Nos EUA, “forças da lei” flagelam três vezes mais os negros. Porém, há algo mais profundo: um país com instituições carcomidas pelo racismo. Página da escravidão nunca foi virada — e ruas pedem o reconhecimento dessa dívida
por Alexandre Pereira Rocha, em Outras Palavras
A cidade americana de Minneapolis arde em chamas e protestos depois da morte de George Floyd, no âmbito de intervenção policial. Um vídeo gravado por pessoas que presenciaram a ação policial demonstra a execução dele. Os policiais envolvidos na operação foram demitidos e as autoridades pediram suas tradicionais desculpas. Não adiantou. A frieza com a qual o policial Derek Chauvin estrangulou Floyd fala mais alto do que qualquer escusa. Manifestantes tomaram as ruas, com força e violência, mas, sobretudo, com indignação frente às recorrentes injustiças direcionadas à população negra. O mesmo tem se espalhado rapidamente por outras cidades dos Estados Unidos.
O vídeo em questão traz cenas cruéis. O policial Chauvin, mesmo com o suspeito Floyd algemado e desarmado, coloca o seu joelho sobre o pescoço dele e comprime fortemente contra o chão. Em meio engasgos e sufocos Floyd clama pela vida. Balbucia: “please I can’t breathe” (por favor eu não consigo respirar). As pessoas que registraram a cena pediam para que o policial parasse. Mas, de forma impassível, ele mantinha o peso de seu corpo sobre o suspeito, que logo se calou. Floyd foi ali sentenciado à morte pelas mãos dos policiais que participaram da ação. Uma ambulância ainda prestou socorro, porém ele não resistiu.
Os policiais envolvidos tentaram argumentar que Floyd os agrediu e tiveram de usar da força para imobilizá-lo. Contudo, outras filmagens demonstram que, apesar da resistência do suspeito, houve excesso extremo por parte dos policiais. Particularmente, do policial Chauvin. Aliás, aquela não era a primeira vez que ele se envolvia em atuações violentas, inclusive já tinha respondido por procedimentos análogos1. É fato. Com a presteza que ele dominou o suspeito jogado ao chão, provavelmente já tinha executado aquele tipo de abordagem brutal outras vezes. A intenção do policial não era a morte do suspeito, mas ao ignorar os pedidos de clemência dele, revestiu-se de verdugo e assumiu o risco de matá-lo.
A cena da execução de George Floyd é desumana. Ainda mais pelas diferenças dos personagens e carga histórica de desigualdade que sintetiza. Um homem branco – o policial – na condição de soberano; o outro, um homem negro – o suspeito – na condição de submissão. Esse contraste rememora inúmeras circunstâncias nas quais brancos escravocratas atormentavam sordidamente negros escravizados. Nesse sentido, o fato de imediato me recordou uma cena do filme Django Livre (2012), de Quentin Tarantino. Na parte em questão, Calvin Candie, dono e negociante de escravos, interpretado por Leonardo diCaprio, captura um negro fugitivo. Candie e outros homens brancos, com espingardas e cachorros cercam o negro fujão, que se entrega sem resistência. Daí, Candie ordena a soltura dos cachorros sobre o negro. Os cães devoram o escravo, em meio a gritos de perdão da pobre vítima e gargalhadas dos algozes.
Apesar dos exageros e explosões típicos dos filmes de Tarantino, a mensagem do terror da escravidão não é ficção. O conteúdo dessa história foi vivido e sofrido por muitas pessoas negras em fazendas de escravos nos Estados Unidos e noutras partes do mundo. É fato. O país horizonte da democracia contemporânea está assentando sobre os corpos de inúmeros negros que, com o suor, dor e sangue, ajudaram a construir o sonho americano. Ou seja, para que esse sonho pudesse existir, as vidas de muitos escravos negros foram decompostas num trágico pesadelo. Apesar de muitas conquistas no campo dos direitos das pessoas afro-americanas, essa página de escravidão, segregação e racismo não foi definitivamente virada. Prova disso, é a execução de Floyd.
Agora, Floyd é parte da lista de mortos pela polícia nos Estados Unidos. Aliás, um tipo de morte que impacta mais à população negra. Segundo a organização Mapping Police Violence, negros têm quase três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos2. Wacquant (1999), observava a severidade dessa discriminação, pois considerando a população adulta dos Estados Unidos, em 1995, perto de um americano do sexo masculino sobre vinte estava sob a tutela da justiça criminal, mas para os negros essa relação era de um em cada dez3. Por tudo isso, a morte de Floyd joga mais tinta sobre o racismo nos Estados Unidos. Mas além da cor, também há questões socioeconômicas, porque essas injustiças atingem preferencialmente os negros das classes baixas4.
A morte de Floyd soma-se a outras mortes banais de negros em situações de preconceitos em solo norte-americano. Em 2013, essas situações levaram à fundação da organização global Black Lives Matter, cuja a missão é erradicar a supremacia branca, empoderar a população negra e denunciar violências cometidas contra afro-americanos por instituições de ordem e vigilância. Portanto, as lutas de ativistas negros, como Martin Luther King Jr. e Malcolm X, em defesa de direitos dos negros, ainda são travadas em outros contextos e por outros personagens. É triste. As discriminações raciais ao longo da história norte-americana apenas mudam de nome, e a intolerância e a marginalização dos negros, sobretudo os mais pobres, permanecem com políticas cada vez mais austeras de controle social e policiamento5.
O assassinato de Floyd arrebentou em vários afro-americanos, outras minorias raciais e muitos americanos brancos opostos ao racismo, um contido grito de basta. A cidade de Minneapolis agora é palco de protestos constantes, os quais inspiram outras partes dos Estados Unidos. Os manifestantes estão nas ruas clamando por justiça, por condenações aos policiais envolvidos no caso Floyd. Mas, vai muito além disso. Na verdade, o que se busca é escancarar o racismo presente nas instituições americanas. Racismo subliminar, sutil e negado, mas atual. O que os manifestantes querem é que a sociedade americana fale sobre raça mais honestamente, sem que os negros sejam taxados de não-razoáveis pelos brancos, como narra Paul Beatty, no romance “O Vendido”, que aborda a hipocrisia do debate raça e identidade nos Estados Unidos.
Além do racismo institucional vigente em polícias dos Estados Unidos6, convém avaliar detidamente a conduta do policial Chauvin. Provavelmente, ele não era visto como um mal policial. Talvez ele fosse até admirado, justamente por suas condutas duras e disponíveis ao enfrentamento de delinquentes nas ruas. Ou seja, no meio policial, a atuação de Chauvin não era considerada como violenta, delituosa ou corrupta, mas parte habitual do trabalho da polícia. Isso até a morte de Floyd. Agora, ele foi expulso da corporação e preso por homicídio. E antes? Por que atuações semelhantes não foram reprimidas, dele ou de outros policiais? Isso por que ainda há incrustado na cultura e nas práticas de muitas polícias a glamorização da força violenta como meio de resolver conflitos acima dos direitos humanos7. Pior. Isso tem apoio social, porquanto paira no imaginário de segmentos mais conservadores da sociedade e de governos populistas, esse modelo de polícia violenta como sinônimo de eficiência.
Por tudo isso, a morte de Floyd não é um caso isolado. Aliás, essa morte vai muito além da responsabilidade do policial Chauvin. O fato envolve diversas instituições e pessoas que ignoram ou toleram o racismo como prática política. Ademais, abrange temas de discriminações, injustiças e violências sedimentadas ao longo do tempo, mas desprezados pela narrativa do sonho americano. Com efeito, a democracia dos Estados Unidos, embora de envergadura, possui dívida com George Floyd e muitos outros afro-americanos agredidos ou mortos de forma semelhante. É o reconhecimento dessa dívida que milhares de manifestantes estão reivindicando nas ruas nos Estados Unidos.
Não obstante, o presidente Donald Trump tem criminalizado os protestos. Em seus tradicionais tuítes, inclusive, chamou os manifestantes de bandidos e ameaçou o uso das Forças Armadas para reprender os protestos. É triste. Ele escolheu ver o caso de Floyd de forma reducionista. Entretanto, esse caso constituiu-se num estopim que despertou insatisfações identitárias, raciais e sociais de diversos grupos e indivíduos que também não conseguem mais respirar. Eles estão sufocados por injustiças e violências empreendidas em nome de ordens econômicas políticas que os elimina propositalmente, sem que possam, ao menos, cogitar o sonho americano em igualdade de oportunidades. A polícia, por vezes, é parte dessa engrenagem, mesmo que acredite que está só cumprindo o mister dever de manter a lei e a ordem.
Convém destacar, todavia, que nos Estados Unidos há inúmeras polícias com milhares de policiais, as quais não podem ser reduzidas à ação nefasta do agora ex-policial Chauvin. Aliás, dos Estados Unidos provém consistentes literaturas e experiências sobre reformas e modernizações das instituições policiais, sobretudo, alinhando elas a valores democráticos. Ademais, há estratégias exitosas de policiamentos baseados em análises criminais e de inteligência policial, de proximidade e comunitário8. Todavia, o caso Floyd coloca em xeque toda essa discussão. Com efeito, será mesmo que o racismo institucional está sendo categoricamente analisado e combatido nas agências policiais americanas? Essa é mais uma questão que os protestos estão levantando.
Num mundo conectado, onde cada vez mais fatos e notícias locais são instantaneamente vivenciados em escala global, eu e qualquer outra pessoa não precisamos ser cidadão americano, nem residir nos Estados Unidos, para sermos solidário com o caso Floyd. Particularmente, quando olho para o Brasil, que possui situações equivalentes e, muitas vezes piores, de violências e racismos direcionadas às populações pobres, faveladas e negras. No Brasil, onde os marginalizados sequer possuem capacidade de mobilização, apesar de também serem sufocados pelo peso de opressões, injustiças, discriminações, preconceitos. Portanto, reflito aqui o caso Floyd por que ele não se prende mais à cidade de Minneapolis, às fronteiras dos Estados Unidos.
A indignação que toma cidadãos americanos em protestos, vai além da punição dos policiais envolvidos no caso Floyd. Aliás, a revolta ganhou sentido com a vítima Floyd, mas ultrapassa o fato que levou à morte dele. Na verdade, o sussurro de Floyd “eu não consigo respirar”, hoje é o mesmo de muitos outros excluídos e violentados por aparelhos de Estados e de sociedades segregacionistas pelo mundo afora. Trata-se de um clamor contra o racismo como método de controle e dominação de populações marginalizadas, seja operado pela polícia ou por quaisquer outras instituições. É pelo fim de dessa lógica perversa que os manifestantes estão lutando.
Enfim, o caso Floyd não é só outro caso de polícia. O poder público e a sociedade civil dos Estados Unidos precisam compreender o que realmente significa a morte de Floyd e os protestos consequentes desse fato. Sem isso, o caso pode até ser encerrado com punição dos culpados, porém as causas que o motivaram continuarão sorrateiramente perpetrando outras injustiças, violências e mortes de cidadãos americanos só pela condição de serem negros e pobres. Resolver essa equação é um desafio para os Estados Unidos agora, mas ela também está lançada para outros países, em especial para o Brasil.
1 The police officer who knelt on George Floyd’s neck has been involved in shootings and was the subject of 10 complaints. Insider. Disponível em: https://www.insider.com/derek-chauvin-police-history-shootings-violence-george-floyd-2020-5. Acessado em 30/05/2020
2 Maping Police Violence. Disponível em: https://mappingpoliceviolence.org/
3 WACQUANT, Loic. Crime e castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton. Revista de Sociologia e Política, n. 13, p. 39-50, 1999. Vale observar que a população afro-americana nos EUA corresponde a 13% de toda a população, segundo dados do https://data.census.gov/cedsci/table?tid=ACSDT1Y2016.B02001&q=B02001
4 WACQUANT, Loïc. O estigma racial na construção do Estado punitivo americano. Configurações. Revista de sociologia, n. 5/6, p. 41-54, 2009.
5 SOUZA BARBOSA, Kelly; DOS SANTOS COELHO, Nuno Manuel Morgadinho. A questão étnico-racial do sonho americano: o encarceramento dos pobres e negros no Estado policial. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 1, 2017.
6 Sobre o tema, consulte: DELSOL, Rebekah. Institutional racism, the police and stop and search: a comparative study of stop and search in the UK and USA. 2006. Tese de Doutorado. University of Warwick; HOLMES, Malcolm D.; SMITH, Brad W. Race and police brutality: Roots of an urban dilemma. SUNY Press, 2008; CHANEY, Cassandra; ROBERTSON, Ray V. Racism and police brutality in America. Journal of African American Studies, v. 17, n. 4, p. 480-505, 2013.
7 SKOLNICK, J. Justice Without Trial: Law Enforcement in Democratic Society. Fourth Edition. New Orleans, Luisiana: Quid Pro Books, 2011 (Classics of Law & Society Series); SKOLNICK, J.H. Justice without trial. Law enforcement in democratic society. New York: MacMillan, 1966.
8 Sobre o tema, por exemplo, vide David Bayley, em diversos trabalhos: Nova Polícia: Inovações na Polícia de Seis Cidades Norte-Americanas Vol. 2. Edusp, 2001; Padrões de Policiamento: Uma Análise Internacional Comparativa Vol. 1. Edusp, 2001; SKOLNICK, Jerome H.; BAYLEY, David H. Policiamento Comunitário: Questões e Práticas Através do Mundo Vol. 6. Edusp, 2002; BAYLEY, David H.; DAVIS, Ronald L.; DAVIS, Michael A. Race and policing: An agenda for action. US Department of Justice, Office of Justice Programs, National Institute of Justice, 2015.
*Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UNB), mestre em Ciência Política (UNB), cientista político. Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, servidor público e professor universitário.