A luta pelas águas do Brasil não terminou

O que muda, com a lei de privatização. Por que a batalha desloca-se do Congresso para as cidades e periferias. As chances de criar movimentos como os da Bolívia – ou das 265 cidades que rejeitaram, em todo o mundo, a lógica da água-mercadoria

Marcos Helano Montenegro, entrevistado por Antonio Martins, em Outras Palavras

Duas interpretações opostas emergiram a partir da última quarta-feira (25/6), quando o Senado aprovou o Projeto de Lei 4162/19, que reorganiza os serviços de abastecimento de água e saneamento no Brasil. A primeira sustenta que as mudanças, em relação ao que está em vigor, foram mínimas – e há poucos motivos para preocupação. A segunda sugere que a batalha está perdida, porque o Congresso teria entregue a corporações internacionais um setor vital para a população, e estratégico para o país.

Ambas interpretações são imprecisas e – pior – desmobilizadoras, sustenta o engenheiro Marcos Helano Montenegro, coordenador geral do Observatório Brasileiro pelo Direito á Água e ao Saneamento (Ondas). Seu ponto de vista parte de três premissas: a) A lei cria riscos gravíssimos – em especial a desestruturação de empresas públicas eficientes e a quebra dos modelos de “subsídio cruzado”, o que pode ampliar o número de brasileiros excluídos de um abastecimento digno; b) No entanto, estas ameaças não vão se materializar automaticamente. Elas dependem de decisões em cada município – o que pode alargar o debate político sobre o tema, hoje restrito a pequenos círculos; c) Tal debate é urgente e necessário, porque a privatização é péssima – mas as políticas atuais já não asseguram o direito das maiorias à água, à coleta e ao tratamento de esgotos.

“Temo que estejamos diante de uma ‘lei cloroquina’”, diz Montenegro, que presidiu as companhias de abastecimento de água de Santo André-SP e do Distrito Federal. “A doença que ela pretensamente combate é real e gravíssima – mas o remédio não cura o paciente, e pode matá-lo”.

O engenheiro refere-se à exclusão. Segundo os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), quase 35 milhões de brasileiros, ou três vezes a população da Bélgica, não têm acesso a água tratada. Apenas 53% têm o esgoto coletado; e 76% dos dejetos gerados não são tratados, o que resulta em rios urbanos pestilentos e periferias insalubres, muitas vezes com águas servidas correndo a céu aberto ou despejadas em riachos.

Mas estarão os capitais privados – quase sempre fundos de investimento internacionais, sem nenhum contato ou empatia com a população brasileira – interessados em promover o bem-estar das maiorias? A pergunta sequer precisa de resposta. Os investidores correrão, é claro, atrás dos filés, os sistemas de abastecimento que atendem as cidades mais ricas. Ao fazê-lo, gerarão, de imediato, duas distorções: uma óbvia, outra menos conhecida. Como visam lucro, os especuladores pressionarão por tarifas mais altas, o que pode bloquear o acesso de parte da população aos serviços (nos EUA, as contas são 35% mais caras, em média, nas cidades com abastecimento privatizado). Mas as próprias companhias de saneamento estaduais, que atendem a municípios cuja riqueza é diversa, poderão se inviabilizar. Ao serem privadas de seus usuários com maior poder aquisitivo, como irão manter o atendimento apenas àqueles que podem pagar menos? Montenegro conta que o Brasil já vive este drama no Amazonas. Em Manaus, os serviços foram privatizados. Houve aumento da exclusão, piora dos serviços, enxurrada de reclamações no Procon. Mas as consequências foram ainda mais sentidas no interior do Estado, onde já não há recursos para atender uma população ribeirinha sem condições financeiras de pagar pelo abastecimento.

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Se o saneamento já pode ser privatizado, nas cidades cujas prefeituras o desejam, o que muda com a nova lei? Montenegro explica que a lei introduz uma alteração dramática. Ela proíbe os municípios de renovar automaticamente a concessão dos serviços a empresas públicas próprias, ou às companhias estaduais. Torna-se obrigatório oferecer, a capitais privados, o direito de participar de licitações. É provável, nestas condições, que o número de cidades com serviços “conquistados” pelo capital privado cresça – seja graças a condições pró-mercado, estabelecidas pelas prefeituras; seja devido à promiscuidade corrupta entre a política e negócios, que marca as instituições brasileiras.

A luta política que Montenegro propõe tem como base as cidades. As condições em que se dá o abastecimento de água quase não estão presentes, hoje, no debate público. Não fazem parte dos programas dos prefeitos ou vereadores, das campanhas ou debates eleitorais. Raramente motivam ações dos movimentos sociais. Esta ausência, agora, não pode prosseguir.

O país precisa fazer, com atraso, o esforço político realizado na virada do século, na Bolívia, com a Guerra da Água contra o governo Hugo Banzer e as transnacionais norte-americanas Bechtel e Edison. Precisa conhecer a se inspirar nas lutas de Paris, Berlin e outras 263 cidades do mundo que republicizaram seus serviços de abastecimento hídrico e esgotos, após os desastres provocados pela privatização.

Não é necessário, obviamente, esperar por esta. Montenegro explica que, embora públicas na forma, a maior parte das empresas do setor, no Brasil, está deixando de sê-lo na realidade. Isso se dá, em primeiro lugar porque os orçamentos para o setor são insuficientes e, em especial, porque há imensas má vontade e letargia para universalizar os serviços. O caráter de classe desta demora é claro. “O povo das periferias, os pretos e os pardos, que sofrem com a falta de água tratada e esgoto, não têm poder político para estender as redes. Quem o tem vive em bairros com excelentes serviços”, provoca o coordenador do Ondas.

A mercantilização da água se dá ainda por outras formas, mesmo sob gestão de empresas públicas. Algumas destas estão ameaçadas de privatização, imposta pelo governo federal como condição para conceder financiamentos aos Estados – o caso típico é a Cedae, do RJ. Outras, embora de propriedade estatal, orientam-se por lógicas capitalistas. Buscam a remuneração de seus acionistas (em parte privados), acima de tudo. Evitam implantar ou restringem as tarifas sociais, que favoreceriam a população com menos recursos. Deixam de aplicar os lucros na expansão, conservação e modernização das redes, transferindo os recursos aos governos, que os esterilizam em políticas de “ajuste fiscal”.

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No próximo mês, vão se completar dez anos desde que a Assembleia Geral da ONU adotou explicitamente o direito humano à Água e ao Saneamento. Não se trata de uma declaração formal, mas de reconhecer que os serviços precisam seguir as lógicas do Público e do Comum – não a dos lucros. No Brasil, esta luta tem origens remotas e múltiplos atores (dos indígenas aos sindicalistas; da população periférica à juventude urbana que resiste ao enterramento dos rios). Criado há dois anos, durante o Fórum Alternativo Mundial da Água, realizado no Brasil, o Ondas procura articular estas ações e lhes dar dimensão nacional.

Em tempos áridos, quatro dias depois da aprovação da lei ameaçadora, Marcos Montenegro, coordenador do Observatório, fez questão de encerrar a entrevista a Outras Palavras com uma sentença onde não há sinal de desânimo. “Tenho a impressão de que se não mudarmos o rumo rápido, o desastre se aprofunda, e não só no saneamento. Mas tenho uma mensagem de otimismo e luta, por outro lado. A luta sai do Congresso Nacional e vai para cada cidade, cada estado. Vamos sustentar o fogo”, disse ele.

*Coordenador geral do Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento (ONDAS). Engenheiro Civil. Regulador de Serviços Públicos da Agência Reguladora de águas, Energia e Saneamento do Distrito Federal – Adasa DF; membro dos Conselhos de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do DF, representando a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – ABES; integrou a equipe que instalou o Ministério das Cidades como Diretor da Secretaria Nacional de Saneamento

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