Bolsonaro e Trump ainda não sucumbem, apesar de seus trágicos desastres. Pesquisadores brasileiros sugerem, em livro: ideia do futuro tornou-se tão árida que muitos preferem crer num presente fantasioso, a buscar outra perspectiva
Por Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo, em Outras Palavras
Quase seis meses se passaram desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro. As dúvidas e perguntas, advindas desse fato, nos orientaram na escrita do Almanaque da Covid-19: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as direitas, em especial, a extrema-direita e a Alt Right, estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará as estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?
Considerando que um almanaque é algo vivo, cuja materialização se realiza a partir dos acontecimentos, muitas vezes, independentes de nós mesmos, algumas dessas perguntas ganharam mais relevância no curso dos eventos. E outras questões foram sendo incorporadas em nossas análises, já que a pandemia, somada à performance de Bolsonaro e do bolsonarismo, estabeleceu um jogo dinâmico, para nós, brasileiros, entre previsibilidade e imprevisibilidade, que nos fez tomar direções distintas das previstas inicialmente.
Muitas vezes sentimos que os fatos estão acontecendo ao-mesmo-tempo-agora, e isso nos traz um desnorteamento em relação ao fluxo de informações que nem sempre têm relação entre si. No entanto, como mostraremos, sentir-se sufocado pelas cascatas de informações parece ser uma experiência própria do nosso tempo epidêmico, bem como de sua infodemia. A asfixia parece ser a palavra que mais descreve diversos climas desse semestre tão excepcional que o mundo viveu.
Para dar conta disso, ao longo do processo de construção do livro acabamos por alternar e misturar três gêneros de escrita: o diário, a cronologia e a crônica, que constitui o almanaque. A escolha pela forma de almanaque foi reforçada pelo clima apocalíptico que temos vivido. Além do noticiário diário, dos canais de streaming, os filmes sobre epidemias, como Outbreak (Epidemia, Wolfgang Petersen, 1995), etc, reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável.
Algumas partes do diário foram escritas de forma retrospectiva, como é comum a esse gênero, e utilizamos como laboratório-base o grupo de WhatsApp chamado “Atualismo”, com o qual, desde 2015, produzimos reflexões e debates.
Inicialmente, a nossa escrita foi impulsionada pela ideia de que um esforço de parada reflexiva é, em nosso tempo, necessário para evitar sermos devorados pelas atualizações. A nova direita e a extrema-direita global têm se utilizado da agitação das notícias, provocadas pelo fluxo de atualizações, e pelas chamadas fake news, para reforçar o seu poder. Como acreditamos que o caminho progressista precisa seguir em outra direção, o nosso trabalho tem, também, a intenção de nos levar a um engajamento que busque outras alternativas ao que nos apresentam as direitas mundiais.
No fim de março, nos perguntávamos quando chegaria entre nós o pico da epidemia e quão severas seriam as suas consequências, que haviam se agravado pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme Outbreak, de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas; em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes, na segunda maior economia do mundo.
Pois bem, o que fazemos no livro é escrever a história de como o vírus SARS-CoV-2 e a doença a ele associada, a COVID-19, assim como o bolsonarismo, foram se infiltrando em nossas vidas.
O “atualismo”, tão bem explorado pelas direitas e pelas extrema-direitas globais, é uma das consequências da explosão de notícias em fluxo contínuo, em que o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida e mesmo com mentiras que funcionam, como é o caso do fenômeno da desinformação traduzido na expressão Fake News. Essa estrutura impede, muitas vezes, que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro, em geral, não admitem erros, mas, simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Mostramos no livro como os discursos deles mudam em função da conveniência da atualidade, na maioria das vezes, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Esse fato que contribui para a dispersão e distração. Afinal, esses líderes se assemelham a apresentadores de shows de variedades, só que, nesse caso, os shows apresentados são perversos e sombrios. São shows de horrores.
Procuramos mostrar como, muitas vezes, o passado e o futuro são mobilizados nesses discursos e práticas, como dispositivos para a agitação política. Mas, isso não significa que não existam projetos de passado e futuro nos movimentos políticos atualistas, representados tão bem por esses líderes. O caos é apenas uma cortina de fumaça, assentada numa complicada realidade do passado histórico, muitas vezes idealizado. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes, incitada pela negação, pela nostalgia e pelo ressentimento. E, talvez, o principal projeto de futuro desses movimentos políticos contemporâneos da direita alternativa e da extrema direita seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal.
Por tudo isso, o almanaque, uma das formas mais tradicionais de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante. Nesse exercício de história imediata, os dias relativos à primeira parte foram organizados por quinzena, acompanhando um dos tempos da pandemia já que o vírus pode levar até duas semanas para se manifestar. Na segunda parte do livro, apresentamos nossa leitura reflexiva, mais verticalizada e em forma de crônica, de alguns fatos que ocorreram durante o encontro do presidente fake com o vírus real. E, na terceira parte, abrimos e destacamos alguns dos assuntos mais recorrentes do período, que podem ser lidos de forma isolada ou podem ser entendidos como aprofundamento informativo, como hiperlinks, de temas tratados nas duas primeiras partes.
Ao navegar pelo almanaque, pretendemos recriar a possibilidade de reviver os momentos em que a pandemia, causada pelo coronavírus, deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas em sua articulação com a crise das democracias liberais.
De todo modo, o objetivo principal do livro é entender como dois grandes países, no caso, o Brasil e os Estados Unidos, divergiram da OMS e, mesmo assim, os seus líderes continuaram no poder de forma mais ou menos estável. Se não estáveis, apoiados por pelo menos ⅓ de sua população. Como entender esse escândalo?
Depois de quase seis meses, vemos a evolução catastrófica da pandemia no Brasil e nos EUA, com a perspectiva de o número de mortos chegar a milhares. Quem acompanhar nossa narrativa poderá perceber como o governo brasileiro se alinhou com alguns outros poucos países em que a política pública divergiu programaticamente daquilo traçado pela OMS. Ainda assim, a popularidade de Jair Bolsonaro não foi, até agora, substancialmente atingida. De algum modo, vivemos a história de como o regime de verdade, que sustentava as democracias ocidentais, foi comprometido em países como o Brasil e os Estados Unidos.
A nossa hipótese é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a “verdade” que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas tomam decisões orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas. Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos políticos tradicionais.
Portanto, esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19. Ele é o hospedeiro em que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasita em simbiose.
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*Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. São autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.