devem ser alimentadas de forma constante. A partir delas é que continuamos a questionar o lugar da academia no diálogo entre saberes, considerando a necessidade de democratizar o acesso ao saber e de reconhecer a multiplicidade de saberes existentes no mundo como um dever intelectual que é também uma forma de exercício da cidadania.
Além disso, podemos enxergar maneiras específicas em que a discussão dos direitos humanos permeia o campo da própria construção dos saberes da ciência. Pensamos que somente uma visão crítica à autoridade do conhecimento produzido pelo fazer científico conseguirá dar conta da conexão entre saber e poder, e questionar suas próprias bases nas escolhas éticas, políticas e metodológicas que envolve toda pesquisa. Apesar das dificuldades dos tempos atuais, expressos na criminalização das ciências humanas e sociais, os projetos de congelamento e desfinanciamento das instituições públicas e o descrédito mediático das pesquisas, caminhar na direção de um olhar crítico e aberto ao diálogo é possível e necessário. Compreender os pós-fascismos como expressão do neoliberalismo e, de forma mais ampla, como manifestação da intensificação do capitalismo em um movimento que afeta todas as nações do planeta nos posiciona de uma forma estrategicamente consciente. Perante as crises em jogo, continuamos a alimentar táticas de sensibilidade, dignidade, criatividade e resistência.
Notas:
[1] Professora Adjunta DAN, UFRN – Natal, RN, Brasil.
[2] Mestre em Antropologia – IPHAN, Natal, RN, Brasil.