Quem poderia transmitir covid-19 a Bolsonaro?

Mostramos que é impossível saber — dada a atitude de negligência permanente. Se ele estiver contaminado, decerto propagou a doença entre muita gente. E muito pior que o descuidado pessoal é a sabotagem à luta contra a pandemia no Brasil

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

O PRESIDENTE E A COVID

Jair Bolsonaro celebrou o Dia da Independência dos Estados Unidos no sábado. O almoço aconteceu na casa do embaixador Todd Chapman, em Brasília. Fotos e vídeos do evento foram divulgados pelo presidente na sua página do Facebook. “Evite abraços, beijos e apertos de mãos”, recomenda o Ministério da Saúde. Nas imagens, Bolsonaro aparece sorridente, abraçado a Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e cercado de ministros-generais palacianos; todos sem máscara de proteção facial. Álcool só o das caipirinhas.

Antes do almoço, Bolsonaro sobrevoou de helicóptero áreas atingidas pelo ciclone em Santa Catarina. Acompanhado do ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), esteve com parlamentares e autoridades locais.

De acordo com o jornal O Globo, no sábado à noite o presidente começou a reclamar de “cansaço”. No domingo, o “mal estar” teria continuado. Até que, ontem, Bolsonaro disse casualmente a apoiadores que o aguardavam no Palácio da Alvorada que acabara de voltar “do hospital”, onde tinha “batido uma chapa” do pulmão – que “estava limpo” – e faria “novo” exame para detecção do coronavírus. 

Mesmo com suspeita da doença, desceu do carro para falar com sua claque. Desta vez, de máscara. “A um apoiador que pediu para retirar a máscara para uma fotografia, o presidente primeiro concordou, mas depois disse ao homem que ele não havia autorizado. ‘Tirou porque quis’, afirmou” Bolsonaro, segundo o relato do Estadão. A interação com apoiadores foi transmitida por um canal bolsonarista no YouTube. Mais tarde, em entrevista à CNN Brasil, Jair Bolsonaro confirmou que está com sintomas da covid-19, aproveitando para revelar que, mesmo antes da confirmação, começou a tomar hidroxicloroquina…

Tudo isso aconteceu na mesma segunda-feira em que o país chegou à marca oficial das 65 mil mortes causadas pelo novo coronavírus. E quando o presidente inaugurou um jeito novo de fazer vetos – à prestação – e publicou uma retificação à lei aprovada pelo Congresso Nacional para regular o uso de máscaras no país. Agora, além de querer que seu uso seja facultativo em templos e igrejas, comércios, etc., Bolsonaro descartou a proteção individual em um dos locais com mais riscos de contaminação: os presídios. E aproveitou para liberar os estabelecimentos comerciais de afixarem cartazes com informações ao público sobre o máximo de pessoas permitidas em suas dependências. Coincidentemente, também ontem, Donald Trump – para quem Bolsonaro sempre olha, como uma bússola – decidiu voltar atrás e encorajar “fortemente” o uso de máscaras em seu próximo comício. 

A crônica do dia em que o presidente de 65 anos (logo, no grupo de risco para a covid) informa à nação que talvez esteja com o que ele próprio caracterizou tanto tempo como uma “gripezinha” não poderia deixar de reunir todos os elementos caóticos do bolsonarismo. 

Na sexta-feira, Bolsonaro almoçou com executivos de nove grandes empresas, como Luiz Trabuco, do Bradesco, e Candido Pinheiro, da HapVida. Como os sintomas demoram a aparecer em média cinco dias – e porque ninguém estava de máscara, pelo menos segundo as imagens divulgadas – a ocasião pode ter sido foco de infecção. 

“Se estiver doente, evite contato físico com outras pessoas, principalmente idosos e doentes crônicos, e fique em casa até melhorar”, recomenda o ministério da Saúde. Pelo que consta da sua agenda oficial, mesmo com sintomas Bolsonaro, teria participado de seis reuniões com membros do governo, como José Levi (AGU) – que já divulgou que fará exame para covid-19 hoje. Só depois seguiu para o Hospital das Forças Armadas, onde fez exames, como uma ressonância dos pulmões. De acordo com a Secretaria de Comunicação, o teste para detecção do SARS-CoV-2 foi feito no Alvorada e o resultado sai hoje. 

REVISÕES

Não foram as autoridades chinesas, mas sim o escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) na China, quem alertou o organismo sobre os primeiros casos de covid-19. A informação está no último documento com a cronologia da doença, publicado pela OMS esta semana. O texto indica que no dia 31 de dezembro o escritório regional da entidade notificou um caso de “pneumonia viral”, identificado em uma declaração para a mídia no site da comissão de saúde de Wuhan. No mesmo dia 31, o serviço de informações epidemiológicas da OMS recebeu outra reportagem – da rede internacional de vigilância epidemiológica dos EUA, ProMed – sobre a mesma misteriosa doença. Nos dias 1 e 2 de janeiro, a OMS solicitou informações sobre os casos às autoridades chinesas; no dia 3, recebeu-as. 

O caso ganhou destaque na FoxNews, que, é claro, começa a reportagem dizendo que a credibilidade da OMS fica “mais uma vez” abalada. Não deixa de pegar mal essa alteração meses depois (a primeira linha do tempo foi publicada no dia 9 de abril, já em resposta às críticas que o organismo vinha sofrendo). Nela, dizia que os casos de pneumonia haviam sido relatados em 31 de dezembro pela comissão municipal de saúde de Wuhan, sem especificar de onde viera a notificação.

Há outra possível alteração em vista – esta, com possíveis resultados pragmáticos no curto prazo. Como dissemos ontem, 239 cientistas escreveram à OMS pedindo que ela reveja suas orientações sobre a prevenção à covid-19, já que há evidências de que o vírus pode se espalhar pelo ar. A entidade afirmou, ainda ontem, que está revisando o conteúdo da carta.

CAOS E DESPERDÍCIO

O empenho de pesquisadores do mundo inteiro para conseguir um tratamento contra a covid-19 é notável. Desde janeiro, foram 1,2 mil ensaios clínicos projetados para testar medicamentos e terapias. Só que um levantamento feito por repórteres do Stat traz uma triste constatação: muitos recursos financeiros têm sido desperdiçados. Com frequência os estudos são pequenos demais (39% só inscreveram ou pretendem inscrever menos de cem pessoas) para obter resultados confiáveis. E 38% ainda não começaram a registrar voluntários. 

O  problema é que parece não haver uma coordenação global para identificar prioridades e dividir o esforço. E dois vilões nessa história são, adivinhem, a cloroquina e a hidroxicloroquina. O frisson em torno dos medicamentos – iniciado por um fatídico artigo francês e impulsionado por Donald Trump – fez com que eles dominassem as pesquisas. Dos 685 mil voluntários inscritos em todos os estudos, 35% (ou 237 mil) estiveram em ensaios sobre esses remédios. Isso é ruim porque uma das maiores dificuldades dos pesquisadores é recrutar pessoas para testarem os medicamentos. Com o monopólio da cloroquina, ficou mais complicado ainda conseguir gente para os outros potenciais tratamentos. E, o que é pior: na maior parte das vezes os ensaios com cloroquina são pequenos e sem grupos de controle, ou seja,  não podem dizer ao certo se os tratamentos funcionam ou não. Ensaios clínicos podem custar milhões de dólares.

“É uma enorme quantidade de esforço desperdiçado e energia desperdiçada quando, na verdade, um pouco de coordenação e colaboração poderiam nos levar longe e responder a algumas perguntas”, diz na reportagem Martin Landray, professor da Universidade de Oxford. Ele é também um dos principais pesquisadores do Recovery, grande ensaio randomizado do Reino Unido que investiga vários tratamentos em 12 mil pessoas e centenas de hospitais. O Recovery, aliás, é citado pela matéria como exemplo de uma pesquisa bem projetada e que, de fato, traz resultados mais seguros. Até agora, entre os 1,2 mil estudos, só dois apresentaram provas da eficácia de algum tratamento: o Recovery e um trabalho dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, que mostraram que o remdesivir diminui o tempo de internação de pacientes graves.

Se conseguir voluntários é difícil, uma das razõespara o sucesso do Recovery é que ele recebeu apoio do National Health Service (o SUS britânico). Os pesquisadores enviaram uma carta a cada um dos hospitais do NHS pedindo aos médicos que inscrevessem seus pacientes nesse e em outros dois ensaios clínicos – assim, em vez de apenas usar os medicamentos de forma emergencial, como se faz por toda parte, esse uso pode servir para estudar os efeitos de cada droga. “Usar tratamentos fora de estudos, quando é possível participar deles, é uma oportunidade desperdiçada de criar informações que beneficiarão outras pessoas”, escreveram os médicos, na carta. Por causa dessa coordenação, um em cada seis pacientes com covid-19 internados nos hospitais do Reino Unido acabaram fazendo parte do Recovery, segundo uma reportagem da Science.

Já nos EUA, país com maior número de casos de covid-19 do mundo, a escassez de resultados é “surpreendente e um pouco decepcionante”, como nota John-Arne Røttingen, que chefia o comitê de direção do Solidarity (o grande ensaio da Organização Mundial da Saúde). Lá, dezenas de milhares de pacientes receberam tratamento com plasma, por exemplo, mas não em ensaios randomizados, com grupos de controle. “Saberemos o que aconteceu com esses pacientes, mas não saberemos se eles estariam em melhor situação se não tivessem recebido plasma”, explica Ana-Maria Henao Restrepo, médica do Programa de Emergências da OMS. Ou seja, perdeu-se a oportunidade de produzir evidência científica sólida sobre a eficácia (ou não) desse tratamento.

É importante observar que o processo caótico não se repete no desenvolvimento de vacinas: no caso delas, isso está sendo feito de forma mais metódica. 

Em tempo: depois da hidroxicloroquina, a OMS agora excluiu o tratamento com lopinavir/ritonavir do ensaio Solidarity. O Discovery (estudo europeu feito em parceria com o Solidarity) também. Os resultados preliminares mostram, além de ineficácia, efeitos colaterais muito significativos.

E a farmacêutica Regeneron anunciou o início da última fase dos ensaios clínicos do seu coquetel de anticorpos para tratar a covid-19. Pretende incluir dois mil voluntários nos EUA. 

CASOS EM ALTA, VACINA EM BAIXA

A Índia chegou a 719 mil casos confirmados de covid-19, ultrapassando a Rússia e assumindo o terceiro lugar no ranking dos países mais afetados. São cerca de 20 mil mortes. Não há nenhum sinal de que os contágios possam começar a cair por lá. Pelo contrário: têm sido em média mais de 20 mil por dia.

E o Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR) anunciou na última sexta a previsão de que uma vacina contra o novo coronavírus seria lançada até o dia 15 de agosto. Sim, daqui a um mês. É claro que o alvoroço foi intenso e que a ideia gerou muito mais críticas do que expectativa. Afinal, nenhum dos imunizantes desenvolvidos no país está na última fase de pesquisas. Seis empresas indianas estão na corrida e, na semana passada, o governo concedeu a duas delas (Bharat Biotech, cuja vacina é a covaxin; e Zydus Cadila, que estuda a ZyCov-D) permissão para iniciar os ensaios clínicos em fase 1 e 2. No comunicado, o diretor-geral do ICMR, Balram Bhargava, pedia aos hospitais que acelerassem todas as aprovações para testar a covaxin e estivessem prontos para inscrever os voluntários até hoje, dia 7.  

A Academia Indiana de Ciências chama a linha do tempo de “irracional e sem precedentes”. Vários cientistas ouvidos pela revista Science  concordam. “Os ensaios clínicos não podem ser apressados”, diz o virologista indiano e pesquisador de vacinas Thekkekara Jacob John. Ele aponta que as fases 1 e 2 levam  pelo menos cinco meses; já a fase 3, que envolve um número maior de participantes, adicionaria pelo menos outros seis. 

Com a chuva de críticas, o ICMR tentou se justificar. Em novo comunicado, disse que o dia 15 de agosto “não era um prazo”, mas sim uma tentativa de reduzir a “burocracia”. Alguns apontam que a escolha da data é provavelmente política: trata-se do Dia da Independência da Índia, quando o primeiro-ministro Narendra Modi tradicionalmente discursa sobre suas realizações.

Atualmente, a China é o país com maior número de potenciais vacinas (sete) em fase de ensaios clínicos. Os EUA têm três; o Reino Unido tem duas; e Austrália, Rússia, Coreia do Sul e Alemanha têm uma cada. 

QUEIMOU A LARGADA

O governo de São Paulo anunciou que vai começar no próximo dia 20 os testes com a Coronavac, a potencial vacina da empresa chinesa Sinovac. Isso porque a Anvisa já deu o aval. Mas, como já apontamos na news, só o aval da Anvisa não basta. A pesquisa ainda não passou pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) o que é obrigatório. O Estadão apurou que o Instituto Butantan, parceiro da farmacêutica para a realização dos ensaios, ainda nem submeteu a documentação para apreciação da Conep. 

UM GRAVE EFEITO COLATERAL

Por conta da interrupção de linhas de fornecimento na pandemia, 73 países estão em risco de ficar sem medicamentos antirretrovirais, de acordo com um relatório da OMS. Os estoques já estão criticamente baixos em 24 deles, onde 8,3 milhões de pessoas soropositivas dependem desse acesso para viver. 

Os números foram divulgados ontem no início de uma conferência internacional sobre Aids. Há quatro anos, as Nações Unidas estabeleceram metas para limitar as infecções por HIV e melhorar o tratamento até o fim deste ano. Em 2019, houve cerca de 1,7 milhão de novas infecções – uma queda de 23% desde 2010, mas muito abaixo da meta de  75%. “Nós já estávamos fora do caminho para as metas de 2020, mas a covid-19 está ameaçando empurrar completamente do caminho”, disse a diretora-executiva do Unaids, Winnie Byanyima. Embora o leste e o sul da África tenham visto reduções, os casos estão crescendo em outros lugares: cerca de 20% na América Latina, Oriente Médio e norte da África e 72% no leste da Europa e na Ásia central. Todo ano, cerca de 150 mil crianças são infectadas. Em 2019, só metade de todas crianças soropositvas receberam tratamento.

AMEAÇA CRESCENTE

Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) divulgado ontem alerta para algo que temos comentado com frequência aqui: a crescente possibilidade de novos surtos de doenças que saltam de animais para humanos. A culpa é do modelo agrícola intensivo, da exploração da vida selvagem, da crise climática e da demanda por proteína animal – fatores que, aliás, não são indissociáveis. “As pessoas olham para a pandemia de gripe de 1918 a 1919 e pensam que esses surtos ocorrem apenas uma vez por século. Mas isso não é mais verdade. Se não restabelecermos o equilíbrio entre o mundo natural e o humano, esses surtos se tornarão cada vez mais predominantes”, disse Maarten Kappelle, chefe de avaliações científicas do Pnuma.

Delia Grace, principal autora do relatório, disse ainda que a resposta à covid-19 está tratando a pandemia apenas como um desafio médico ou econômico, o que não adianta muito quando se pensa no futuro. “Suas origens estão no meio ambiente, sistemas alimentares e saúde animal. É como ter alguém doente e tratar apenas os sintomas e não a causa subjacente. Existem muitas outras doenças zoonóticas com potencial pandêmico”, disse. 

Segundo o texto, mesmo sem contar a covid-19 essas doenças zoonóticas já causam grandes estragos: nada menos que dois milhões de pessoas morrem todo ano por enfermidades transmitidas por animais, como ebola, febre do Nilo Ocidental, febre do Vale Rift e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS).

Aliás, houve muita repercussão ontem sobre os casos suspeitos de peste bubônica na Mongólia. Mas lembramos que essa é uma doença zoonótica mais comum do que se imagina e, hoje, é tratável. A OMS estima que entre mil e duas mil pessoas peguem a peste todos os anos. Ela é endêmica na República Democrática do Congo, no Peru e em Madagascar, onde, em 2017, foram infectadas quase 2.350 pessoas e mais de 200 morreram. Nos EUA, há em média sete registros anuais. Na China os casos têm se tornado mais raros nos últimos tempos, mas ainda acontecem. De 2009 a 2018, foram 26 infecções e 11 mortes. No ano passado houve dois casos confirmados no país. De todo modo, a Mongólia está tomando precauções. Um alerta de nível 3, que proíbe a caça e a ingestão de animais que possam causar a doença, foi lançado e vale até o fim do ano. 

SALLES NA MIRA

Uma ação de improbidade administrativa contra Ricardo Salles foi apresentada ontem na Justiça. Na peça, procuradores afirmam que a atuação do ministro se caracteriza pelo “esvaziamento” e a “desestruturação” das políticas ambientais, num movimento feito para “favorecer interesses que não têm qualquer relação” com o Ministério do Meio Ambiente. A iniciativa é de 12 procuradores do Distrito Federal e da Força-Tarefa da Amazônia do MPF e teve como gota d´água as declarações de Salles na reunião ministerial do dia 22 de abril, quando ele disse que dava para “ir passando a boiada” e desregulamentando tudo o que fosse possível durante a pandemia. Eles separam em quatro as táticas de desestruturação do ministro: normativa; fiscalizatória, orçamentária e que atinge órgãos de transparência e participação (como no episódio do esvaziamento de conselhos consultivos). E pedem que a Justiça afaste Salles antes de julgar o mérito da ação. 

No fim da noite, a assessoria de imprensa do Ministério rebateu os procuradores, dizendo que a ação “traz posições com evidente viés político-ideológico em clara tentativa de interferir em políticas públicas do governo federal”.  

AGENDA

Acontece hoje o lançamento do projeto Tecendo Redes de Experiências em Saúde e Agroecologia, que pretende ser uma espécie de mapa de iniciativas do gênero em toda a América Latina. Além de dar a dimensão sobre quantas e onde estão as experiências, a plataforma pretende consolidar um canal de comunicação com os envolvidos. A transmissão do evento começa daqui a pouco, às 10h.

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