Decisão da Fundação Renova em plena pandemia afeta renda e induz retorno da pesca de peixes ainda contaminados
Vitor Vieira, Século Diário
Na noite de quarta-feira (1) e manhã desta quinta (2), os trilhos do trem da empresa Vale entre Minas Gerais e Espírito Santo foram bloqueados em diversos pontos como forma de protesto das comunidades diante da decisão de cancelamento do auxílio emergencial pela Fundação Renova para os atingidos pelo crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP no Rio Doce, ocorrido em 2015. No Espírito Santo, houve bloqueios na altura de Mascarenhas (Baixo Guandu) e Maria Ortiz (Colatina).
O bloqueio das vias de trem que margeiam o Rio Doce tem sido uma estratégia dos movimentos sociais de atingidos para se fazerem ouvir desde o crime socioambiental, pois afeta diretamente as operações econômicas de uma das empresas responsáveis, a Vale, uma das acionista da Samarco.
Desde segunda-feira (29), o clima é confuso entre os atingidos, que foram pegos de surpresa com a decisão, que se baseia na não proibição da pesca na calha do Rio Doce. “A Fundação Renova esclarece que não há impedimento para o exercício da pesca para consumo próprio na calha do Rio Doce em MG e no ES, uma vez que não há proibição legal de pesca nessas regiões. Desse modo, não há causa para interrupção dessa atividade”, afirmou a carta enviada a vários dos atingidos. A entidade ainda informa que seus escritórios nos territórios atingidos estão fechados por conta do isolamento social em decorrência do Covid-19 e disponibiliza um número gratuito de telefone e um endereço eletrônico para tirar dúvidas.
“É um absurdo a companhia fazer um corte desses em plena pandemia, com todo mundo sem mercado de trabalho”, afirmou o pescador Lélis Barreiros, da Comissão dos Atingidos de Conselheiro Pena (MG), onde também houve paralisação da via de trem da Vale desde a noite dessa quarta. Ele cita que o fim da proibição data de 2017, mas só agora, em meio à pandemia, a fundação tomou essa atitude, que ele entende como incorreta.
Legalmente, há proibição de pesca numa faixa do litoral capixaba entre Aracruz e Linhares, porém no Rio Doce não há proibição, embora estudos mostrem que há contaminação nos peixes.
Mas de acordo com o Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC) assinado pelas empresas responsáveis, o pagamento do auxílio deve ser efetuado “até que sejam restabelecidas as condições para o exercício das atividades econômicas originais ou,’ na hipótese de inviabilidade, até que sejam estabelecidas as condições para nova atividade produtiva em substituição à anterior, nos termos do programa, limitado ao prazo máximo de cinco anos, a contar da assinatura deste acordo”, prevendo ainda a possibilidade de prorrogação de três meses do prazo, se justificada. A data do acordo é de março de 2016 e o auxílio inclui uma cesta básica e um salário mínimo, além de adicional de 20% por dependente.
Os atingidos alegam que os projetos de implementação de atividades alternativas à pesca não têm acontecido nos territórios, assim como as condições para pesca não estão restabelecidas. Ainda assim, a decisão de cancelamento do auxílio, feita unilateralmente pela Fundação, sem passar por consulta nos mecanismos de governança do caso, induz que os pescadores podem voltar a pescar para consumo próprio, mantendo o auxílio apenas para pescadores profissionais registrados.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) se manifestou em nota questionando a decisão da Fundação Renova: “É preciso reforçar que esses cortes promovem um grave risco de contaminação em massa dos atingidos e atingidas, pois estão fundamentados na suposta liberação da pesca Rio Doce, o que pode motivar pescadores, pescadoras e moradores em geral a se exporem à água contaminada por metais pesados, além do consumo de um pescado igualmente contaminado, como indicam tanto os estudos da Lactec e da Rede Rio Doce Mar, no litoral do Espírito Santo”.
Em 2019, a Fundação Renova já gerou polêmica ao usar uma nota técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para argumentar que o consumo de peixes no rio estava liberado em quantidades limitadas. A própria agência esclareceu que a nota não representava nenhuma indicação de liberação da pesca na região, já que a decisão envolvia a avaliação de outros fatores que não são de competência da Anvisa.
Sobre a decisão de sugerir a volta da pesca na atual conjuntura do novo coronavírus, o MAB também deixou um alerta: “Tudo isso, a médio e longo prazo, além dos impactos da pandemia, vai pressionar os serviços públicos de saúde dos municípios atingidos, agravando a crise sanitária em curso”.
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