Dados desaparecem e Brasil vive apagão estatístico

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

APAGÃO ESTATÍSTICO

Primeiro foram os atrasos: como dissemos na semana passada, a partir da última quarta-feira os números atualizados da covid-19 no Brasil começaram a ser divulgados às 22h, e não mais às 19h como acontecia desde o início de maio. Os balanços feitos em entrevistas coletivas às 17h, que ocorriam quando Luiz Henrique Mandetta comandava o Ministério da Saúde, ficaram para trás há muito tempo.

A pasta argumentou que a divulgação tardia evitaria subnotificação e inconsistências. O presidente Jair Bolsonaro, por sua vez, foi mais explícito: “Acabou matéria no Jornal Nacional”, disse na sexta-feira, referindo-se à impossibilidade de números divulgados tão tarde entrarem no telejornal. A Globo não se fez de rogada. Deve ter provocado algumas quedas do sofá quando interrompeu a novela das nove com a vinheta do plantão de emergência. Então William Bonner entrou ao vivo, informando que os números do dia haviam acabado de sair – eram 1.005 mortes nas 24 horas anteriores, totalizando 35.026.

Naquela mesma noite veio o verdadeiro apagão. O portal do Ministério que traz as informações consolidadas saiu do ar, sem explicações, e só voltou no sábado à tarde. Porém, estava… diferente. Não trazia mais o acumulado de casos e mortes registrados no país, mas apenas o total das últimas 24 horas. O número de óbitos sob investigação (que até quinta-feira era de 4.159) também desapareceu. O Brasil até chegou a sumir do ranking da Universidade Johns Hopkins, que tem sido referência em estatísticas globais na pandemia, porque as informações eram puxadas direto do site do Ministério.

Jair Bolsonaro confirmou que, dali pra frente, seria sempre assim. Justificou, ao publicar no Facebook uma nota do Ministério: é que os dados acumulados não estavam “retratando o momento do país”…

Não bastasse a mudança surreal, ontem à noite o governo divulgou dados divergentes em relação à pandemia. Por volta das 20h30, soltou um balanço informando 1.382 mortes nas 24 horas anteriores, o que seria o maior número já registrado em um domingo. Mas às 22 horas, depois que a notícia já tinha circulado, esse número saiu e foi substituído por outro: 525. Uma diferença de nada menos que 857 vítimas. O número de casos, por outro lado, subiu. No primeiro balanço eram 12.581 novos registros e, no segundo, 18.912. 

Com esse inacreditável fim de semana, outro episódio de estatísticas camufladas veio à memória de muitos: entre 1971 e 1974, durante a ditadura civil-militar, uma epidemia de meningite assolou o país, especialmente São Paulo. Mas, para o governo, o melhor remédio era ignorar o problema, evitando que as mortes manchassem o ‘milagre econômico’. As autoridades sanitárias e a imprensa ficaram proibidas de falar a respeito. Mesmo após junho de 1974, quando o acúmulo de doentes tornou impossível escondê-los, a liberdade de informar sobre a epidemia não durou muito: “logo em seguida, julho ou agosto, se proibiu a divulgação de dados estatísticos a respeito da doença para ‘não alarmar a população’. O assunto era considerado de segurança nacional”, lembra, numa antiga entrevista ao Viomundo, o epidemiologista José Cássio de Moraes, um dos especialistas que tentou alertar para o problema na época.

ESFORÇO CONJUNTO

Segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, a intenção do governo não é a de esconder os dados, “Basta você somar com o dia anterior”, simplificou ontem, em entrevista.

É óbvio que as somas estão sendo feitas. Com o apagão, iniciativas que já estavam lidando com dados da pandemia no país, como Brasil.io e MonitoraCovid-19, começaram a trabalhar com os dados das secretarias estaduais. Ontem, o Conass lançou um painel próprio. O TCU, em parceria com os tribunais de contas dos estados, também deve fazer e divulgar consolidados.

Aliás… O erro nos primeiros dados divulgados pelo Ministério ontem à noite já havia sido pescado pelo pessoal do Brasil.io. Segundo Álvaro Justen, um dos integrantes da iniciativa, os números de óbitos de Roraima e Bahia divulgados inicialmente pela pasta eram muito maiores do que os registrados pelas secretarias de saúde, possivelmente devido a erros de digitação.

De acordo com o Brasil.io, o Brasil tem hoje 693.041 casos confirmados de covid-19 e 36.498 mortes. Quase 80% dos municípios já registraram infecções.

Só que a responsabilidade por divulgar informações corretas, claras e atualizadas deve ser do governo. Desde a sexta-feira, várias iniciativas no sentido de cobrar isso estão na mesa. Parlamentares da Rede Sustentabilidade, do PCdoB e do PSOL entraram com uma ação no STF pedindo que todos os dias, até as 19h30, sejam divulgados os números de casos, óbitos e pacientes recuperados das últimas 24 horas, além dos dados acumulados. No sábado, a Defensoria Pública da União entrou com um pedido de liminar com a mesma reivindicação.

E um órgão ligado à Procuradoria-Geral da República, a Câmara de Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral do MPF, abriu um procedimento extrajudicial para investigar os atrasos e omissões. A Câmara quer que o ministro interino, general Eduardo Pazuello, dê em 72 horas detalhes sobre a decisão. Além disso, a imprensa internacional deu destque à notícia absurda.

Pode ser que a pressão tenha funcionado. Ontem à noite, o Ministério da Saúde divulgou uma nota afirmando que está finalizando uma plataforma que vai trazer os números detalhados da pandemia e que “vem aprimorando os meios para a divulgação da situação nacional”… Para quem diz buscar aprimoramento, a ordem dos eventos está um pouco confusa. Se a plataforma anterior não tivesse sumido, talvez desse até para acreditar. 

RECONTAGEM DE MORTOS

Para completar, o apagão pode não ficar ‘apenas’ na omissão dos números acumulados. O futuro (agora ex-futuro, como veremos a seguir) secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério), Carlos Wizard, disse ao Globo que o governo pretende recontar os mortos que já entraram para as estatísticas. De acordo com ele, os números que a pasta divulgava eram “fantasiosos ou manipulados”, e estados e municípios estavam inflacionando casos e mortes para receber mais recursos. “Temos uma equipe de militares trabalhando nisso, sob o comando do general Pazuello. Estamos levantando os dados e fatos. Levaremos à esfera competente”, completou, no dia seguinte, em entrevista ao Estadão.

Como não poderia deixar de ser, a fala foi imediatamente criticada. “Fico me perguntando como vai ser uma contagem retroativa de mortos. Não existe um banco de dados formal no Brasil: fora do DataSus, não há nada. Como o governo vai dizer que na linha A23 da tabela a pessoa não morreu de covid? Quais são as métricas?”, questiona Marcelo Mendes Brandão, pesquisador do Laboratório de Biologia Integrativa e Sistêmica da Unicamp, no Estadão.

Os secretários de saúde, diretamente acusados por Wizard de inflar números, defenderam-se. “Sua declaração grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco”, escreveu Alberto Beltrame, presidente do Conass.

No fim das contas, não sabemos se o plano diabólico de Wizard vai seguir adiante, porque ontem à noite ele anunciou seu desligamento total do Ministério. Em nota, afirmou que deixaria o cargo que já ocupava como conselheiro da pasta, e que desistiu também de assumir a Secretaria, da qual tomaria posse hoje. “Peço desculpas por qualquer ato ou declaração de minha autoria que tenha sido interpretada como desrespeito aos familiares das vítimas da Covid-19 ou profissionais de saúde que assumiram a nobre missão de salvar vidas” escreveu.

A verdade é que o bilionário estava prestes a sentir no bolso o resultado de suas trapalhadas, desde a defesa apaixonada da cloroquina até a recontagem de mortos. Os nomes de das empresas de que ele é dono ou acionista, como Mundo Verde, Rainha e Pizza Hut, começaram a circular nas redes, impulsionando um movimento de boicote.

AOS PÉS DE TRUMP

Donald Trump, sabemos, tem lidado tragicamente com a covid-19 nos Estados Unidos. Em certo momento, chegou a dar uma perturbante declaração, afirmando que se o país tivesse 100 mil mortes, teria feito um bom trabalho. Até agora são 110 mil e, embora o número diário de mortes tenha caído, a situação ainda não é confortável. Mas, para sorte do presidente, há outro líder pior que ele, e bem perto. Trump, que já havia criticado Bolsonaro, foi mais incisivo nessa sexta-feira: “Se você olha para o Brasil, eles estão num momento bem difícil. E, falando nisso, continuam falando da Suécia. Voltou a assombrar a Suécia. A Suécia também está passando por dificuldades terríveis. Se tivéssemos agido assim, teríamos perdido 1 milhão, 1,5 milhão, talvez 2,5 milhões ou até mais”, disse.

Mais tarde, Bolsonaro faria mais uma tentativa de aproximar-se de sua fonte de inspiração: disse que o Brasil também pode deixar a OMS. “Ou a OMS deixa de ser uma organização política, partidária até vou assim dizer, partidária, ou nós estudamos sair de lá”, afirmou ele. Perguntado sobre o cutucão de Trump, esquivou-se: “[Trump]  É meu amigo, é meu irmão. Falei com ele essa semana, foi uma conversa maravilhosa, um abraço, Trump. O Brasil aí quer cada vez mais aprofundar nosso relacionamento”,

SUSPENSAS, SÓ QUE NÃO

O ministro Edson Fachin, do STF, determinou na sexta-feira a suspensão de operações policiais nas favelas do Rio enquanto durar a pandemia. Elas só poderão ocorrer em “hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro” e, caso deflagradas operações, a polícia deve tomar “cuidados excepcionais” para não colocar em risco a população, os serviços de saúde e a ajuda humanitária.

Mesmo com as brechas, foi uma vitória. Durou pouco, porém. Na noite seguinte, moradores do Complexo do Alemão já foram surpreendidos com um tiroteio. Eram PMs  participando de uma incursão. Questionado, o governo do Rio disse apenas que ainda não havia sido  notificado pelo STF sobre a suspensão.

DIA DE PROTESTOS

Conforme havia sido anunciado, ontem vários protestos contra Jair Bolsonaro aconteceram no país, com a defesa das vidas negras como principal grito. Houve manifestações em pelo menos 11 estados e no Distrito Federal, segundo informações da Folha. A maior delas, em São Paulo, terminou com bombas e 32 pessoas detidas.

Ontem, um editorial do Financial Times apontou Bolsonaro como alguém que “acendeu o medo” na democracia brasileira e disse que há risco crescente de uma virada autoritária. “É improvável que o Exército apoie um golpe militar para instalar Bolsonaro como um autocrata. Mas outros países devem observar: os riscos para a maior democracia da América Latina são reais e estão crescendo”, afirma o texto. E também: “Isso pode soar exagerado. Mas poucos presidentes eleitos atenderiam e contemplaria protestos nos quais os manifestantes pedem pelo fechamento do Congresso e da Suprema Corte, sendo substituídos por uma lei militar. Ainda assim, isso é o que o Sr. Bolsonaro fez – não uma, mas várias vezes. No fim de semana passado ele apareceu em uma dessas manifestações montado a cavalo”

Neste fim de semana, entretanto, não houve clima para aparições chocantes nem grandes sorrisos do presidente. Atos em favor dele também aconteceram em Brasília, em São Paulo e no Rio, mas muito mais tímidas. O próprio Bolsonaro havia pedido a seus apoiadores que não fossem às ruas no domingo, mas mesmo assim é inevitável comparar o volume de manifestantes. A multidão que ocupou avenidas ontem, apesar da pandemia, é bem maior. Fora das ruas, o presidente recebeu ainda na sexta um grupo de líderes evangélicos que oraram contra a “baderna” e o “quebra-quebra”. Disseram que quem escolhe e retira as autoridades públicas é “Deus”. “Que Deus livre o Brasil dessa praga e dessa pandemia, que esse espírito de morte seja repreendido da nossa nação”, rogou Silas Malafaia.

Em tempo: mundo afora, multidões continuam marchando em atos antirracistas. Uma das grandes cenas do domingo veio de Bristol, na Inglaterra, onde manifestantes derrubaram uma estátua de mais de cinco metros do traficante de escravos Edward Colston. Jogaram no rio.

NO MUNDO E NOS EUA

O número de mortos por covid-19 no mundo ultrapassou a marca de 400 mil, e os infectados já passam de sete milhões. A cada quatro mortes, uma aconteceu nos Estados Unidos, que já tem mais de 110 mil óbitos e quase dois milhões de infectados.

Há um receio de que as manifestações desencadeadas pelos protestos contra o assassinato de George Floyd provoquem um novo aumento nos casos. O virologista Trevor Bedford, do Centro de Pesquisa de Câncer Fred Hutchinson, estima que cada dia de protesto resulte em cerca de três mil novas infecções. E, dadas as disparidades raciais observadas até agora na pandemia, ele acredita que as novas mortes também serão desproporcionalmente maiores entre os negros. “O benefício social de protestos contínuos deve ser pesado contra impactos substanciais em potencial à saúde”, afirma.

A reportagem do New York Times diz que manifestantes de várias cidades já relatam terem contraído o vírus. Porém, diante de um provável aumento nos casos nos próximos dias, vai ser muito difícil saber de onde eles vieram, porque os protestos acontecem ao mesmo tempo que flexibilizações do isolamento.”Você não pode colocar tudo na conta dos protestos”, afima o epidemiologista Jeffrey Shaman, da Universidade de Columbia.

Aliás, o aumento nos casos já está começando por lá. Em 23 dos 50 estados do país, houve na semana passada um aumento de pelo menos 10% em relação à média de casos semanais registrados. E o percentual é menor nos estados que começaram depois e relaxaram primeiro as medidas de isolamento.

NOVAS ORIENTAÇÕES

A OMS atualizou ontem suas orientações sobre o uso de máscaras. A principal novidade é a inclusão das máscaras de tecido para a população em geral. Segundo a entidade, elas devem ter pelo menos três camadas de tecidos diferentes: a externa deve ser de tecido impermeável, como poliéster; a de dentro precisa ter um tecido que absorva água; a intermediária deve ser de um material que atue como filtro. Essas máscaras devem ser usadas em locais onde há muitos infectados, caso não seja possível manter distanciamento físico. Mas a orientação é de usar máscaras cirúrgicas (e não de pano) para quem está nos seguintes grupos: profissionais de saúde, cuidadores infectados, pessoas com 60 anos ou mais, doentes crônicos e pessoas com sintomas de covid-19.

PERSEGUIÇÃO

Falamos aqui sobre uma nota técnica do Ministério da Saúde que tratava da garantia, durante a pandemia,  de acesso a métodos contraceptivos e a aborto nos casos previstos em lei. O documento foi retirado do ar por pressão de Jair Bolsonaro, mas não foi só isso: o ministro interino, Eduardo Pazuello, exonerou dois dos três técnicos que assinavam a nota: Flávia Andrade Nunes Fialho, da coordenação de Saúde das Mulheres, e de Danilo Campos da Luz e Silva, da coordenação de Saúde do Homem. Entidades da saúde publicaram notas de repúdio.

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