Por Marcio Camilo, Amazônia Real
“Eu queria entrar lá e morrer guerreando sozinho. As outras crianças se curam. Por que só os meus netos que morrem?”, indaga indignado o cacique geral da Terra Indígena Marãiwatsédé, Damião Paridzané, do povo Xavante, ao falar sobre a reação de quando soube que o neto de oito meses morreu por Covid-19, no dia 11 de maio, no Hospital Regional Paulo Alemão, no município de Água Boa, no nordeste do Mato Grosso. O cacique contou que nos últimos anos perdeu seis netos por várias doenças como diarreia e desnutrição.
A morte da criança foi tratada pelo governo estadual como a vítima mais nova do coronavírus no estado e pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, como a primeira morte pela doença entre indígenas no Mato Grosso. Uma mulher infectada pelo vírus, também da etnia Xavante, está em tratamento em Barra do Garças.
O cacique Damião Paridzané não acredita que seu neto tenha morrido pela Covid-19. “Isso foi uma gripe. É muito comum que as nossas crianças tenham isso nos meses de março e abril”, disse ele em entrevista por telefone à Amazônia Real.
O bebê Xavante morava com os pais, a irmã de um ano meio, os avós maternos e ao menos seis tias, todos numa mesma residência na aldeia Marãiwatsédé, que leva o mesmo nome da terra indígena.
Ao todo, na aldeia, vivem cerca de 60 pessoas, de acordo com os dados do “Plano de Contingência sobre Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19) em Povos Indígenas do Distrito Sanitário Especial Indígena Xavante”.
O cacique Damião contou que os sintomas de resfriado no bebê surgiram no dia 8 de maio. “Estava tossindo, com febre, desnutrição e diarreia muito forte. Sua irmã, de um ano e meio, estava com sintomas parecidos, mas havia se curado”, relatou.
Mas antes de ser levado ao médico, o bebê foi tratado com medicamentos tradicionais da etnia. “A avó dele disse que ia tratar com medicamento natural. Isso é muito popular em nossa cultura, de tratar os doentes com remédio natural; tanto que o meu neto ficou bom por um tempo. Ele curou, mas logo depois adoeceu de novo com febre”, afirmou a liderança.
Damião contou que o pai do seu neto, um de seus filhos, não permitiu que ele fosse retirado da aldeia, em diferentes ocasiões. “Esse realmente foi um erro dele”, diz Damião.
Após essa situação com o filho, o cacique disse que “eu autorizei que (o neto) fosse encaminhado para o hospital de Bom Jesus do Araguaia”.
Bom Jesus do Araguaia é um dos municípios de referência para atender indígenas da Terra Indígena Marãiwatsédé. Segundo o cacique, seu neto foi levado pela mãe à Unidade de Saúde do município de Bom Jesus do Araguaia no dia 10 de maio à tarde, mas como o hospital não possuía Unidade de Terapia Intensiva (UTI), Damião disse que a criança foi transferida a noite para o Hospital Regional Paulo Alemão, em Água Boa.
Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, o bebê possuía quadro de desnutrição e desidratação moderada. No Hospital Regional Paulo Alemão, exames confirmaram, primeiro, sinais da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).
“Meu neto foi medicado [no hospital regional]. Amanheceu [dia 11] bom e a mãe até deu comida para ele. Mas depois, a enfermeira disse que precisava levar ele para UTI e colocaram sonda nele. Nem perguntaram para os pais se era para colocar”, contou a liderança sobre o procedimento da internação da criança.
Damião se disse indignado que o neto foi entubado, dando a entender que não foi informado que pacientes de Covid-19 precisam de respiradores com oxigênio.O bebê morreu às 15h do dia 11 de maio. “Depois, quando já era de tarde, vieram dando a notícia que meu neto estava morto”, contou o avô.
“Senti vontade de invadir o hospital regional e guerrear sozinho até morrer, assim como meus ancestrais faziam. Mas hoje já não dá pra fazer isso, né? Tem que esperar a política, a boa vontade do homem branco… fazer o quê?”, disse o cacique quando soube da morte do neto de apenas oito meses.
O líder do território Marãiwatsédé destacou que o funeral do bebê foi realizado conforme a tradição Xavante – portanto, sem o lacre do caixão como prevê as normas de prevenção de contaminação do vírus, como adotou o Ministério da Saúde.
“Recebi o corpo dele só a noite, umas 19 horas. Abri o caixão pra ver a cara do meu neto e vi que tinha sangue seco no nariz e na boca dele. Fiquei muito chateado, pois a sonda eu acho que não precisava colocar. Falam que é para alimentar ou para a respiração, mas ele era muito pequeno pra isso”, lamentou o cacique.
Após sete dias do sepultamento da criança na aldeia Marãiwatsédé, a Sesai anunciou nesta quinta-feira (21) que “amostras nasoorofraríngeo enviadas ao Laboratório Central de Saúde Pública de Mato Grosso (LACEN), apresentaram resultado positivo para Covid-19, no dia 18 de maio”. Uma nota do órgão explica que o teste foi confirmado positivo pelo método RT-CR, que identifica o vírus no organismo através de secreções respiratória.
A Sesai não comentou se a família Xavante foi informada sobre o procedimento médico que é adotado nas UTI´s para pacientes com a doença. Sobre como o bebê foi infectado pelo vírus, a secretaria disse que “o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (Dsei) Xavante está fazendo a investigação epidemiológica para identificação da fonte de infecção e adotando todas as medidas de orientação, conscientização e busca ativa, necessárias ao combate à Covid-19”.
O cacique Damião afirma que não entende por que o seu neto morreu. “Não é de hoje que estão matando os meus netos. Sete netos meus já morreram por causa disso. Falavam que era gripe. Agora, com esse, foi o coronavírus. Eu não entendo. Por que só neto da minha família morre e as outras crianças vão para o hospital, se curam e volta para aldeia [sic]”, reagiu o avô Xavante. Em 2013, o líder perdeu três netos, leia aqui.
Sobre as orientações a prevenção do coronavírus, a liderança confirmou que o Dsei Xavante tem passado orientações como lavar bem as mãos e outros cuidados com a higiene, mas segundo ele, falta atendimento de saúde nas aldeias de Marãiwatsédé. “Agora mesmo tem um monte de criança correndo, brincando resfriada na aldeia. E cadê os médicos? Cadê os medicamentos? A vacina… Não tem!”, crítica o cacique.
A Amazônia Real apurou que no polo do Dsei Xavante na TI Marãiwatsédé haveria apenas quatro profissionais de saúde para atender mais de mil indígenas. O cacique relata a situação no atendimento. “Eles falam que vão monitorar as aldeias, mas como, se não tem estrutura direito, se falta remédio e principalmente médico. O governo fala que está preocupado com o coronavírus nos indígenas, mas ninguém se preocupa com isso. E não é só em Marãiwatsédé esse descaso. A falta de saúde está em todo território indígena do Brasil”, disse o cacique Damião.
O dizem as autoridades?
O Ministério da Saúde, a Sesai e o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Xavante divulgaram uma nota conjunta de pesar lamentando o óbito do bebê Xavante da Terra Indígena Marãiwatsédé. “A Sesai, por meio da equipe do Dsei Xavante, externa apoio e solidariedade aos familiares e à toda comunidade Xavante e apresenta suas sinceras condolências”, diz a nota.
A Sesai informou que, no momento, faz uma investigação epidemiológica para saber como o bebê foi infectado pelo coronavírus. O órgão ressaltou que a criança “possuía quadro de desnutrição e desidratação moderada” e era atendida pela Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI).
No dia 8 de maio, conforme a nota da Sesai, o bebê Xavante apresentou sintomas respiratórios e foi encaminhado para Unidade de Saúde do município de Bom Jesus do Araguaia, em 10 de maio. Em seguida, diante do estado clínico, o paciente foi transferido para o Hospital Regional Paulo Alemão, em Água Boa.
Conforme a nota, após internação, “foi identificado sinais de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e amostra nas orofaríngeo, por método RT- PCR, foi coletada e encaminhada ao Laboratório Central de Saúde Pública de Mato Grosso (LACEN), em Cuiabá, que apresentou resultado positivo para Covid-19, no dia 18 de maio”.
A Sesai diz que a declaração de óbito do bebê consta, entre as causas da morte, a menção de Covid-19.
Quanto à falta de médicos e medicamentos, apontado pelo cacique Damião Paridzané, a coordenadora do Dsei Xavante, Luciene Gomes, disse por meio de nota enviada à reportagem, que a rotina de medicamentos “depende de diligências da equipe de saúde que atua em área, pois sempre que é solicitado é prontamente atendido”.
Ela ressalta que, em muitos casos, quando há reclamação por falta de medicação, a coordenação sempre pede “para indicar qual remédio está faltando e quando o profissional fez o pedido a última vez”.
Esse procedimento, conforme Luciene Gomes, é para avaliar se a reclamação possui fundamento, “pois trabalhamos sempre de forma técnica, registrando os dados para que as rotinas sempre sejam aperfeiçoadas, se necessário”.
Quanto à falta de médicos criticada por Damião, a coordenadora do Dsei Xavante ressaltou na nota que já encaminhou o pedido ao programa Mais Médicos, do governo federal, para que sejam ampliadas as vagas de profissionais para atender todas as demandas existentes atualmente. Para suprir a falta de profissional, segundo Luciene Gomes, o distrito fez uma parceria como os municípios da região que têm disponibilizado médicos para atender nas aldeias.
Ela também ressaltou que Cacique Damião “é uma liderança muito zelosa com a comunidade da Terra Indígena Maraiwatsede” e que a equipe de saúde que atua no território “é muito dedicada e amada pela população, exatamente porque fazem sempre o melhor pela comunidade”.
O que diz a Funai?
A Funai publicou uma nota de pesar em seu site, lamentando a morte do neto de Damião e ressaltou que desde a confirmação do exame positivo para Covid-19 tem acompanhado de perto Marãiwatsédé. Segundo a Funai não foram confirmados novos casos até o momento.
“A Funai segue acompanhando a comunidade indígena e está tomando todas as providências necessárias, junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), para que sejam cumpridos os protocolos de contingenciamento na aldeia”, enfatizou o órgão indigenista.
A Luta pelo território
Marãiwatsédé – que significa mata densa no idioma Xavante, tronco linguístico Jê – está localizada entre as bacias do Xingu e Araguaia, no nordeste mato-grossense. De acordo com Dsei Xavante, vivem no território 1057 pessoas indígenas em nove aldeias.
A Funai declarou reconhecer o território como originário dos povos Xavante, que foi retirado da etnia pelo governo militar, na metade dos anos 1960.
A terra indígena ficou nacionalmente conhecida entre os anos de 2012 a 2014, quando a Força Nacional de Segurança foi deslocada à região para fazer a desintrusão (retirada) de pessoas que haviam invadido ilegalmente o território, a partir de 1992.
Nesse período cerca de 90% dos 165 mil hectares de Marãiwatsédé foram ocupados por grande posseiros, ruralistas e até políticos, para a expansão da atividade agrícola e agropecuária com a produção de grandes latifúndios de soja, arroz e pastagem para milhares de cabeças e gado, por exemplo.
Cacique Damião Paridzané foi o principal nome da luta indígena pelo retorno à TI Marãiwatsédé ao povo Xavante. Hoje, após oito anos da desocupação dos invasores, a terra indígena ainda sofre com a falta de infraestrutura e principalmente de subsídios do governo federal.
A liderança diz que sofre perseguição política por causa da sua atuação no processo que levou a desintrusão de posseiros. “Eu não tenho confiança. Até hoje sou ameaçado por ocupadores que foram expulsos na nossa conquista da terra. Eles dizem que vou ser castigado, que as nossas famílias vão morrer com veneno na comida, com o solo contaminado por causa do agrotóxico”.
Damião também reclamou dos impactos da rodovia BR-158 que passa dentro da terra indígena, servindo como rota de escoamento da produção agrícola do estado. “Os caminhões de transporte passam por aqui e levantam poeira. Toda essa fumaça cobre as aldeias e isso agrava ainda mais os problemas respiratórios. É nessas horas que agente sente falta do governo, da Funai e da Sesai”, diz o cacique da TI Marãiwatsédé.