Sobre as boiadas que passam

Há cinco séculos, elas atropelam florestas e indígenas. Com veneno, templos evangélicos ou fuzis, tentam apagar saberes ancestrais. Adoeceram o mundo. Restaurar o equilíbrio exigirá reconexão com o cosmo e a coletividade

por Angela Pappiani, em Outras Palavras

A boiada passa há cinco séculos por cima dos territórios indígenas, das florestas, do cerrado, dos quilombos, da caatinga, dos rios e montanhas, dos que aprenderam a viver com a natureza. Assim como os tanques e helicópteros passam por cima das favelas, dos pobres, dos professores, dos que protestam, dos que perderam qualquer possibilidade de uma vida digna neste país de assaltantes.

A boiada sempre aproveitou os momentos de distração, de entusiasmo ou de desespero do povo para passar arrasando tudo e deixando em seu lugar buracos sem vida com água contaminada empossada, germinando doenças, como em Serra Pelada; para deixar hidrelétricas monstruosas gangrenando os rios e matando a diversidade de vidas, como em Balbina e Belo Monte; para deixar o mercúrio que penetra nos peixes e nos homens causando danos no sistema nervoso e deformidade nas crianças que nascem já contaminadas, como no território Yanomami, repetindo a tragédia de Minamata, no Japão; para deixar o vazio onde antes havia montanhas, e toneladas de rejeitos de minério em represas precárias, sem a menor responsabilidade por parte dos gestores prestes a engolir os lugares e as pessoas, como em Mariana e Brumadinho; para deixar em centenas de quilômetros, a perder de vista no horizonte, uma terra estéril onde só nasce a semente modificada no laboratório, alimentada por toneladas de fertilizantes e defensivos que envenenam o solo, o ar, os rios, os lençóis freáticos, isso espalhado por todo o país, em qualquer pedaço de terra onde um trator pode tratorar.

Os que conduzem a boiada sempre odiaram índio e nunca esconderam esse ódio. Anulam qualquer sentido de humanidade do inimigo declarado, o que lhes permite a violência sem culpa. Para essas pessoas, índio não é gente. É estorvo, empecilho a ser removido com o método mais eficiente, rápido e barato possível. Pode ser despejando veneno de avião, entregando roupa contaminada, implantando templo evangélico, impondo necessidades de consumo às aldeias, material didático, eliminando lideranças, aliciando jovens.

Esse tipo de gente que conduz a boiada, mais ou menos polida, mais ou menos diplomática, mais ou menos à direita, escondida atrás das mais variadas máscaras, faz questão de ignorar a parte da história de formação do país em que centenas de nações indígenas, com nome, território, população, língua, história, filosofia, medicina, política, relações de trocas e intercâmbios, foram totalmente dizimadas para que a terra sob seus pés fosse conquistada, espoliada, violentada. Há dados sobre a existência de mais de 1400 nações (mapa étno-histórico de Curt Nimendaju). Sim, nações, povos vivendo num território original, com ordem política e social, cultura material e imaterial, estratégias de sobrevivência e intercâmbio, que se movimentavam por este território, que viria a ser o brasileiro, buscando rotas de fuga e proteção contra o avanço da ocupação branca. Resistiram cerca de 300 etnias que hoje são reconhecidas ou buscam reconhecimento, mesmo sem estarem em seus territórios ancestrais, com direitos básicos assegurados. O resultado da conta, simples e dramático, é de que os dominadores conseguiram o feito de exterminar mais de 1000 desses povos. O desaparecimento de milhões de pessoas, sem deixar sua marca ou história, significa o desaparecimento de um patrimônio incalculável de conhecimentos e arte, de sentimentos e humanidade que se perdeu definitivamente, deixando em seu lugar, pastos, plantações, lugares degradados, cidades caóticas.

Em qualquer canto deste país, cavoucando a terra, aparece algum sinal da presença desses povos, restos de cerâmica, pontas de flechas, machados de pedra polida, terra preta, marcas da ocupação física das aldeias. A memória dessa gente talvez habite um lugar na memória coletiva e possa nos alcançar de vez em quando.

Desafiando qualquer razão, em pleno século 21, ainda há a presença confirmada de mais de 100 grupos indígenas que buscam viver longe do que para eles é sinal de morte, em isolamento nas matas, tirando toda sua sobrevivência do conhecimento que possuem sobre o território. Mas o cerco está apertando cada vez mais e áreas de ocupação desses povos em isolamento voluntário ou de grupos de contato muito recente são focos de invasões, desmatamento ilegal, garimpo, num plano arquitetado e patrocinado por aliados do Estado que se desdobra em buscar meios de legalizar o crime.

E lá vai a boiada arrancando as cercas da lei e se instalando em segurança sobre terras indígenas demarcadas ou em processo de demarcação, sobre reservas extrativistas e de proteção ambiental, sobre territórios quilombolas. O plano patrocinado por gente poderosa – porque requer muito investimento, logística, comunicação, manobras cartoriais – mesmo denunciado, investigado, com provas legítimas, consegue se impor, desmoralizando totalmente os direitos assegurados com tanta dificuldade e a custa de tantas vidas. O documento maior de uma nação, gestado por tantas cabeças e mãos em 1988, é jogado num porão escuro sob o domínio da tortura. Pobre Constituição violentada.

O Brasil ocupa posição de destaque nos piores índices mundiais relacionados a corrupção, violação de direitos humanos, desigualdade social, desempenho escolar, morte de lideranças no campo, assassinatos e vulnerabilidade da população jovem negra, desmatamento, queimadas criminosas, feminicídio, homofobia, negacionismo. E agora também um lugar de destaque em número de mortes e contaminados pelo Covid 19, a mais nova ameaça mortal. Todos esses recordes aterradores resultam da mentalidade colonialista que transformou este lugar, que deveria ser um país, num acampamento sem lei, ética, valores, comandado por milícias a serviço de patrões transnacionais, que se armam de revólveres, fuzis, ódio e informação manipulada, numa guerra declarada a tudo que signifique vida, equilíbrio, direitos, bem-estar, alegria, dignidade. O país se alinha, assim, aos que guinaram totalmente à direita, enaltecendo símbolos do que mais horrível a humanidade experimentou nas últimas décadas. Uma minoria empoderada por tochas, armas, suásticas, elogios à tortura e supremacia branca.

E os povos indígenas resistem em meio ao caos. Para os povos originários, o conceito de saúde não é oposição a doença. É a quebra do equilíbrio entre as forças vitais, vai além do corpo físico do indivíduo, abarca tudo que o rodeia, o visível e o invisível. E eles nos mostram que vivemos numa sociedade onde não há saúde. E não adianta o remédio para baixar a febre, estancar a diarreia ou a tosse, não adianta o comprimido milagroso capaz de acabar com o vírus, a bactéria, o fungo… O que corrói os corpos e os espíritos é a falta de conexão com a vida em todas as suas formas de manifestação, de conexão com os ancestrais e com o cosmos. Estamos aprisionados em corpos doentes, limitados, sem horizonte e sem sonhos. É urgente romper com essas amarras para podermos enxergar os perigos que estamos vivendo, identificar os inimigos verdadeiros e nos unir para buscarmos saídas, portas, janelas, pontes que nos conectem com o essencial. Estamos acuados, como bichos enjaulados, vendo tudo ruir ao nosso redor: governos perversos, empresas que escravizam funcionários, um modelo de pós-capitalismo que joga a responsabilidade sobre a venda do tempo e a incapacidade de gerar os meios de sobrevivência em cima do cidadão empreendedor iludido. As crises todas que vivemos, ao mesmo tempo, têm escancarado o mal, a falta de humanidade, de civilidade de uma parcela pequena, mas poderosa, que nos impõe decisões e rumos. Não há mais máscaras para camuflar a verdade. Ela está posta. Não temos mais desculpas para continuar nos iludindo.

O céu está desabando sobre nossas cabeças e, como diz Ailton Krenak, temos que encontrar os meios para adiar o fim do mundo. Temos que fazer a cerimônia para restabelecer o equilíbrio e a saúde, nos alimentar na arte e no sentimento do coletivo, nos apropriar do poder da Palavra Criadora. Mesmo que não seja possível tocar o outro, é preciso entrelaçar as mãos e reinventar uma festa para que o sol nasça e ilumine o dia.

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