Com jornadas exaustivas, indígenas trabalhavam na colheita de mandioca sem proteção ao novo coronavírus e habitavam edículas insalubres
por Nanda Barreto, em Cimi
Vinte e quatro indígenas do povo Guarani Kaiowá foram resgatados de trabalho análogo ao escravo no dia 24 de junho, em Itaquiraí, a 410 km de Campo Grande (MS). Eles estavam submetidos à colheita de mandioca com remuneração pífia e totalmente expostos ao novo coronavírus, sem nenhum equipamento de proteção individual. Além disso, ocupavam alojamentos em condições degradantes: aglomerados, dormindo no chão e com higiene precária.
De acordo com Antonio Maria Parron, auditor fiscal do Trabalho que coordenou a ação, mais oito indígenas estavam no local. “Eram duas mulheres, acompanhando os maridos, e seis crianças. A situação era deplorável”, lamenta Parron. A operação durou mais de 48 horas in loco. “Chegamos lá no fim da tarde do dia 23. Queríamos ver as instalações. Alguns estavam nos aguardando. Conversamos com eles, fotografamos e documentamos tudo. Ao amanhecer, partimos para a lavoura. No entanto, o acesso estava cadeado e já não havia ninguém por lá”.
O passo seguinte, conta Parron, foi estabelecer contato com o “gato” – termo usado para designar o atravessador que realiza a contratação ilegal da mão de obra. “Por intermédio do gato, nós chegamos ao proprietário das terras. Fizemos uma conversa por videoconferência com ele e seu advogado e definimos os termos administrativos para restituir os direitos trabalhistas negligenciados. Montamos um escritório para realizar os pagamentos e após cada atendimento o indígena já pegava o táxi pra casa com o dinheiro no bolso”.
“Eles usam a lógica de vender fiado e endividar o indígena. É uma forma de manter o trabalhador refém do empregador”
Direitos restituídos
Pelo acordo firmado com o fazendeiro, o prazo para acertar as contas devidas e evitar responsabilização judicial encerra nesta terça-feira (7). “Os indígenas já voltaram para suas aldeias de origem (Porto Lindo, Cerrito, Amambai e Limão Verde). Cada um deles recebeu pelos dias trabalhados, mais a rescisão de contrato e três guias para o seguro-desemprego. Também está previsto o pagamento de aviso prévio, FGTS e décimo terceiro proporcional”, explica Parron.
O valor que estava sendo pago aos indígenas é alarmante: R$ 18 por cada bag com 700 quilos de mandioca. As jornadas diárias de trabalho tinham duração de aproximadamente 12 horas. Parron explica que a negociação incluiu, ainda, a anistia de dívidas contraídas pelos indígenas com o aluguel dos alojamentos e com o comércio local. “Eles usam a lógica de vender fiado e endividar o indígena. O gato geralmente atua mancomunado com o dono do mercadinho. É uma forma de manter o trabalhador refém do empregador”.
Ação conjunta
Foi o Ministério Público do Trabalho (MPT) em Dourados que acionou a operação, a partir de denúncia. O procurador Jeferson Pereira pediu urgência no deslocamento dos auditores fiscais para configurar o flagrante. “Eu recebi a denúncia no dia 20 de junho. Conseguimos agir rápido porque nós temos aqui no Estado, faz alguns anos, uma comissão permanente de fiscalização e investigação das condições de trabalho com a participação do Coletivo dos Trabalhadores Indígenas (CTI)”.
O pedido de socorro chegou primeiro ao CTI, por mensagem de celular, direto dos indígenas que estavam na lavoura. Uma liderança – que prefere não se identificar – ressalta que os trabalhadores foram recrutados nas próprias aldeias. “Foram enganados com promessas de trabalho justo. Chegando lá, nada foi cumprido, a situação era bem diferente e eles ficaram com medo. Ainda bem que hoje em dia temos uma rede contatos de confiança e estamos mais ligados na tecnologia, com internet e celular”.
“Numa lógica perversa, compulsória e violenta, buscaram transformar os indígenas em mão de obra barata, para os novos centros urbanos e fazendeiros locais”
Lógica exploratória
Parron destaca que, infelizmente, contratações deste tipo não são incomuns no estado. “Aqui, quem está no poder é o agronegócio latifundiário. E o que vale é a lógica do capitalismo: o fazendeiro quer minimizar os custos e maximizar os lucros, o que resulta na exploração do trabalhador. Se você associar isso à dimensão territorial do MS e o fato de não haver concurso para os auditores fiscais desde 2010, você consegue ter uma ideia do desafio que enfrentamos”, argumenta.
O integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no MS, Matias Benno Rempel, reforça que o trabalho escravo indígena tem raízes no esbulho territorial e nas violações históricas sobre os direitos destes povos. “Com o avanço das fronteiras agrícolas sobre o território Guarani e Kaiowá, há uma transformação brutal do cenário: a natureza passou a ser subjugada pela lógica do capital. No Cone-Sul, onde se localiza o território original do povo Guarani e Kaiowá, hoje há uma extensão quase totalizante de gado e monoculturas. Isso aconteceu numa rapidez vertiginosa e trouxe consequências que perduram até hoje”.
Rempel explica que este avanço do agronegócio não teria sido tão exitoso sem o deliberado amparo do Estado brasileiro, que há 100 anos retirou os Guarani Kaiowá de seus territórios tradicionais, confinando-os em reservas diminutas e artificiais, sufocando seus valores, cultura e modos de vida. “Numa lógica bem perversa, compulsória e violenta, buscaram transformar os indígenas em mão de obra barata, para servir aos novos centros urbanos e fazendeiros locais”.
Por conta do racismo estrutural, sustenta o missionário, os indígenas sempre estiveram apartados da cidade. “Por outro lado, temos a resistência histórica indígena, que nunca deixou de tentar voltar pra casa, pros seus locais de origem, ou – como eles mesmos dizem – voltar para o tekoha, onde faz sentido ser quem eles são, um lugar onde toda a visão cosmológica e societária seja exercida. Isso é bem diferente da realidade que temos hoje. Para ter uma noção, na reserva de Dourados, você tem 18 mil indígenas vivendo em 3 mil hectares”.
Crime original
Expresso no Código Penal brasileiro, o trabalho escravo pode ser constatado a partir de qualquer um dos seguintes elementos: trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívida e condições degradantes. O termo “trabalho análogo ao escravo” deriva do fato de que, formalmente, o trabalho escravo foi abolido pela Lei Áurea em 13 de maio de 1888. No entanto, o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho mostra que mais de 54 mil pessoas já foram resgatadas desta situação em todo o território nacional desde 1995.
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Indígenas eram submetidos a condições degradantes. Foto: Secretaria do Trabalho/divulgação