Isolamento social efetivo, junto com redistribuição de riquezas e a orientação da economia pelo Estado, é indispensável. Mas como construir essa aparente utopia quando país corre o risco de perder até mesmo o que resta de sua democracia?
por Antonio Martins, em Outras Palavras
Há dois vírus a combater no momento:
o coronavírus e a ameaça da ultradireita
Danilo Pássaro, da torcida Gaviões da Fiel
III. A sociedade cindida e o projeto bloqueado
A ausência, até o momento, de reação efetiva do Brasil diante da tragédia da covid-19 revela uma sociedade cindida e em fragmentação. Cindida porque uma parcela minúscula, porém muito poderosa, da população tem condições de se blindar da crise e de ganhar com ela. O gráfico abaixo mostra que, enquanto mais de mil brasileiros morrem, todos os dias, e mais de 20 mil se contaminam, os que aplicam na Bovespa continuam sorrindo satisfeitos. Entre 23 de março — quando os bancos centrais de todo o mundo anunciaram que emitiriam todo o dinheiro que fosse necessário para salvar os cassinos financeiros – e ontem (28/5), o ganho acumulado foi de 38,3%! O desemprego explode, as famílias afundam ainda mais em dívidas e milhares de pequenas empresas quebram e fecham, mas o lucro sagrado da oligarquia financeira, do 0,1%, permanece intocado. É esta “nova classe”, como já vimos, que continua garantindo a permanência de Bolsonaro no poder, a despeito de seus múltiplos crimes de responsabilidade e comuns e de suas incessantes ameaças à democracia.
E a sociedade está em fragmentação porque, nas condições peculiares do capitalismo financeirizado, esta elite ínfima já não depende da existência de uma nação, para acumular riquezas. Nas fases anteriores, o antigo empresariado e seus representantes políticos acalentaram projetos de país, ainda que fragmentados – como é típico da periferia. Foi assim que construímos, por exemplo, uma rede de ferrovias, um sistema público de ensino, o povoamento do interior, a urbanização e industrialização, ou o SUS. Agora, o 0,1% não precisa dar-se a este esforço e a seus riscos. Numa única penada, o ministério da Fazenda autoriza os bancos a criarem, do nada, R$ 1,2 trilhão – e a oligarquia financeira blinda-se para lucrar durante o tempo que durar a epidemia. Como a “nova classe” comanda a política institucional e domina a mídia, ficam eternamente adiadas tanto a possibilidade de levar adiante um projeto nacional quanto o próprio debate em torno do tema.
Reverterbrar o Brasil exigirá, em algum momento, confrontar estes interesses. Por isso parece tão exasperante a ausência, na esquerda institucional, de um movimento neste rumo. E também por isso, vai se tornando claro que, nesta sociedade hoje bloqueada, qualquer tarefa coletiva – mesmo o combate elementar a uma pandemia – só se fará sacudindo suas estruturas. É este o sentido de um lockdown com justiça social. Já vimos, na primeira parte deste texto, como as piores previsões sobre a pandemia estão se concretizando: pode haver centenas de milhares de mortos Vimos também como a população apoia, em ampla maioria, as medidas mais restritivas de quarentena, necessárias para evitar a tragédia. Precisamos examinar, agora, as medidas necessárias para tornar este passo possível. Elas implicam forte redistribuição de riquezas e reorganização produtiva.
IV. A Redistribuição de riquezas
Durante o naufrágio do Titanic, não se discriminava os que entravam nos botes salva-vidas. Mas os passageiros da segunda e terceira classe estavam nos porões, e em muitos casos sua passagem para o convés foi vedada com grades. Entre os últimos, 88% afundaram com o navio. Na luta contra a pandemia, a maioria dos brasileiros – em especial os que vivem nas periferias – enfrenta algo semelhante. No melhor dos casos, eles são aconselhados a se proteger em casa, como os demais. Mas não podem fazê-lo, sob pena de perecer. São estes que, como mostra o DataFolha, estão no grupo que mais compreende e apoia o lockdown. Mas são eles também que, movidos pela necessidade, pedalam pelas ruas com um baú nas costas, aceitam um bico de pintura, cedem à pressão do empregador para abrir a loja que funciona com porta semicerrada ou armam uma banca de camelô, numa rua de comércio popular.
Num país desigual como o Brasil, decretar a quarentena, sem gerar condições efetivas para que ela seja cumprida, é uma farsa semelhante ao gesto da Princesa Isabel. Sem terra ou teto, sem bens e sem reparação, os negros tornaram-se “livres” – para morrer à míngua ou se deixar humilhar. Há alternativas reais, mas elas exigem romper as grades com que o 0,1% mantém inacessível o convés. Eis três linhas principais:
a) Renda Básica da Cidadania:
Concedido de mal grado pelo governo — que pretendia oferecer uma esmola de um terço deste valor – o auxílio de R$ 600 mensais foi uma conquista. Sem ele, milhões estariam agora passando fome. Mas, nas metrópoles onde vivem 80% dos brasileiros, o valor é totalmente incapaz de indenizar (ou seja, manter sem danos) aqueles que devem seguir a quarentena. Como esta maioria não tem reservas e, quase nunca, acesso ao trabalho a distância, é forçada a romper o distanciamento presencial.
O lockdown com justiça social oferece uma oportunidade inédita de difundir a necessidade de uma Renda Básica da Cidadania, um dos eixos de um projeto pós-capitalista contemporâneo. Para ser efetiva, na luta contra a pandemia, esta renda deve equivaler a um salário-mínimo (no futuro, precisa aumentar); ser paga a todos, pelo tempo que durarem a doença e o afastamento; e transferida sem filas, humilhações, atrasos e burocracias. Depositada, por exemplo, numa conta bancária aberta, pelo Banco Central, em favor de cada CPF.
Com R$ 1045 mensais por pessoa, é mais possível manter-se no Brasil. Os recursos não sairão do Orçamento – não prejudicarão, portanto, nenhum programa social. O dinheiro será criado do nada pelo Estado brasieiro. Se a crise durar mais quatro meses, e se houver 150 milhões de CPFs, serão R$ 624 bilhões: metade, apenas do que o Estado autorizou os bancos privados a criarem, em 23/3, quando anunciou-se a salvação dos cassinos financeiros.
Estas operações desequilibrarão as regras orçamentárias de “ajuste fiscal”, vigentes antes da pandemia? Seguramente, sim! Mas elas já estão totalmente destroçadas – e continuarão a sê-lo – porque a economia global entrou em crise profunda e duradoura, e dela só sairá com muito mais amparo e dinheiro estatal. A exigência de uma Renda Básica da Cidadania, além das medidas complementares necessárias, trarão, aliás, um benefício suplementar. Exigirão que as regras do pós-crise sejam negociadas amplamente entre a sociedade. É uma alternativa muito mais justa e democrática do que serem impostas pela oligarquia financeira – na forma de políticas de destruição dos serviços públicos e concentração de riquezas – como ocorreu após a crise de 2008.
b) Renegociação das dívidas, obrigatória aos bancos:
A segunda mola que obriga os brasileiros a desrespeitar a quarentena formal é o altíssimo endividamento. A dívida das pessoas físicas junto aos bancos ultrapassa R$ 3 trilhões – e a das pessoas jurídicas, quase sempre pequenas e médias, R$ 1,3 trilhão. As taxas de juros não têm paralelo em nenhum país do mundo. Oscilam entre 60% ao ano (desconto de duplicatas) a 250% (cheque especial) ou 350% (cartão de crédito) – quando ficam na casa de um dígito em quase todos os outros países do planeta. Da renda dos brasileiros, uma parte substancial é capturada hoje pelas famílias bilionárias que controlam os bancos.
O problema é tão grave que o governo incluiu, nas primeiras medidas anticrise, recursos para que os bancos oferecessem renegociação das dívidas em condições menos extorsivas. E os próprios bancos criaram campanhas publicitárias em que afirmam estar sensíveis às dificuldades de seus clientes. Porém, nada disso ocorreu na vida real. Como os subsídios oferecidos pelo governo não impõem condições aos bancos, estes simplesmente não repassam as linhas de crédito menos caro a seus clientes. Ao contrário: como mostram dezenas de matérias nos jornais, as linhas de financiamento secaram ou, quando perduram, incluem taxas de juros ainda mais alta e garantias (comprometimento dos bens dos devedores) mais leoninas. Se mantidas estas condições, surgirá, terminada a pandemia, uma população muito mais afundada em dívidas e submissa à oligarquia financeira.
Há uma medida prática, para enfrentar tal desastre. O Estado brasileiro e o Banco Central devem determinar que os bancos, ao invés de abrirem linhas de crédito incertas, realizem compulsoriamente a reestruturação das dívidas já existentes. Ela deve beneficiar tanto os devedores ativos quanto os inadimplentes. Os valores devidos serão consolidados. Ao total, será aplicada uma taxa de juros igual à Selic (3% ao ano), compatível com a praticada pelos bancos em todo o mundo. O prazo será definido de forma a que a prestação mensal não supere 5% da renda das pessoas físicas, ou do faturamento das pequenas e médias empresas endividadas.
A medida representará, é certo, forte queda no lucro dos bancos brasileiros. Eles têm gordura para queimar: os cinco anos de recessão ou estagnação econômica contínua, entre 2015 e 2019, ampliaram incessantemente seus lucros, a ponto de os ganhos apenas dos quatro maiores chegarem, no ano passado, a R$ 59,7 bilhões. Está na hora de fazerem, em nome do combate à pandemia, uma contrapartida à sociedade que vá além de sorrisos no horário nobre das TVs.
c) Proibição das demissões:
As medidas anteriores precisam ser complementadas pela proteção aos trabalhadores da economia formal. A partir do golpe de 2016, o Brasil viveu uma vasta contrarreforma trabalhista e uma sucessão de medidas de idêntico sentido. Em conjunto, elas estimularam como nunca a informalidade do trabalho e a corrosão dos direitos laborais mesmo daqueles assalariados que permanecerem com registro. O pretexto adotado, como era de esperar, nunca se realizou: ao invés de criação de novos postos de trabalho, o nível de desemprego aberto estava em 12% antes da pandemia. Somado ao subemprego, indicava que 50% da população ativa do país ou estava desocupada, ou trabalhava sem as menores condições de proteção social.
Agora, há risco de este drama explodir. Consultores do mercado financeiro já falam numa taxa de 25% ao fim do ano. Milhões de trabalhadores já estão em regime de desligamento temporário ou de redução de jornada e salários – o que representa mais insegurança e pressão contra a quarentena. Há também saída, e nem tão radical. Alemanha e Holanda, por exemplo, restringiram demissões e ofereceram apoio estatal às empresas que demonstrassem dificuldade financeira e se comprometessem a não dispensar trabalhadores. Parece coisa apenas de países ricos? Olhe para a vizinha Argentina, onde o governo Fernández adotou – por ato equivalente a uma Medida Provisória – a proibição de todas as demissões.
V. A Reorganização produtiva
Um dos aspectos que mais choca, na prostração brasileira diante da covid-19, é a ausência completa de iniciativas para reorganizar a produção e voltá-la – ainda que muito parcialmente – às necessidades sociais. O caso mais emblemático é o dos respiradores. São indispensáveis para salvar milhares de vidas. Não requerem sofisticada: alguns protótipos que funcionam satisfatoriamente foram produzidos por grupos de estudantes, em fundos de quintal. No entanto, mais de cinco meses se passaram desde que ficou clara a necessidade dos aparelhos e não foi adotada a mínima providência para suprir as necessidades da rede de Saúde.
A negligência se repete no caso de dois outros itens tão ou mais necessários (porque requeridos por toda a população, não só pelos doentes graves) e ainda mais fáceis de produzir. O Brasil está entre os países que menos testa sua população para aferir e rastrear a presença da covid-19. O gráfico abaixo dispensa comentários. Fazemos dezenas de vezes menos testes, por milhão de habitante, que a Rússia – uma das líderes neste esforço. Estamos muito abaixo dos Estados Unidos, que durante muitas semanas também negaram a importância de testar. Mas ficamos além disso vários corpos atrás da Índia, cujo PIB per capita é quatro vezes inferior ao nosso. E por fim, não produzimos sequer máscaras protetivas adequadas, que faltam, em muitos estados, aos próprios profissionais de Saúde.
Tudo isso contrasta com o pioneirismo global que o Brasil exerceu, graças ao SUS e há cerca de vinte anos, tratamento gratuito (e proteção da vida) a todos os portadores de HIV. Ou com nossa capacidade de substituir importações rapidamente, em diversos momentos de guerra ou crise cambial no século passado.
Já no início de março, pesquisadoras do Instituto Adolfo Lutz, uma instituição ligada à USP, haviam mapeado o código genético do coronavírus encontrado nos primeiros pacientes do país cientistas do Brasil. À mesma época, a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, anunciou que havia sido capaz de produzir os primeiros kits para testagem da presença do patógeno. Porém, depois de quase quatro meses, a produção é ínfima; o processamento dos testes lentíssimo. O país demora dias ou semanas, até mesmo para saber se cada óbito suspeito pode ou não ser atribuído à covid-19 – quanto mais, para rastrear e combater eficazmente a doença. Já as máscaras, em especial as que garantem ao menos 95% de proteção contra as gotículas que transportam o vírus, são indispensáveis para proteger os trabalhadores de Saúde e para reduzir ao máximo a contaminação nas áreas em que o isolamento social absoluto é impossível, como as favelas.
Só há uma razão plausível para o retardo: o governo é dominado por uma ideologia de submissão ao mercado extrema, que o impede de dirigir até mesmo a produção, simples, dos itens mais indispensáveis à preservação da vida. Há múltiplos instrumentos para isso: da Lei Delegada número 4, que permite requisitar bens e serviços para satisfazer as necessidades sociais, aos mecanismos de crédito, subsídio, incentivo e isenção fiscal de que dispõem o governo, o Banco Central, a Receita Federal, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa.
Eles devem ser utilizados para cumprir três necessidades centrais. No terreno da indústria, produzir os bens necessários ao combate à pandemia – testes, máscaras e respiradores encabeçam a lista. Nos serviços, requisitar quartos de hotéis, hoje com baixíssima ocupação. Eles servirão para abrigar as pessoas contagiadas que vivam em casas com alta densidade de moradores; e para proteger as mulheres e famílias. No campo da pesquisa, eles reintegrarão o Brasil na busca de vacinas e medicamentos contra a covid-19.
VI. A pandemia e o pandemônio
No momento em que este texto é fechado, noite de 28/5, o Brasil está diante de uma ameaça dupla, expressa na epígrafe deste texto. A covid-19 voltou a recrudescer, nas últimas 48 horas. Ampliar o isolamento social, articulando-o com medidas inéditas de redistribuição de riquezas e de orientação da economia pelo Estado parece indispensável. Porém, parece, ao mesmo tempo, uma utopia inatingível? Como sonhar com isso, quanto o país é ameaçado de perder até mesmo o pouco que resta de sua democracia?
O argumento central deste texto é de que estas tarefas não são contraditórias – e talvez uma não possa ser executada sem a outra. Sim, é preciso antes de mais nada derrotar as ameaças de Bolsonaro contra a democracia, ou não haverá sequer condições de criticar sua negligência criminosa diante da pandemia.
Mas, para reverter o apoio que Bolsonaro ainda tem entre uma parcela minoritária da população – e, portanto, para viabilizar sua queda e prisão, indispensáveis à democracia – é necessário ir além do campo em que ele quer manter a disputa. O ex-capitão, afastado do Exército por planejar atentados terroristas e deplorado por personagens como Ernesto Geisel, precisa ser visto por uma maioria esmagadora não apenas como antidemocrático – mas como incapaz, indolente e, acima de tudo, ligado aos donos do poder, ao 0,1%.
Para isso, será necessário demonstrar que a democracia, os direitos, a igualdade, o bem-estar, a Saúde, o Público, o Comum – todos estes objetivos exigem desmascarar não apenas o ex-capitão patife e fascista. Mas a “nova classe” que o apoia, porque continua a se beneficiar de seu poder e é indiferente a suas ameaças. Esta dupla tarefa, sintetizada com maestria por Danilo Pássaro, é o que nos desafia agora.
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Imagem: Pedro Conforte