Quem tenta ameaçar a democracia no Brasil

Setores das PMs, a partir de seus comandos, flertam com o bolsonarismo. Ultradireitistas de “clube de tiro” tentam formar milícias. Presidente instala militares em 3 mil cargos federais. É preciso compreender — e enfrentar — riscos autoritários

por Almir Felitte*, em Outras Palavras

É verdade que, desde que a direita não aceitou a derrota nas urnas em 2014, falar em democracia é complicado no país. Mais verdade ainda é que já vivemos sob golpe desde que Dilma foi tirada da Presidência num processo de impeachment juridicamente capenga. Golpe que se aprofundou quando as autoridades brasileiras resolveram ignorar todo tipo de ilegalidade cometida nas eleições de 2018 para favorecer a vitória de Bolsonaro.

Porém, desde o fim da Ditadura Militar, nunca se ouviu tanto sobre a possibilidade das armas tomarem de vez o poder no Brasil quanto nas últimas semanas. Fato é que já virou tema diário, inclusive na grande imprensa, as discussões sobre o risco do país passar desta ditadura envergonhada que vivemos para uma ditadura escancaradamente militar, como a nossa triste história já conhece bem. E, para entender e conter esse risco, observar três grupos políticos diferentes do país é essencial.

Primeiramente, de forma mais óbvia, temos de olhar para as Forças Armadas. Nesse ponto, vale lembrar que Bolsonaro já iniciou seu Governo apontando para a militarização total, com 9 militares no alto escalão do Planalto: ele mesmo e seu vice, General Mourão, além de outros 7 indicados em nível ministerial, quase todos do Exército. Cargos de 2º escalão estratégicos, como na Caixa, nos Correios, na Petrobras ou na FUNAI, também foram ocupados por militares e, não bastassem os homens de farda, mesmo civis nomeados no Planalto possuíam ligações militares, como o ex-Ministro da Educação, Velez, por exemplo.

Esta situação só tem se intensificado e, entre tantas confusões que acontecem no centro do Governo, se tornou comum a figura de um membro das Forças Armadas nomeado para fazer o papel de “bombeiro” da situação. O último e mais emblemático caso foi a nomeação do General Pazuello, para o Ministério da Saúde, em plena pandemia. Empossado, o General logo cercou-se de mais 12 militares em cargos importantes na pasta e impôs uma série de medidas de censura aos dados relacionados à crise da covid-19.

A presença das Forças Armadas se tornou tão expressiva em Brasília que, nesta semana, o TCU decidiu realizar um levantamento sobre quantos militares da ativa e da reserva ocupam cargos civis no Governo. No fim de 2019, a Folha já havia descoberto mais de 2.500 militares em cargos de chefia e assessoramento. Hoje, já se fala em possivelmente mais de 3 mil.

O número de fardas governando o país, por si só, já seria o suficiente para nos preocuparmos. Porém, pior do que um Governo COM militares, o Brasil parece realmente estar formando um Governo DE militares. As falas golpistas, bem simbolizadas pelo Ministro General Heleno, constantemente atacam as demais instituições e a oposição, colocando o Exército como um Poder Moderador no país. Poder Moderador este que já vimos em ação, ou nos esquecemos que, às vésperas de um julgamento no STF que poderia mudar o curso das eleições de 2018, o então Comandante das Forças Armadas, General Villas-Boas, teve manifestação lida em rede nacional ameaçando o resto do país caso a vontade militar não fosse acatada?

Porém, o perigo fardado não ronda apenas as Forças Armadas. A politização das forças policiais, alinhada à extrema-direita, vai se tornado um fenômeno irreversível no país. Só que, ao contrário do que muitos dizem, esta não parece ser uma movimentação restrita a um baixo escalão “insubordinado” da polícia. Pior do que isso, o fenômeno parece ser institucional e de comando.

Estruturadas numa cadeia de comando rígida e verticalizada, nas ruas, as polícias brasileiras raramente expressam comportamentos que não compactuem com as ideias de seus altos escalões. E são estes que encabeçam o fenômeno da politização policial. Em 2018, por exemplo, as Casas Legislativas do país foram tomadas por uma grande quantidade de policiais eleitos, sendo que 40 destes ocupavam o oficialato da PM, e apenas 31 eram praças, além de 34 delegados1.

Esta politização se manifestou nas ruas de forma emblemática em São Paulo, quando a Polícia Militar ignorou bandeiras nazifascistas erguidas por apoiadores de Bolsonaro e provocou manifestantes opositores ao Governo, para depois reprimi-los. Outro caso simbólico ocorreu no início do ano, quando policiais militares se aquartelaram em Sobral e causaram terror na população cearense. Naquela ocasião, a atuação política de alguns policiais extrapolou em muito as já rotineiras confusões que sempre ocorreram em greves policiais, havendo indícios fortes de influência de políticos bolsonaristas nos atos.

Vale dizer que este fenômeno de politização das polícias, colocando-as como atores centrais de um movimento golpista, foi visto recentemente na Bolívia, onde a instituição desempenhou papel de destaque, junto às Forças Armadas, na destituição de Evo Morales. No Brasil, intensificam-se as notícias de que muitas polícias estaduais já podem ter aderido ao bolsonarismo e fugido do controle dos Governadores, como noticiou o Correio Braziliense esta semana2. Em resumo, ao contrário do que alguns diziam até pouco tempo atrás, não parece que os Comandos das polícias estejam perdendo controle sobre o baixo escalão. Pior do que isso, parece que a sociedade civil está prestes a perder de vez o controle sobre as instituições policiais como um todo.

Mas nem só de militares e policiais tem se construído o golpismo armado brasileiro. Entre muitos crimes, o escandaloso vídeo da reunião ministerial escancarou de vez um objetivo político que parece ser sonho antigo da família Bolsonaro para o Brasil: a milicianização da política. Na ocasião, o Presidente foi explícito ao dizer que suas políticas de liberação de armas tinham fins políticos, para que estas fossem usadas por seus apoiadores na perseguição a opositores. E, de fato, desde que tomou posse, Bolsonaro já teve uma série de medidas para afrouxar a legislação armamentista no país, inclusive interferindo politicamente no Exército para tanto.

Assim, não é surpresa que um grupo como o “300 do Brasil”, embora pateticamente pequeno, tenha admitido publicamente que portava armas em seu acampamento. De igual modo, a Associação Nacional de Armas – CAC Brasil, que reúne colecionadores, atiradores esportivos e caçadores, já admitiu ser uma “força de reação” que irá proteger o país e apoiar o Presidente”, o que gerou uma representação do PSOL contra o grupo no MPF para que se investigasse a possível formação de grupo paramilitar.

Apenas dois exemplos que simbolizam bem a guinada sofrida no discurso armamentista brasileiro, que parece ter abandonado os argumentos de “legítima defesa” para enfim admitir o caráter político do porte de armas, mirando a perseguição política à esquerda. Caráter este que muito lembra (e parece copiar) a estrutura das milícias privadas dos EUA, frequentemente ligadas a grupos de extrema-direita.

Estes três fenômenos citados acima, incluindo Forças Armadas, polícias e milícias, podem ou não virem a se comunicar, transformando-se em um único movimento de objetivos golpistas e consolidando a militarização total do país. E não se pode negar que os três apresentem linhas ideológicas muito próximas entre si e alinhadas ao Governo Bolsonaro. Desde a ruptura causada com o fraudulento impeachment de Dilma em 2016, a situação política brasileira apenas se esgarça ainda mais dia após dia. Subestimar movimentações políticas armadas como estas pode ser um erro fatal para a nossa história.

1 https://ponte.org/artigo-bancada-da-bala-ignora-trabalhadores-da-base-da-seguranca-publica/

2 http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/governadores-sao-avisados-de-que-entre-eles-e-bolsonaro-pms-ficam-com-presidente/

*Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

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