Trabalhadores da Andrade Gutierrez com Covid-19 fizeram quarentena na boleia de um caminhão

Empreiteira enviou contaminados para cidades sem estrutura para casos graves; caso chegou à imprensa como incêndio “ameaçador” contra funcionários, ateado por moradores de um povoado no norte baiano; CPT e a comunidade contam que no galpão não tinha ninguém

Por Caio de Freitas Paes, em De Olho no Genocídio

No último dia 28 de maio, uma revolta camponesa na divisa entre Bahia e Piauí ganhou o noticiário da grande imprensa. Os moradores do pequeno povoado de Angico, em Campo Alegre de Lourdes (BA), foram descritos como agressivos, criminosos. Com descrições como esta: “moradores ateiam fogo em alojamento de trabalhadores contaminados”. Ou esta: “usaram armas para ameaçar os trabalhadores”.

O nome da empreiteira Andrade Gutierrez, que manteve no local os trabalhadores com Covid-19, foi relegado ao subtítulo da principal notícia, a da Agência Estado. Mas a história por trás do episódio não é bem aquela — mais conveniente à construtora — replicada por centenas de veículos pelo país.

De Olho nos Ruralistas foi atrás dos fatos que antecederam a revolta no oeste baiano. Ninguém saiu ferido ou foi preso. O galpão era de ferramentas — e não um alojamento. Dias antes, a Andrade Gutierrez mantivera mais de trinta funcionários infectados pelo coronavírus junto a outros, saudáveis, trabalhando normalmente.

Até que um deles faleceu, em poucas horas, com sintomas da Covid-19. A empreiteira relutou em enviá-los a municípios com estrutura de saúde adequada: despachou-os para casas alugadas, hotéis e pousadas.

Em certo momento, dezenas de trabalhadores passaram uma madrugada ao relento, dormindo na boleia de um caminhão. Durante todo o processo, a empreiteira ainda descumpriu acordos com prefeituras no Vale do Rio São Francisco e expôs populações saudáveis ao contágio.

PM BARROU CAMINHÃO QUE TRANSPORTAVA FUNCIONÁRIOS

Todo o imbróglio começou em Pilão Arcado, município a noventa quilômetros do povoado de Angico, local do protesto. Entre os dias 23 e 24 de maio, em poucas horas, um dos funcionários da Andrade Gutierrez apresentou sintomas de Covid-19 e foi levado às pressas para um hospital em Buritirama, a 270 quilômetros dali. O trabalhador, cujo nome não foi divulgado, morreu no mesmo dia.

O episódio alarmou a prefeitura, que enviou equipes para testarem a população em todo o distrito de Nova Holanda. É onde a Andrade Gutierrez mantém um canteiro a serviço da Equatorial, responsável pela linha de transmissão de energia T-BA-PI, entre Barreiras (BA) e Queimada Nova (PI). Servidores conduziram 278 testes rápidos ali: dos 38 casos positivos, 34 eram em funcionários da empreiteira.

“Uma das primeiras ações de combate à Covid-19 foi decretar a suspensão imediata das atividades no canteiro”, contou o prefeito de Pilão Arcado, Orgeto Bastos (PRP). “A empresa, porém, entrou na Justiça, que concedeu liminar para voltar aos trabalhos”. O falecimento repentino caiu feito uma bomba: àquela altura, não havia mortes por coronavírus no município.

Logo começaram os arranjos, desordenados, para remover o restante dos empregados. No dia 25, a empresa tentou levá-los ao outro lado da fronteira, no Piauí. Mas a notícia chegou antes, e a Polícia Militar em São Raimundo Nonato (PI) barrou o caminhão que os transportava. A Andrade Gutierrez já havia até alugado um hotel para hospedá-los.

Em vez de levá-los para um município com melhor infraestrutura, a empreiteira decidiu transportá-los para a sede de Campo Alegre de Lourdes, a 70 quilômetros dali, de volta à Bahia. É um município pobre, com quase 29 mil habitantes e uma estrutura de saúde precária. Não há leitos de UTI, respiradores nem outros equipamentos necessários para o tratamento de casos graves. Há ali um canteiro de obras da empresa, próximo do povoado de Angico, a 36 quilômetros do centro da cidade.

Conforme chegavam à sede, os trabalhadores eram alojados em pousadas, improvisados, enquanto a empresa negociava uma solução com o prefeito Enilson Rodrigues (PCdoB). Simultaneamente, equipes da Vigilância Sanitária e da Polícia Militar testavam os recém-chegados. Dois casos foram confirmados entre aqueles que, em tese, estavam saudáveis. O risco de contágio disparou.

A comitiva com coronavírus alarmou a todos, e o burburinho tomou conta. “Após intensa negociação, ficou acordada a transferência de todos os funcionários que aqui estavam para a cidade de Barreiras”, informou a prefeitura. “Ao amanhecer do dia de hoje”, completou, “tivemos a informação de que a empresa havia transferido os funcionários da sede do município para o canteiro do povoado de Angico, causando revolta na população”.

‘GALPÃO INCENDIADO FOI O DAS FERRAMENTAS’

Angico é uma comunidade tradicional de fecho de pasto, formada basicamente por pequenos agricultores. Fica à beira do Vale do Rio São Francisco, onde camponeses plantam e colhem abóbora, feijão, melancia e milho para consumo próprio. Ali só existe uma farmácia, sem pronto-socorro ou Unidade de Pronto Atendimento.

Os funcionários da Andrade Gutierrez chegaram, na calada da noite, ao povoado de Angico. Horas depois, já na manhã de 28 de maio, a situação saiu do controle. No noticiário nacional, o protesto foi retratado como uma revolta criminosa. Camponeses foram retratados como agressivos, portadores de armas e acusados de, como definiu o UOL, com texto da Agência Estado, atear “fogo em alojamento de contaminados”.

Relatos da comunidade e de membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) trincam essa narrativa. “O incêndio foi um protesto contra o desrespeito à saúde de todos”, disse à CPT da Bahia a advogada Anaquele Lima, uma das moradoras. “Em nenhum momento teve como finalidade atingir quaisquer pessoas que se encontravam no lugar. A prova disso é que o galpão incendiado foi o das ferramentas”.

Outras pessoas disseram à reportagem que a comunidade foi surpreendida com a chegada de trabalhadores infectados durante a madrugada. Havia outros funcionários, sem a doença, alojados naquele canteiro de obras. Os moradores temiam a disseminação da Covid-19 assim que os grupos interagissem.

“Estranhamos quando veio o caminhão trazendo o pessoal infectado, lá pela 1 hora da manhã, ainda mais porque tinham viaturas da Polícia Militar acompanhando”, diz uma moradora.

‘A EMPRESA NÃO PODIA TRANSPORTÁ-LOS AGLOMERADOS’

A prefeitura nega que tenha havido escolta armada. Disse apenas que policiais foram ao local na manhã do dia 28. Os funcionários passaram aquela noite ao relento, em condições precárias. “Galpão e boleia de caminhão não são lugares para se fazer uma quarentena”, disse a representante da CPT no Centro-Norte da Bahia, Marina Rocha. “A empresa não podia transportá-los juntos, aglomerados, especialmente depois de confirmar que tinham pessoas infectadas no grupo”.

Sobre as “armas para ameaçar os trabalhadores”, como diz, no primeiro parágrafo, o texto da Agência Estado, os moradores garantem que não havia armas de fogo durante o protesto. Explicaram que, como se trata de uma comunidade agrária, muitos trabalham diariamente com facões e foices.

O povo de Campo Alegre de Lourdes tem um histórico de resistência a grandes empresas, em conflito recorrente com grandes mineradoras. À reportagem, disseram ainda que os funcionários não foram agredidos e que não houve qualquer resistência ao protesto.

A Andrade Gutierrez tentou, por dias a fio, levar os infectados para hotéis, pousadas, residências alugadas e até mesmo mantê-los em seus galpões de trabalho. Nos registros fotográficos, vê-se apenas um caminhão improvisado para conduzi-los — nenhum ônibus ou van foi usado para o transporte.

O modo como foram tratados gerou duras críticas. “Até agora ninguém discute como que a empresa lidou com os funcionários desde o primeiro caso, lá em Pilão Arcado”, diz a representante da CPT. “Eles foram levados pela Andrade Gutierrez para trabalhar, são pessoas, não podem ser jogadas pra lá e pra cá, sem cuidado”.

EMPREITEIRA NÃO INFORMA QUANTOS FORAM INFECTADOS

De Olho nos Ruralistas falou com o secretário de Saúde de Barreiras, Anderson Vian, para confirmar quantos infectados estão sob os cuidados do município. Ele não respondeu se chegaram mais funcionários da Andrade Gutierrez desde o dia 28.

A reportagem pediu à Andrade Gutierrez sua versão sobre todo o episódio. Ela disse que o fogo em Angico “foi contido, sem prejuízo ao ambiente de isolamento dos funcionários” e que “nenhum dos profissionais identificados com a doença foi isolado junto a funcionários que apresentaram negativo”.

Disse também que “todos os funcionários que não tiveram diagnóstico da doença foram desmobilizados e voltaram a suas cidades de origem, acompanhados pelo consórcio”.

Não informou quantos eram, nem o destino dos outros, infectados.

Depois do imbróglio, o povoado de Angico está receoso. Com as obras paralisadas, rumores apontam para um retorno das atividades em duas semanas. Moradores ouvidos pela reportagem dizem que todos os trabalhadores – mesmo os infectados – foram mandados para suas casas. O destino dos doentes é incerto.

Ainda em 28 de maio, a prefeitura de Barreiras divulgou uma nota sobre todo o imbróglio. Disse que faria “as fiscalizações necessárias para esclarecer as razões que levaram a empresa a promover o isolamento domiciliar dos trabalhadores em Barreiras, sem realizar comunicações prévias à Autoridade Sanitária do município”.

A prefeitura de Barreiras informou que dezesseis pessoas contaminadas chegaram ao município e foram isoladas em uma casa, custeada pela Andrade Gutierrez. A reportagem perguntou à prefeitura de Campo Alegre de Lourdes se todos os 34 funcionários diagnosticados em Pilão Arcado foram recebidos ali. A assessoria disse que havia 25 contaminados no grupo, que teria chegado no mesmo dia 28 de maio. Os números não batem.

Foto principal (Reprodução): trabalhadores da Andrade Gutierrez dormem ao relento

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