“Lockdown” com justiça social, já! (1)

Dois estudos (da FGV e Unicamp) confirmam as piores previsões sobre a covid-19. Fechamento das cidades tem apoio popular, mas exige a redistribuição de riquezas e a reorganização produtiva compatíveis às de uma Economia para a Vida

por Antonio Martins, em Outras Palavras

I. A grande disjuntiva brasileira

No momento mais grave da pandemia de covid-19, o Brasil está à beira de passo catastrófico. Em muitos estados e municípios – inclusive em parte daqueles cujos governantes opõem-se a Jair Bolsonaro – ensaia-se o retorno às ruas. A pressão do poder econômico intensificou-se. A sabotagem do Palácio do Planalto às medidas protetivas nunca cessará. Temerosas, as autoridades vacilam. Em São Paulo, o distanciamento social começará a ser “flexibilizado” em 1º/6. No Distrito Federal, os shoppings estão sendo reabertos. No Maranhão, a quarentena durou muito pouco. No Rio de Janeiro e em partes da Região Sul, até os templos religiosos estão sendo autorizados a reabrir.

Nenhuma destas decisões é tomada com base em evidências ou estudos que as recomendem. Pode haver, nos próximos meses, dezenas ou centenas de milhares de mortes desnecessárias e estúpidas, conforme advertem dois relatórios recentíssimos, de instituições científicas renomadas. Os governadores e prefeitos sabem que correm enormes riscos e torcem para que as piores previsões, como que por milagre, não se concretizem. Eles foram convencidos de que a opção que poderia evitar uma tragédia – o lockdown, ou paralisação rigorosa de todas as atividades econômicas não essenciais – não funcionará. Ao contrário do que ocorreu com grande sucesso na China e, a partir de certo ponto, na Itália, Espanha e mesmo em partes dos Estados Unidos, o Brasil não teria condições de realizá-lo.

Uma pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada hoje, sugere o contrário. Diante da ameaça, 60% dos brasileiros defendem o lockdown – quase o dobro dos (36%) que se opõem a ele. A adesão é mais forte entre os que se sabem vulneráveis e entre os grupos que, costumeiramente, apoiam as ideias progressistas: os de renda mais baixa (67%); os mais jovens (72%); os nordestinos (69%); os estudantes (83%); as mulheres (68%).

Porém, a despeito deste posicionamento nítido, a enquete também mostra que uma parcela crescente da população não está cumprindo as regras que julga necessárias para enfrentar a pandemia. O número dos que saem de casa “apenas quando é inevitável” declinou de 54% para 50%, nas últimas sete semanas. Em sentido oposto, aumentou de modo alarmante – de 24% para 35% – o percentual dos que “saem para trabalhar ou fazer outras atividades”. Os “totalmente isolados”, que nunca saem, reduziram-se de 18% para 13%.

O contraste entre a vasta consciência sobre o que precisa ser feito e o cumprimento cada vez menor destas normas tem uma explicação óbvia. À medida em que os tentáculos da covid-19 se espraiam para as periferias e o interior do país, eles atingem grupos populacionais que, embora adotem atitude responsável diante da doença, carecem de condições materiais para fazer a coisa certa. Dois fatores concorrem para isso. Primeiro: faltam a estes brasileiros condições financeiras mínimas para permanecer em casa. Eles são, em grande maioria, trabalhadores por conta própria, em posições que a sociedade torna subalternas, num país cada vez mais desigual, precário e endividado. Um motorista de aplicativo, uma faxineira, um encanador, um vendedor ambulante, uma dona de salão de belezanão podem sustentar-se com os míseros R$ 600 do “auxílio emergencial” aprovados (e pagos de modo provisório e incerto) pelo Estado. A pena, caso não se exponham ao vírus, é despencar nos abismos de exclusão social. Segundo: o distanciamento social, nas periferias, é extremamente penoso. Requer, além de disposição psíquica férrea, equipamentos especiais. Por exemplo, máscaras de alta proteção; testes abundantes e sem custo; hospedagem fora do domicílio para os contagiados. Nada disso – nem renda suficiente, nem meios que aliviem a dificuldade de isolamento – foi oferecido até hoje pelo Estado, este mesmo ente que, numa penada, autorizou os bancos a criarem, do nada, R$ 1,2 trilhão.

No dia em que se escreve este texto – 27/5 – o Brasil está diante de uma disjuntiva. O total de mortos pela covid-19 está a ponto de ultrapassar a barreira dos 25 mil. O país tornou-se o epicentro mundial da pandemia, o que registra, a cada dia, o maior número de óbitos por milhão de habitantes. Além disso é, das nações mais fortemente atingidas, a única em que tanto a curva de contágios quanto a de vítimas fatais continuam a crescer rapidamente. Há apenas duas opções. A primeira é naturalizar a tragédia; aceitá-la como mais um signo da impotência nacional; enfiar o rabo entre as pernas e esperar pelas dezenas ou centenas de milhares de mortos que cairão sobre nós.

A outra é adotar agora, uma espécie de lockdown com justiça. Implica tornar mais radicais as normas do #fiqueemcasa – restringindo os serviços autorizados a funcionar, reduzindo a possibilidade de circulação e estabelecendo multas para o descumprimento. Exige, ao mesmo, oferecer a todos as condições necessárias para esta quarentena real. Renda da Cidadania, de no mínimo 1 salário mínimo por CPF; renegociação das dívidas, com redução dos juros pessoais à taxa Selic. Reorientação econômica, para produzir no Brasil, rapidamente, os equipamentos necessários a combater a pandemia (em especial testes e máscaras); para oferecer abrigo a todos; e para garantir condições de isolamento aos contaminados que vivam em casas com alta densidade de moradores.

II. Rumo ao milhão de mortos?

Há cerca de dois meses, o biólogo Átila Iamarino alertou o país para o risco de nos depararmos com um milhão de mortes, caso o governo mantivesse a negligência criminosa diante da covid-19 e não houvesse reação à altura. Sua advertência repercutiu, num primeiro momento. Estados e municípios tomaram as primeiras medidas protetivas de distanciamento social. Porém, logo vieram os recuos, seja devido à sabotagem incessante da presidência da República ou à convicção insuficiente das demais autoridades (vale cotejá-la, por exemplo, com a determinação do presidente argentino Alberto Fernández, expressa neste vídeo).

O fato é que o Brasil caminha, como bovino ao matadouro, para algo próximo da tragédia antevista por Iamarino. Diversos sinais estatísticos mostram que suas projeções podem não ter sido exageradas. O primeiro é a condição, assumida pelo Brasil, de foco principal da covid-19. Ela está clara nos dois gráficos a seguir, publicados pelo site Our World in Data, que se tornou referência mundial para o acompanhamento da pandemia em todo o mundo. O primeiro gráfico compara a evolução do numero diário de novos casos, em países com situações semelhantes, diante da doença. Brasil, Estados Unidos, Rússia e Índia têm território continental, populações entre as maiores do planeta, fortes heterogeneidade étnica e desigualdade social.

O critério é o de casos por milhão – ou seja, estão descontadas as diferenças devidas à desproporção das populações. Repare que o Brasil acaba de ultrapassar o epicentro anterior da pandemia, os Estados Unidos. Num gráfico adiante, você verá que a “liderança” brasileira é ainda mais dramática porque, entre os quatro países, somos, de muito longe, o que menos oferece à população condições para testar a infecção pelo vírus. O segundo gráfico compara as mortes por milhão, também levando em conta a evolução diária. Claro: os Estados Unidos, que já ultrapassaram 100 mil óbitos, lideram. Mas a vantagem das curvas abaixo é apontar a tendência atual do número de vítimas fatais. Repare que, além de o Brasil ter ultrapassado os Estados Unidos, aqui a curva é ascendente – enquanto lá, ela declina, há cerca de quarenta dias, devido às medidas de lockdown tomadas em diversas partes do país, em especial em Nova York.

Porém, mais chocantes que estes dados são dois relatórios divulgados, ainda este mês, a partir de projeções estatísticas de matemáticos da Fundação Getúlio Vargas (Escola de Matemática Aplicada) e da Unicamp (Instituto de Geociências). Ambos partem de um fator epidemiológico decisivo: a taxa de contágio efetiva – ou seja o número de pessoas que cada paciente contaminado pelo vírus contagia, nas condições dadas pelas políticas de proteção existentes. Ambos partem da realidade atual de espalhamento da doença no Brasil. Ambos chegam a conclusões compatíveis com as de Iamarino.

O estudo da FGV tem como foco as condições médias de difusão da pandemia em todo o Brasil. Ele estima que a taxa de contágio natural do coronavírus é de 3,5 (cada pessoa portadora transmite, durante a infecção, o vírus a 3,5 outras). Avalia também que, como o índice de distanciamento social do Brasil tem sido de 50%, a taxa de contágio efetiva caiu, provavelmente, para 1,75. A partir daí, calcula que, mantidas as condições atuais, a doença atingirá o máximo por volta de 14 de julho – ou seja, daqui a cerca de sete semanas. Nesse momento, teremos cerca de 65 mil novos casos por dia. Como a taxa de mortalidade, no Brasil, tem se mantido em torno de 6%, estes casos projetarão cerca de 4 mil mortes diárias. A partir deste ponto, ao menos na onda atual, a covid recuará, por já ter infectado cerca de 70% da população. O gráfico abaixo, que expressa as conclusões do estudo, é assustador. Procure, no eixo horizontal, a data de hoje. Verifique que, com cerca de 25 mil mortos, estamos ainda num ponto baixo do grande tsunami.

Já o trabalho da Unicamp, coordenado pelo matemático Renato Pedrosa, refere-se especificamente ao estado de São Paulo, onde ele estima uma taxa de contágio efetiva mais baixa: 1,44 – talvez devido à quarentena parcial vigente desde março. A partir da evolução do número de casos, e de mortes, registrado no período de trinta dias encerrado em 10/5, o pesquisador projeta os mesmos números para as próximas semanas. Conclui que, em 30/6, haverá 1,1 mil mortes diárias na capital, e 2,5 mil em todo o Estado. Os números são compatíveis com 10 mil mortes diárias no Brasil.

Embora tenebrosas, as projeções ainda não levam em conta dois fatores. O primeiro é a difusão da covid-19 pelo interior do país. Devido à modelo peculiar de difusão geográfico-social do vírus, é um processo lento, porém explosivo. Tome, por enquanto, o caso do Amazonas do Pará. As capitais foram rapidamente atingidas, talvez devido ao turismo internacional; o interior, só semanas mais tarde. Mas, uma vez instalada, entre populações que têm acesso muito menor à serviços de Saúde e à informação, a doença age de modo devastador. Agora, das vinte cidades brasileiras com maior índice de mortalidade por covid-19, quinze estão num dos dois maiores estados amazônicos.

A precariedade não é menor nos grotões de outros estados, onde o vírus agora começa a se difundir. Segundo uma nota técnica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), numa única semana (de 9 a 16/5), seis municípios entre 20 e 50 mil habitantes registraram, a cada dia, a primeira morte por covid-19. Quando a doença, já instalada, se espalhar, os riscos de colapso, num sistema hospitalar público já estressado, serão dramáticos.

O outro fator ausente até agora nas projeções é ainda mais preocupante. Além de interiorizar-se, a covid-19 está penetrando nas periferias. O fenômenos já é visível no município de São Paulo, o primeiro a ser contagiado e ainda hoje o epicentro da doença no Brasil. Ela chegou em primeiro lugar nos bairros ricos, trazida por viajantes internacionais, sem contato com as maiorias. Mas deslocou-se rapidamente e já no último domingo, segundo a secretaria municipal de Saúde, todos os vinte distritos com maior número de casos e de mortos estavam nas quebradas da cidade. Nelas, o isolamento social efetivo é, nas condições atuais, quase impossível e o acesso aos serviços de Saúde muito mais problemático que no centro.

Este quadro dramático exige, ao contrário do que estão decidindo neste momento os governadores e prefeitos, não relaxar a quarentena, mas intensificá-la ao ponto de que se converta em lockdown efetivo. Mas ele só será possível com um elenco claro de medidas que assegurem vida digna aos que o respeitarem. A intensidade com que a covid-19 ameaça atingir o Brasil é resultado tanto da negligência continuada do governo quanto da desigualdade atávica da sociedade. É provável que só seja possível enfrentar a pandemia, e evitar uma tragédia, destituindo Bolsonaro e iniciando, a partir da emergência atual, um novo esforço para construir um país mais justo. É o que veremos na parte final deste texto.

(continua)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

três × quatro =