Por Valéria Araújo, O PROGRESSO
A chegada do Covid-19 nas aldeias de Dourados, a mais populosa do País, gerou uma onda de comentários preconceituosos e de ódio nas redes sociais. A situação chamou a atenção da pedagoga indígena Michelli Alves Machado, que copiou várias dessas manifestações negativas em relação a comunidade e postou em sua rede social com o título “Assim caminha a desumanidade”. Ao O PROGRESSO ela disse o objetivo da colagem foi a de chamar a atenção da sociedade para esse preconceito enraizado que está dentro delas e que a doença é apenas uma desculpa para a disseminação desse ódio.
“O problema não é a pandemia, a questão é que somos indígenas. Se essas pessoas pudessem exterminar ou apagar a população indígena eles fariam isso sem pensar duas vezes. Estão usando o vírus apenas para aflorar o ódio e preconceito que estão dentro delas. Muita gente de Dourados conhece a Reserva, mas só se apega a questões negativas dela e generalizam. Dizem que só tem pinguço, que nós só vivemos de cesta básica ou que não gostamos de trabalhar. Mas essas mesmas pessoas se esquecem que perfis como os descritos existem em qualquer comunidade indígena ou não”, destaca. Segundo ela, dentre os vários comentários racistas, o que insinua que “índio não é humano” foi o que mais chamou a atenção. “A gente é o que? Não podemos pode ser considerados humano? Somos animais?”, indaga.
Além disso, segundo ela, houve comentários de que os índios teriam que ser presos dentro da reserva. “Como na cidade, as pessoas aqui só estão saindo para trabalhar. Esquecem da importância econômica que os quase 20 mil indígenas geram para o município. Se fizerem uma pesquisa no comércio, por exemplo, vão ver que os índios são os que mais pagam em dia”, enfatiza.
Conforme a pedagoga, além de querer “prender” os índios na reserva comentários insinuam que eles são culpados pela disseminação do vírus. “Ninguém quer ficar doente e se o vírus chegou até aqui foi porque foi transmitido”, ressalta.
Professor na Faculdade Intercultural Indígena na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Cassio Knapp também acredita que o momento aflorou um preconceito que já é latente na cidade. “Se pensarmos do ponto de vista histórico, é triste e cômico ao mesmo tempo ver pessoas falando que os “índios estão do lado de Dourados” quando na verdade a cidade é que foi formada ao redor de uma área demarcada para os indígenas. A cidade não estava aqui primeiro. Nesses momentos as pessoas tendem a enxergar os indígenas na cidade de Dourados como se esses já não convivessem nela, parte do apagamento e da invisibilidade dos povos indígenas na cidade demonstra o preconceito do cotidiano da cidade”.
Ele acrescenta: “Se exclui toda uma percepção até econômica que esses sujeitos tem com a cidade como se ela fosse um lugar que não fosse construído com a presença indígena. Como se existisse a cidade para os “brancos” e a não-cidade para os indígenas”, ressalta.
Na mesma linha de raciocínio, o professor de Geohistória Colonial na Faculdade Intercultural Indígena, Neimar Machado de Souza, acredita que esses preconceitos, resultado da ignorância e falta de conhecimento, são antigos. “Os comentários preconceituosos nas redes sociais contra os povos indígenas revela gente contaminada pela desumanidade e que pensa ser a internet território sem lei. Além disso as ofensas virtuais desnudam o racismo real que atribui ao oprimido a causa de sua opressão, ao doente, a causa de seu mal, escondendo a verdade que se trata de um vírus colonial, que se espraiou do centro para a periferia, além, de ordem de suas preferências, atingir em cheio a população já empobrecida, maior fator de risco à COVID-19. Para o preconceito também não temos vacina”, ressaltou.
Providências
Advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Anderson Santos, destaca que crimes de ódio na internet podem gerar multas e penas de prisão que variam de um a três anos de prisão. “Lamentável a discriminação e o preconceito que sofre a comunidade indígena na região de Dourados. Considero o local onde mais se exerce o ódio contra populações indígenas no País. A ignorância das pessoas as cegam, não as deixam ver que todos somos humanos e se estamos em uma posição melhor ou pior, não foi por nossas escolhas, mas sim pelas oportunidades que obtivemos durante a vida”, ressalta.
Ele continua: “Os comentários racistas e preconceituosos serão todos colhidos pela assessoria jurídica do CIMI e encaminhados aos ministério público federal para tomada de providências que vai desde a abertura de procedimento investigativo a fim de averiguar a ocorrência de crime previsto no art. 140, parágrafo terceiro do código penal brasileiro e, até mesmo, a possibilidade de ações judiais por dano coletivo contra a população indígena. Todos os comentários feitos nesse calão serão imediatamente acessados para evitar que se apaguem”, enfatizou.
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Foto: Carlos Eduardo Ramirez/Agência Brasil
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.