Por Fausto Salvadori, da Ponte
As pessoas que formam a Ponte Jornalismo falam de lugares diferentes. Por aqui tem homem, mulher, branco, negro, cis, trans, gente que é da periferia e gente que não. Cada um tem sua própria história e seus motivos que o levaram a estar aqui hoje, no Brasil de 2020, lutando pelos direitos humanos por meio do jornalismo. No meu caso, homem branco de classe média baixa, sem parentes importantes e vindo do interior — um cara que, trabalhando omo jornalista, teve acesso a uma realidade das periferias da metrópole que não teria conhecido de outra maneira — eu diria que fui movido pela perplexidade. Pelo choque.
Choque de não entender como era possível que houvesse uma tropa de homens pagos e armados pelo Estado capaz de cometer tantas atrocidades com a população negra e pobre. Esse choque me lançou numa busca, que anos depois acabaria me levando à Ponte, de tentar entender o porquê disso tudo, de tanta dor e violência que na minha cabeça não parecia fazer qualquer sentido. Ouvia especialista que davam explicações que falavam em “desvios”, “falta de treinamento” ou em “resquícios da ditadura” que não me convenciam. A chave para meu entendimento veio quando, além de olhar para como a polícia tratava os negros pobres, passei a prestar atenção também em como tratava os brancos ricos ou de classe média, como eu mesmo. O contraste me fez entender. Não é desvio. Não são falhas. É projeto. A polícia mata pretos pobres porque é feita e pensada para agir desse jeito.
Ivan Storel, o empresário que apareceu neste final de semana, em vídeo divulgado pela Ponte, humilhando policiais militares que foram até sua casa após uma denúncia de violência doméstica, disse que fez o que fez porque estava bêbado. Talvez tenha soltado uma daquelas verdades que vêm do vinho e dito o que realmente pensava, ele e outros como ele, ao dizer que o PM poderia ser “macho na periferia”, mas ali seria um “bosta”, porque “aqui é Alphaville, mano”.
Aqui é Alphaville: isso diz muita coisa. Como explica o psicanalista Christian Dunker, Alphaville foi o primeiro condomínio fechado do Brasil, criado em 1973, por uma elite branca que queria se isolar num mundo próprio, distante de tudo que lembrasse pobreza, protegida por muros altos e homens armados, pagos por eles mesmo ou pelo Estado (qual é a diferença, afinal?), e que tirava seu nome de um filme sobre um futuro distópico totalitário. Quatro décadas depois, o empresário que humilhou um policial aos gritos de “aqui é Alphaville, mano” sabia bem o que fazia ao tratar o policial como um subordinado a quem devia ensinar seu lugar no mundo.
O mais chocante é que o policial, mesmo chamado de “bosta”, evita tomar qualquer atitude mais dura contra o empresário e só age após chamar seus superiores para o local, como se para garantir que ele podia, de fato, encostar as mãos num homem branco rico, contrariando a ordem natural das coisas.
O contraste fica ainda mais evidente quando a gente lembra que, menos de um mês antes de o empresário em Alphaville escapar ileso de chamar um PM de “bosta”, uma família inteira — filho, mãe e irmã — foi espancada por policiais militares, um deles armados com um pedaço de pau, que invadiram a casa onde moravam sem um mandado judicial, apenas por uma reclamação de som alto. Claro que isso não foi em uma mansão de Alphaville. Foi numa casa pobre de Mirabela, no interior de Minas Gerais. A Polícia Militar não só não viu nada de errado na violência, como procurou justificá-la, dizendo que “a intervenção policial, inclusive com uso de força” foi necessária porque os PMs foram “recebidos com palavras de baixo calão” (possivelmente não muito diferentes daquelas usadas por Ivan Storel).
Daí que perguntar a sério por que as polícias, no Brasil ou nos EUA, matam tantos negros pobres (e estão matando como nunca) é algo que acaba soando tão ingênuo quanto perguntar por que tantas pessoas morriam nos campos de concentração nazistas. Será que não matam tanto justamente porque o objetivo deles é exatamente esse? Será que não é justamente porque existe uma fatia relevante de brancos, que manda nesses países, que prefere que a polícia continue a fazer o que sempre fez?
É algo que só vai mudar quando a outra parte dos brasileiros, e dos americanos, justamente a que é vítima dessa política, conseguir se fazer ouvir pelo Estado a ponto de serem vistos como tão humanos quanto os demais. É em busca disso que multidões estão agora nos EUA marchando aos gritos de “não consigo respirar”. É por isso que um protesto #VidasNegrasImportam marchou no Rio de Janeiro neste domingo. São vozes que precisam ser ouvidas e seguidas. Somente quando isso acontecer é que passaremos a viver como gente.
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Fausto Salvadori é editor e repórter da Ponte Jornalismo
Foto: Governo de São Paulo