Em Nova York, constrói-se, agora, uma distopia: não haverá contato social; as maiorias sobreviverão de trabalhos braçais e subalternos; corporações e Estado controlarão os inseridos. Alternativa: incorporar as novas tecnologias ao Comum
Por Slavoj Zizek | Tradução de Simone Paz, em Outras Palavras
As funções básicas do Estado de Nova York, muito em breve, poderão ser “reimaginadas” graças à aliança do governador Andrew Cuomo com a Big Tech personificada. Seria este o campo de testes para um futuro distópico sem contato físico?
Parece que a escolha básica que nos resta para lidar com a pandemia se reduz a duas opções: uma é ao estilo de Trump (com uma volta à atividade econômica sob as condições de liberdade de mercado e lucratividade, mesmo que isso traga milhares de mortes a mais); a outra é a que nossa mídia chama de o “jeitinho chinês” (um controle estatal, total e digitalizado, dos indivíduos).
Entretanto, nos EUA, ainda existe uma terceira opção, que vem sendo divulgada pelo governador de Nova York, Andrew Cuomo, e pelo ex-CEO do Google, Eric Schmidt — em conjunto com Michael Bloomberg e Bill Gates e sua esposa Melinda, nos bastidores. Naomi Klein e o The Intercept chamam essa alternativa de Screen New Deal [alusão jocosa ao Green New Deal, que pressupõe uma Virada Sócioambiental. Screen New Deal seria algo como Virada para dentro das Telas] Ele vem com a promessa de manter o indivíduo a salvo das infecções, mantendo todas as liberdades pessoais que interessam aos liberais — mas será que tem chances de funcionar?
Em uma de suas reflexões sobre a morte, o comediante de stand-up Anthony Jeselnik fala sobre sua avó: “Nós achávamos que ela tinha morrido feliz, enquanto dormia. Mas a autópsia revelou uma verdade horrível: ela morreu durante a autópsia”. Esse é o problema da autópsia de Eric Schmidt sobre nossa situação: a autópsia e suas implicações tornam nossa situação muito mais catastrófica do que é para ser.
Cuomo e Schmidt anunciaram um projeto para “reimaginar a realidade pós-Covid do estado de Nova York, com ênfase na integração permanente da tecnologia em todos os aspectos da vida cívica”. Na visão de Klein, isso levará a um “futuro-sem-contato permanente, altamente lucrativo”, no qual não existirá o dinheiro vivo, nem a necessidade de sair de casa para gastá-lo. Todos os serviços e mercadorias possíveis poderão ser encomendados pela internet, entregues por drone, e “compartilhados numa tela, por meio de uma plataforma”. E, para fazer esse futuro funcionar, seria necessário explorar massivamente “trabalhadores anônimos aglomerados em armazéns, data centers, fábricas de moderação de conteúdo, galpões de manufatura de eletrônicos, minas de lítio, fazendas industriais, plantas de processamento de carne, e prisões”. Existem dois aspectos cruciais que chamam a atenção nesta descrição logo de cara.
O primeiro é o paradoxo de que os privilegiados que poderão usufruir de uma vida nos ambientes sem contato serão, também, os mais controlados: toda a vida deles estará nua à verdadeira sede do poder, à combinação do governo com a Big Tech. Está certo que as redes que são a alma de nossa existência estejam nas mãos de empresas privadas como Google, Amazon e Apple? Empresas que, fundidas com agências de segurança estatais, terão a capacidade de censurar e manipular os dados disponíveis para nós ou mesmo nos desconectar do espaço público? Lembre-se de que Schmidt e Cuomo recebem imensos investimentos públicos nessas empresas — então, não deveria o público ter também acesso a elas e poder controlá-las? Em resumo, como propõe Klein, eles não deveriam ser transformados em serviços públicos sem fins lucrativos? Sem um movimento semelhante, a democracia, em qualquer sentido significativo, será de fato abolida, já que o componente básico de nossos bens comuns — o espaço compartilhado de nossa comunicação e interação — estará sob controle privado
O segundo aspecto é que o Screen New Deal intervém na luta de classes num ponto bem específico e preciso. A crise do vírus nos conscientizou completamente do papel crucial daqueles que David Harvey chamou de “nova classe trabalhadora”: cuidadores de todos os tipos, desde enfermeiros até aqueles que entregam comida e outros pacotes, ou os que esvaziam nossas lixeiras, etc. Para nós, que conseguimos nos auto-isolar, esses trabalhadores se tornaram nosso principal contato com outro, em sua forma corpórea, uma fonte de ajuda, mas também de possível contágio. O Screen New Deal não passa de um plano para minimizar o papel visível dessa classe de cuidadores, que deve permanecer não-isolada, praticamente desprotegida, expondo-se ao perigo viral, para que nós, os privilegiados, possamos sobreviver em segurança — alguns até sonham com a possibilidade de que robôs passem a tomar conta dos idosos e lhes façam companhia… Mas esses cuidadores invisíveis podem se rebelar, exigindo maior proteção: na indústria de frigoríficos nos EUA, milhares de trabalhadores tiveram a covid, e dezenas morreram; e coisas semelhantes estão acontecendo na Alemanha. Agora, novas formas de luta de classes vão surgir
Se levarmos esse projeto à sua conclusão hiperbólica, ao final do Screen New Deal existe a ideia de um cérebro conectado, de nossos cérebros compartilhando diretamente experiências em uma Singularidade, uma espécie de autoconsciência coletiva divina. Elon Musk, outro gênio da tecnologia de nossos tempos, recentemente declarou que ele acredita que em questão de 10 anos a linguagem humana estará obsoleta e que, se alguém ainda a utilizar, será “por motivos sentimentais”. Como diretor da Neuralink, ele diz que planeja conectar um dispositivo ao cérebro humano dentro de 12 meses
Esse cenário, quando combinado com a extrapolação do futuro em casa de Naomi Klein, a partir das ambições dos simbiontes de Big Tech de Cuomo, não lembra a situação dos humanos no filme Matrix? Protegidos, fisicamente isolados e sem palavras em nossas bolhas de isolamento, estaremos mais unidos do que nunca, espiritualmente, enquanto os senhores da alta tecnologia lucram e uma multidão de milhões de humanos invisíveis faz o trabalho pesado — uma visão de pesadelo, se é que alguma vez existiu alguma
No Chile, durante os protestos que eclodiram em outubro de 2019, uma pichação num muro dizia: “Outro fim de mundo é possível”. Essa deveria ser nossa resposta para o Screen New Deal: sim, nosso mundo chegou ao fim, mas um futuro-sem-contato não é a única alternativa, outro fim de mundo é possível.