Quilombolas se unem em campanha nacional na luta contra o genocídio


Sob ameaça de obras federais que avançam em seus territórios e do desamparo frente ao coronavírus, quilombolas reúnem 55 mil apoiadores

Na Carta Capital

“Nós, povo preto, e nossos irmãos indígenas sabemos que a narrativa do progresso – e do genocídio ‘necessário’ para deixar o progresso passar – é uma narrativa velha, tem pelo menos 520 anos, e nasceu na boca do primeiro colonizador. Nós não somos os inimigos. Pelo contrário”. O presente desabafo consta de uma campanha nacional criada por quilombolas de Itapecuru-Mirim e Miranda do Norte, no Maranhão, contra o genocídio de seu povo preto.  

A campanha, que também conta com o reforço de um abaixo-assinado online para reunir apoiadores e amplificar as vozes dos quilombolas, denuncia violações que já se repetiram em outros quilombos pelo país em nome do “progresso”. São obras que há anos avançam sobre esses territórios e afetam um povo que neles já vivia há séculos. 

manifesto está hospedado na plataforma Change.org, onde até agora ganhou o apoio de 55 mil pessoas. “Eles mataram árvores centenárias, destruíram igarapés e danificaram as nossas casas, mas nós e nossos ancestrais estamos e somos nessas terras há mais de 300 anos”, fala a pedagoga e ilustradora Zica Pires no vídeo da campanha. Ela se refere a supostas irregularidades ocorridas no processo de duplicação de uma rodovia federal, a BR 135.   

As obras da estrada, segundo os quilombolas locais, podem impactar diariamente 8 mil pessoas que vivem em 80 quilombos abrangidos por três municípios do Maranhão. O projeto vem se arrastando há pelo menos três anos e chegou a ser suspenso. Em abril, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), órgão do governo federal, tentou retomar a duplicação da BR, mas teve proposta de acordo negada pela Justiça. 

“Os processos de duplicação da rodovia, iniciados em 2017, estão permeados por irregularidades, que após denúncias realizadas por comunidades quilombolas afetadas, resultaram na suspensão das licenças ambientais e ensejaram diversos conflitos com as comunidades quilombolas na região”, aponta trecho do abaixo-assinado online. 

Apesar de as obras estarem paradas, os quilombolas temem que elas possam ser retomadas sem seguir recomendações importantes para a garantia de seus direitos, como estudos prévios de Impacto Ambiental e, sobretudo, do Componente Quilombola, e consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais, conforme orienta a Convenção de número 169 – sobre os Povos Indígenas e Tribais – da Organização Internacional do Trabalho (OIT).   

“Somente com um diálogo em conjunto com as famílias que podem vir a ser afetadas é possível pensar em medidas a serem tomadas para minimizar os impactos, se isso for possível, e compensar perdas. A construção de uma obra, como aponta acordos internacionais e a legislação nacional, não pode significar a eliminação do modo de vida de várias comunidades”, dizem no manifesto. “Para isso, inúmeras questões precisam ser elucidadas”, completam.  

Já o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes garante que as lideranças das comunidades envolvidas foram ouvidas e apoiaram com unanimidade a realização da obra. 

Riscos agravados na pandemia

Além da preocupação sobre a retomada do projeto sem estudos concretos e consultas a contento, os quilombolas receiam que ela aconteça em plena pandemia do novo coronavírus, que já matou 13 quilombolas no Maranhão. O Observatório da Covid-19 nos Quilombos mostra que no país a doença já foi confirmada em 2.590 casos e 128 mortes entre os quilombolas.

“No Brasil, a construção de rodovias e outras vias de transporte no contato com povos e comunidades tradicionais significou, em muitas situações, a exposição a doenças que dizimaram os grupos que viviam próximos aos canteiros de obras”, destaca o manifesto. No texto, os quilombolas lembram que, historicamente, eles já têm um acesso precário aos sistemas de saúde que, na presente situação, ainda estão sobrecarregados.  

Nesta terça-feira (7), o presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos uma lei que garante proteção povos indígenas, quilombolas e integrantes de comunidades tradicionais. O Plano Emergencial Para Enfrentamento à covid-19 passa a considerá-los como “grupos em situação de extrema vulnerabilidade” e de alto risco para emergências de saúde pública. 

O plano determina que o governo viabilize testes e medicamentos para reforçar o apoio aos povos, além de contratar profissionais da saúde e construir hospitais de campanha em cidades próximas a aldeias e comunidades. Bolsonaro vetou trechos sobre o acesso a água potável, materiais de higiene e desinfecção de aldeias e quilombos, entre outros itens. 

Recentemente, a CartaCapital também mostrou a situação de vulnerabilidade dos povos indígenas em meio à pandemia, como os Xavantes e de outras etnias do Mato Grosso que lançaram um abaixo-assinado para cobrar a realização de testes nas aldeias. 

Povo Preto Vive, Povo Preto Vivo

No vídeo da campanha contra o genocídio dos quilombolas, Zica Pires e outros moradores do quilombo Santa Rosa dos Pretos, que seriam afetados pelo projeto de duplicação da rodovia BR 135, chamam as pessoas a se juntarem à luta contra o genocídio de seu povo, levantando o grito “Povo Preto Vive, Povo Preto Vivo”. 

Os quilombolas enfatizam, ainda, o risco do desalojamento de milhares em uma área onde existem inúmeras árvores frutíferas que ajudam a garantir a segurança alimentar das comunidades, além de igarapés, casas, quintais, hortas, igrejas, terreiros de matriz africana e usos sociais. O medo da remoção forçada é uma ameaça a povos tradicionais e nativos.

“Agrava ainda mais a situação o fato dos processos de regularização fundiária no INCRA encontrarem-se paralisados e as famílias encontrarem-se em uma área historicamente reduzida. Muitas comunidades ocupam cerca de 10 a 20 por cento dos territórios reivindicados ou reconhecidos”, ressalta o manifesto dos quilombolas. Na petição, eles ainda citam que todo o processo que envolve a obra no Maranhão reforça a “prática histórica de invisibilizar o protagonismo e a autonomia dos povos tradicionais sobre seus corpos e territórios”.  

A Change.org procurou o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes para obter um retorno sobre as denúncias de violação nas obras da rodovia, bem como para saber se o órgão irá providenciar os estudos de impacto ambiental e a consulta prévia, solicitados pelos quilombolas no abaixo-assinado. O DNIT respondeu por meio de nota.  

O departamento informou que “não há que se falar em qualquer violação aos direitos dos povos quilombolas ou a seus territórios, os quais são comunidades tradicionais respeitadas e ouvidas em todos os processos de estudo de impacto ambiental desenvolvidos pela autarquia”. O órgão disse, ainda, que todas as lideranças das comunidades envolvidas foram ouvidas, anuindo expressamente com a realização da obra e pedindo urgência na duplicação do trecho que já está implantado, entendendo que trará benefícios às comunidades.

“O DNIT se comprometeu diante da Justiça Federal e das demais instituições envolvidas no processo de licenciamento a realizar todos os estudos necessários, ouvindo as comunidades e garantindo o cumprimento das condicionantes estabelecidas”, informa trecho da nota. O órgão ressaltou também que só tem garantido o recurso para duplicação do trecho de 18 quilômetros, e que esse montante, de aproximadamente R$ 80 milhões, está inscrito em restos a pagar de 2017, que só podem ser executados até o final deste ano.

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