Estaríamos assistindo à milicianização da política?

Bolsonaro já defendeu legalizar as milícias. Na presidência, flexibiliza o acesso e porte de armas. Assanha quartéis e grupos fascistas a defendê-lo nas ruas. Modelo paramilitar dos EUA, truculento e ultradireitista, pode estar sendo importado…

por Almir Felitte*, em Outras Palavras

Nos últimos tempos, o fenômeno das milícias virou assunto de primeira ordem no país. Mas o problema está longe de ser algo novo. Já em 2008, o então deputado estadual Marcelo Freixo presidia a famosa “CPI das Milícias” na ALERJ, numa investigação que traria à tona as relações íntimas entre políticos, policiais e ex-policiais na formação de grupos armados de crime organizado que tomaram o controle de comunidades inteiras no estado do Rio de Janeiro. 12 anos depois, o Brasil assiste a uma série de provas demonstrando que esta relação íntima teria, enfim, chegado ao Palácio da Alvorada.

De antigas condecorações concedidas a Policiais Militares assassinos na ALERJ até ao mais recente caso de “rachadinha” no gabinete de Flavio Bolsonaro, abastecendo interesses de milicianos na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a família Bolsonaro parece atolada até o pescoço com estas organizações criminosas cariocas.

Neste artigo, porém, quero apontar para um outro risco miliciano que parece cada dia mais assombrar o país. Não me refiro ao fenômeno de grupos de PMs aposentados tomando controle de favelas, aterrorizando suas populações para explorá-las economicamente, como com a venda de “gatonet” e botijão de gás. Me refiro, aqui, a possibilidade de o país ver proliferar em seu território o surgimento de milícias privadas de caráter político-ideológico, numa verdadeira cópia abrasileirada do modelo miliciano dos EUA.

No país norte-americano, este movimento específico de milícias surgiu com mais força nos anos 1990 e, segundo a BBC, no fim de 2017, já contabilizavam 165 grupos paramilitares1. Quase todas essas milícias privadas, ainda atuantes, são vistas frequentemente em manifestações como a de Charlotesville, portando armas de forma ostensiva enquanto vestem roupas que lembram o fardamento das Forças Armadas.

Embora nem sempre apoiem abertamente tais movimentos, a maioria esmagadora destas milícias tem ligações com a extrema-direita dos EUA, havendo relatos, por exemplo, de membros presos por planejarem ataques xenófobos. Outro caso simbólico é o da milícia “Guardian Patriots”, cujo líder, Jim Benvie, chegou a ser preso em 2009 por fingir ser um patrulheiro de fronteira. Seu grupo paramilitar, fortemente armado, é conhecido por vigiar as fronteiras com o México em busca de imigrantes ilegais tentando entrar no país. Como muitas outras milícias norte-americanas, ela conta com vários veteranos das Forças Armadas dos EUA e apoia abertamente medidas de Trump como a construção de um muro na fronteira.

Aqui no Brasil, apesar da descarada aproximação com o modelo, digamos assim, “mafioso” das milícias cariocas, a família Bolsonaro dá mostras de que enxerga com carinho o modelo miliciano norte-americano.

Em 2008, numa entrevista à BBC inglesa2, Bolsonaro defendeu as milícias do Rio de Janeiro dizendo: “elas oferecem segurança e, desta forma, conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. É o que se chama de milícia. O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas. E, talvez, no futuro, deveria legalizá-las”. Na ocasião, ele ainda ignorava o fato de que estes grupos paramilitares exerciam uma exploração econômica sobre a população local, focando em um caráter essencialmente político das milícias, como garantidoras de uma visão extremamente fascista de ordem. Deve-se dizer que ele era acompanhado em sua visão por seu filho mais velho, na época já eleito, Flávio Bolsonaro.

Outro ponto que indica esse apreço pelo movimento miliciano norte-americano é a obsessão de Bolsonaro pela flexibilização das leis sobre posse e porte de armas no Brasil. É importante que se diga que as milícias só se organizam de forma tão livre nos EUA, ostentando fuzis e outros armamentos pesados, porque o país tem uma regulação frouxa na maior parte dos estados.

Tempos atrás, em artigo3 que escrevi no fim de 2017, analisei os últimos 10 anos de atuação de Bolsonaro na Câmara antes de se candidatar à presidência. A atuação apagada do então Deputado Federal era praticamente restrita a duas questões: interesses previdenciários e trabalhistas de militares e o afrouxamento das regras para adquirir armamento. Por isso, não foi surpresa que, como Presidente, umas das primeiras medidas de Bolsonaro tenham sido os decretos que facilitavam a posse de armas. O fácil acesso às armas é condição essencial para o surgimento de grandes milícias de extrema-direita no país.

E o surgimento, ainda tímido e caricato, de grupos abertamente armados, como o “300 do Brasil”, não deixa de ser um indício do início desse processo. Simbolizado por uma pessoa com ligações a movimentos nazistas (cujo nome não vale a menção) que admitiu a presença de armamento no acampamento montado em Brasília, o grupo paramilitar foi, inclusive, chamado de “milícia armada” em ação movida pelo Ministério Público da capital.

Além disso, as constantes estranhas movimentações em meios militares brasileiros devem servir de alerta. O recente encontro de Bolsonaro com supostos paraquedistas que o saudaram como um líder quase religioso foi apenas mais uma das várias amostras da explosiva mistura do discurso fascista de Bolsonaro com organizações militares e paramilitares.

Há também que se atentar ao ocorrido em Sobral no início do ano, onde um grupo de policiais militares foi muito além das confusões que geralmente se vê em greves policiais. Na ocasião, escrevi artigo4 dizendo que aquele movimento não poderia ser comparado ao das milícias cariocas, e sim enxergado como um evento de politização de grupos dentro da Polícia Militar que, pelo andar da carruagem, teriam forte pendência à extrema-direita, assemelhando-se ao papel das polícias no recente golpe sofrido na Bolívia.

Deve-se lembrar, porém, que membros de forças de segurança e das Forças Armadas alinhados aos discursos políticos de extrema-direita têm, também, papel essencial na formação das milícias nos EUA. O crescimento de grupos com essas tendências no seio das instituições policiais pode ou não acabar se comunicando com um possível fenômeno de crescimento das milícias políticas no Brasil.

Tem-se dado como certo o envolvimento da família Bolsonaro com as mafiosas milícias cariocas e, a exemplo da politização tendente à extrema-direita de membros das forças policiais, este fenômeno pode ou não vir a se comunicar com a proliferação de milícias privadas armadas aos moldes dos EUA no Brasil. De qualquer modo, com o acirramento da crise política no país, essa é uma discussão que merece mais atenção da nossa parte. Não é loucura pensar que Bolsonaro tenha em mente um processo de milicianização da política brasileira.

1 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42371433

2 http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7283640.stm

3 https://www.justificando.com/2017/10/17/bolsonaro-adota-discurso-nacionalista-mas-na-pratica-adota-velho-entreguismo/

4 https://outraspalavras.net/crise-brasileira/quando-a-policia-bandida-quer-mandar-na-sociedade/

*Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

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