A boiada da Amazônia no covil dos bandidos. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Parecia o encontro de uma quadrilha de malfeitores a reunião de Bolsonaro com seus ministros divulgada nesta sexta (22) por ordem do STF. Durante duas horas, muitos palavrões, mas nenhuma plano, sequer uma palavra, sobre como combater a pandemia, que naquele dia já havia feito mais de 3.000 mortes, com quase 50.000 infectados pelo coronavirus. Os discursos de cada um se referiam a interesses privados, nada republicanos. Um deles enunciado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, diz que é preciso aproveitar que “a imprensa tá voltada quase que exclusivamente pro covid” para “deixar a boiada passar” e mudar em surdina as regras de proteção ao meio ambiente conquistadas a duras penas.

A coluna de hoje, escrita antes da divulgação do vídeo, já tinha até um título: “A grilagem do barbeiro careca”. Lá discutíamos justamente como o deputado federal Marcelo Ramos (PL-AM vixe vixe) aproveita o momento atual em que a mídia está preocupada com mais de 21.000 mortos e 330.890 infectados para fazer “passar o boi” do Projeto de Lei 2.633, conhecido como o PL da Grilagem, do qual é o relator. Ele quer entregar terras públicas federais aos invasores das áreas, beneficiando desmatadores criminosos. Trata-se de um reedição camuflada da Medida Provisória (MP 910/2019) do Bolsonaro, retirada de pauta, envernizada agora para promover nova onda de desmatamento e violência na Amazônia no interesse da bancada ruralista.

Duas dezenas de artistas, entre os quais Caetano Veloso, Alessandra Negrini, Malu Mader, Betty Faria, Daniela Mercury, comprometidos com a defesa da floresta e de seus moradores, humanos ou não, enviaram ao deputado um vídeo, solicitando que adie a votação do projeto prevista agora para a próxima quarta-feira (27), em plena pandemia do coronavirus, enquanto milhares de famílias choram os seus mortos. Gaby Amarantos implora: “Ouça o povo brasileiro, não vote a PL agora, por favor, espere passar a pandemia para que haja um debate mais amplo”. Cássia Kis pede um milagre: “Que Deus ilumine seu coração, sua mente”.

O barbeiro careca

O discurso de Marcelo Ramos, no entanto, já está dominado pela ação do barbeiro careca, que grilou o cérebro do parlamentar e desmatou os seus neurônios, como se pode constatar na resposta que deu. Irritado e prepotente, não argumentou. Instalado em seu apartamento funcional de Brasília, com salário de R$33.763,00, além de penduricalhos e mordomias, desqualificou os artistas:

“Vocês estão nos seus apartamentos confortáveis no Rio ou em São Paulo para falar de uma Amazônia que vocês só conhecem pela internet, pela TV ou em visitas de passeio”. Sem argumentos para contradizer, atacou os artistas e tentou desacreditá-los, usando o falacioso argumento ad hominem.

“Somente os que nasceram e moram na Amazônia conhecem a região. Os outros, os de fora, que fiquem calados”. Os artistas citados, com exceção da paraense Gaby Amarantos, não podem amar, defender ou conhecer a Amazônia, porque isso é monopólio de quem lá nasceu. Tamanha bobagem equivale a dizer que um careca não pode ser barbeiro, porque não tem cabelo. A lógica do barbeiro careca é obtusa. O barbeiro não precisa ter cabelo para trabalhar a cabeça dos outros, da mesma forma que o cientista não precisa ser amazonense para escolher a Amazônia como objeto de estudo. O importante é que a tesoura dele e suas ferramentas conceituais estejam afiadas.

Marcelo com sua lógica do barbeiro careca quer criar uma reserva de mercado no campo epistemológico, esquecendo que a linguagem da ciência é universal e que muitos estudiosos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), alguns dos quais estrangeiros, não nasceram na região. Posso fazer uma lista com mais de uma centena de cientistas de fora, cujos estudos desde o séc. XIX são imprescindíveis para conhecer a floresta e seus habitantes. Só para dar dois exemplos atuais: impossível entender a Amazônia sem os trabalhos do biólogo João Paulo Capobianco e do físico Paulo Artaxo, ambos da USP.

Na coluna que já estava escrita, eu me perguntava o que aconteceu para que mudasse de lado esse deputado, ex-militante do PCdoB e ex-presidente do Centro Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Amazonas. Por que despirocou dessa forma? Como foi possível que se tornasse refém do que existe de mais atrasado, corrompido e podre na política nacional? Talvez ele esteja agora buscando um lugar na sala de reunião dos ministros de Bolsonaro, onde conviverá com seus comparsas e chamará os ministros do STF de “vagabundos”. E de “bostas” o governador de São Paulo e o prefeito de Manaus. Aliás, tal ofensa só enobrece o currículo do prefeito Arthur Vergílio Neto.

Circo de horrores

O texto original da coluna Takiprati, agora modificado, respondia às perguntas, descrevendo a trajetória de Marcelo Ramos no cenário político do Amazonas. No entanto, diante do que aconteceu no covil de bandidos, Marcelo ficou pequenininho. Ele precisa ainda comer muito feijão para competir nesse circo de horrores com um Weintraub, que odeia os povos indígenas e quer prender “os ministros vagabundos do STF”, ou com a Damares que fala em botar em cana governadores e prefeitos. Ou ainda com Ricardo Salles que faz o que Marcelo Ramos quer fazer, mas explicita com todas as letras que está se lixando para a dor das vítimas da pandemia.

Todos eles, incluindo o Capo da Cosa Nostra, vão enfrentar mais adiante os tribunais e a Historia, como aconteceu com os generais na Argentina.

Nas redes sociais, muita gente horrorizada. O Brasil não é esse lixo. Não pode ser. Para o prefeito de Manaus, parecia “uma reunião de vagabundos na esquina”. Mas essa avaliação é ofensiva aos vagabundos, que não vivem de verbas públicas e nem causam danos a terceiros. O capo estava ali manobrando claramente para impedir que ele e seus filhos, acusados de corrupção, fossem investigados. Os ministros se encarregaram de distrair o distinto público.

Se o leitor me permitir, concluo aqui com a postagem de minha colega na Uerj, Ana Chrystina Mignot, que resume o sentimento de todos nós.

Chocada. Em meio à pandemia, a reunião ministerial ignora a dor dos brasileiros, despreza a necessidade de planejar saídas para minimizar as mortes.

Perplexa. O linguajar é pobre. As ideias são podres. Fedem à nostalgia de ditadura. Exalam cheiro de desrespeito à democracia.

Indignada. Pagamos salários, gratificações e mordomias para esta cambada despreparada, autoritária e insaciável. Turma de bajuladores. Gente do mal.

Amedrontada. O que fazer diante da promessa de armar a população? Como aceitar um governo comprometido com milícias?

Impotente. Olho em volta e vejo que ainda tem quem aplauda as ameaças explícitas e veladas à nossa democracia.

Enojada. Choro pelos povos indígenas. Pelos pobres. Pelos doentes. Pelos velhos. Choro por você. Choro por mim. Choro de indignação, de vergonha, de medo e de nojo”.

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