OS VOTOS de dois desembargadores da Terceira Câmara do TJ-RJ deram fôlego para Flávio Bolsonaro no inquérito da “rachadinha”, o chamado Caso Queiroz. Foram votos escandalosos, que não receberam apoio de nenhum jurista sério. Nem é preciso ser jurista para enxergar o escândalo. Em 2018, os ministros do Supremo decidiram que o foro privilegiado só valeria para “crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”. Isso significa que o investigado ou réu que sair do cargo perde o direito de ser julgado em uma corte especial. Mas dois desembargadores ignoraram o texto do STF — que é claríssimo e não dá margem para qualquer outra interpretação — e acataram um habeas corpus pedido pela defesa de Flávio. Eles acataram com o argumento estapafúrdio da defesa de que, à época da rachadinha, Flávio era deputado e, portanto, tem direito a foro especial. É como se fosse possível haver um foro privilegiado retroativo.
Esses votos são, sobretudo, antidemocráticos, porque desrespeitam a autoridade do STF. A decisão da Terceira Câmara contraria a jurisprudência sacramentada por uma corte superior, o que contribui ainda mais para a insegurança jurídica do país. Mas são também votos inconstitucionais porque afrontam uma decisão já consolidada da corte suprema na interpretação do “foro por prerrogativa de função”, que é uma norma da nossa carta magna.
Segundo juristas e advogados ouvidos pela jornalista Bela Megale, se a mesma decisão valesse para Lula, o petista teria sido julgado pelo STF, e não por Sergio Moro. Como bem falou o ministro Marco Aurélio Mello, “não há a menor dúvida de que não observaram a doutrina do Supremo. É o Brasil. É o faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso, mas eu entendo de outra forma e aí se toca. Cada cabeça uma sentença.”
A explicação do ministro nos remete mais uma vez a Sergio Moro, que não via muito problema em contrariar decisões de cortes superiores se tivesse boas convicções para isso. Parece que o bolsonarismo ainda colhe frutos desse lavajatismo impregnado nos tribunais brasileiros.
Paulo Rangel e Mônica Tolledo foram os desembargadores que decidiram se fazer de loucos ao ignorar a jurisprudência do STF. Antes do início do julgamento, todas as pessoas atentas ao caso já davam como líquido e certo o voto de Paulo Rangel a favor de Flávio Bolsonaro. A sua proximidade com o bolsonarismo não chega a ser um segredo. A deputada Bia Kicis publicou um vídeo em que Rangel aparece criticando a atuação de prefeitos e governadores no combate à pandemia de coronavírus. Alinhado à narrativa do presidente, o desembargador afirma no vídeo que governadores e prefeitos que cogitaram deter pessoas que violassem a quarentena são “loucos” que “precisam ser submetidos a um exame de sanidade mental.”
O tom da fala contra governadores parece ser mais adequada a um deputado bolsonarista do que a um desembargador que deveria prezar pela discrição e sobriedade. Em outro momento do vídeo, Rangel criticou a rigidez do isolamento social e, como Jair Bolsonaro, alertou para a inevitabilidade da disseminação da contaminação e deu um jeito de enfiar o carnaval no meio: “A doença vai se espalhar. Ela já se espalhou. Ela está aqui desde dezembro. Eles não falaram nada para vocês por causa do carnaval, porque dá dinheiro.” O primeiro caso de coronavírus confirmado pelo Ministério da Saúde é do dia 26 de fevereiro, depois do carnaval.
Em 2017, o juiz Marcelo Bretas, outro magistrado alinhado aos valores bolsonaristas, publicou nas redes sociais uma foto em que aparece com um fuzil na mão numa escola de tiro, ao lado de policiais e de Paulo Rangel. O desembargador também aparece ostentando um fuzil.
Quem está vivo no Brasil em 2020 e conheceu a Vaza Jato não tem o direito de imaginar que todo esse caldo bolsonarista que o desembargador bebe não possa ter nenhuma relação com o voto que afronta o Supremo e agrada a família Bolsonaro.
Paulo Rangel também está na mira do CNJ por supostamente ferir a Lei Orgânica da Magistratura. Recentemente teve de prestar esclarecimentos ao órgão quando descobriram que ele é sócio de uma empresa. O desembargador comprou sua parte na sociedade de um empresário que foi preso no mês passado pela Polícia Federal numa operação que investiga fraudes na área da saúde no Rio. Depois que o caso veio à tona, Rangel vendeu a sua parte na sociedade. Mesmo assim, o corregedor do órgão afirmou que as “investigações devem ser aprofundadas para que não haja dúvida sobre a integridade ética da sua conduta perante à sociedade.”
A decisão da Terceira Câmara, obviamente, será revertida no STF. De qualquer maneira, foi uma grande vitória para Flávio Bolsonaro. Segundo o jurista Diego Weneck Arguelhes, a decisão já produziu efeitos práticos relevantes para a estratégia de defesa: “o processo se descolará da 1ª instância por alguns dias, semanas ou talvez meses – tempo suficiente para que decisões como a prisão preventiva de Fabrício Queiroz sejam revistas, e talvez alteradas.”
A Terceira Câmara tem fama de ser dura com os réus. O tribunal manteve as prisões de Rafael Braga e Rennan da Penha, apesar da absoluta falta de provas. Flávio Bolsonaro não teve que lidar com a mesma sanha punitivista dedicada a jovens pretos de periferia.
Hipocrisia bolsonarista
A reivindicação de foro privilegiado também revela o tamanho da hipocrisia da família Bolsonaro. Em 2017, o presidente apareceu em vídeo ao lado de Flávio Bolsonaro revoltado com o foro concedido a políticos com mandato.
Quando era candidato, Jair Bolsonaro não queria 'essa porcaria de foro privilegiado', mas seu filho Flavio usou o foro para pedir a suspensão das investigações de Queiroz ao STF. É melhor Jair se acostumando? pic.twitter.com/GLwjuTCztI
— The Intercept Brasil (@TheInterceptBr) January 17, 2019
Há um componente nesse caso que também deve ser levado em conta ao analisar a decisão do tribunal. Não se trata de um caso comum de rachadinha em gabinete de político. É muito mais que isso. É uma rachadinha suspeita de ter sido utilizada para financiar o Escritório do Crime — a milícia investigada pelo assassinato de Marielle Franco. Uma das participantes do esquema era a mulher do Adriano Magalhães da Nóbrega, o chefão da milícia que foi assassinado enquanto se escondia na casa de um vereador bolsonarista. É um caso que não envolve apenas um político influente, mas também a cúpula de uma quadrilha criminosa.
Não deve ser fácil para ninguém julgar um caso envolvendo uma milícia carioca e seus chefes. Como não lembrar da juíza Patrícia Acioli, assassinada em 2011 por ser linha dura com milicianos? Nem precisamos ir tão longe. Há 4 meses, mais de 20 magistrados do TJ-RJ tiveram que passar a andar escoltados após ameaças decorrentes da prisão preventiva de 44 milicianos, incluindo policiais militares. Como será que ficam as cabeças de juízes ao julgar o braço político de uma quadrilha criminosa que costuma matar seus inimigos?
As provas contra Flávio Bolsonaro nos crimes de peculato, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e organização criminosa são fartas. Com Queiroz e sua esposa negociando delação premiada, a situação tende a ficar pior para a família Bolsonaro e até colocar o mandato do presidente em risco. Além da rachadinha, há outros fatos mal explicados que podem ser esclarecidos com a delação, como a grana que Queiroz depositou na conta da primeira-dama e o nível de relação que a família Bolsonaro mantém com a milícia. Flávio ganhou fôlego nos tribunais cariocas, mas ele e seu pai continuam em situação muito difícil.
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Paulo Rangel segura um fuzil à direita de Marcelo Bretas, ao lado da placa. Foto: Reprodução/Twitter