Investigamos o lobby para liberar um agrotóxico proibido e letal

Pressão sobre a Anvisa pretende evitar proibição marcada para setembro

Por Ana Aranha, Hélen Freitas, Agência Pública/Repórter Brasil

Na reta final para a proibição de um dos agrotóxicos mais letais do mundo, o paraquate, a indústria aumentou para a potência máxima o lobby em sua defesa no Brasil. Ele passa a ser banido em setembro deste ano, segundo resolução da Anvisa publicada em 2017 e ancorada em evidências de que a exposição ao produto pode gerar mutações genéticas e a doença de Parkinson.

Agrotóxico largamente utilizado nas plantações de soja, basta um gole para tirar a vida. Foi criado pela Syngenta, empresa de origem suíça recentemente comprada por um grupo chinês, mas está banido em toda a União Europeia e na China, onde é produzido apenas para exportação.

A artilharia em defesa do produto é robusta. Desde sua proibição em 2017, foram mais de vinte reuniões na Anvisa com as maiores multinacionais do setor, como a Syngenta, e representantes dos maiores exportadores do Brasil, como a Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja). A agenda, compilada pela Repórter Brasil e Agência Pública, revela a coincidência entre as reuniões e algumas das principais decisões da agência reguladora. A frente financia pesquisas, ações na justiça, faz lobby nos ministérios e Congresso.

Neste momento, os atores estão alinhados em torno de um argumento central: a proibição deve ser adiada até que novos estudos fiquem prontos. Estudos financiados pela indústria que fabrica e lucra com o paraquate.

“Você já foi para o Mato Grosso? Lá é o Brasil que deu certo, é impressionante a pujança do agro brasileiro”, afirma Angelo Trapé, responsável pela pesquisa paga pela Aprosoja. Professor aposentado da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, ele é transparente em relação ao seu entusiasmo pela segurança do paraquate. “O contato do trabalhador que faz a pulverização é nulo. É tudo mecanizado, trator fechado, vedado”.

Os pesquisadores coletaram amostras de urina de trabalhadores antes, durante e três dias depois da aplicação do produto. “Vamos testar se o trabalhador da soja, aquele que usa tecnologia e proteção, tem algum resíduo de paraquate na urina. Se não tiver, como podemos explicar a decisão da Anvisa que vai proibir o produto?”, questiona o pesquisador.

Trapé garante que o interesse do financiador não influenciará nos resultados da pesquisa, que está sendo conduzida em laboratório da Unicamp com o aval do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade. Questionado pela reportagem, o comitê informou que “em relação ao conflito de interesse, foi apresentada uma declaração do patrocinador atestando não haver conflito de interesses na execução desta pesquisa”.

O paraquate é um herbicida altamente perigoso –  Alam Ramírez Zelaya

O comitê de ética da universidade, porém, não dá aval para a metodologia da pesquisa como um todo, ele avalia apenas o risco envolvido na participação dos trabalhadores, afirma João Ernesto de Carvalho, diretor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp, onde fica o laboratório em que a pesquisa está sendo realizada. “É complicado quando o financiador tem interesse no resultado, você precisa controlar as condições em que o estudo é realizado, não é o caso dessa pesquisa”, questiona.

O estudo também é criticado por testar apenas situações que seguem o protocolo ideal de segurança. “Não somos inocentes para acreditar que todos os produtores de soja têm tratores de cabine fechada, não é essa a realidade de todo o campo brasileiro”, afirma o procurador federal Marco Antônio Delfino de Almeida, que atua no Mato Grosso do Sul e teve acesso às informações preliminares sobre a pesquisa.

O procurador foi o responsável por detectar movimentação dentro da Anvisa em março deste ano, quando o pedido da indústria para adiar a proibição foi colocado em pauta em uma reunião da diretoria da agência.

Ele conseguiu uma liminar na justiça proibindo a Anvisa de fazer mudanças na data de proibição antes da conclusão das pesquisas. “Não podemos aceitar esse argumento do ‘aprova aí e depois eu apresento’. Não é assim que funciona”, afirma o procurador.

reunião aconteceu no dia 31 de março, mas apenas para discutir outros assuntos, já que a Anvisa estava impedida de deliberar sobre o banimento do paraquate.

Procurada pela reportagem e com dez dias para responder às questões enviadas, a Anvisa não retornou. Em nota técnica enviada à justiça sobre o caso, a agência argumentou que a sua resolução sobre a proibição deixara aberta a possibilidade de serem apresentadas novas evidências. E que a indústria manteve a agência sempre informada sobre os atrasos nas pesquisas. “Entende-se, pelo princípio da razoabilidade, que esta Agência deveria avaliar a concessão de prazo adicional solicitada”, conclui a nota (leia na íntegra).

Procurada pela reportagem, a Aprosoja, financiadora da pesquisa, afirmou que “não está se manifestando sobre o processo envolvendo a liberação do paraquate”.

Atraso providencial

Anvisa começou a reavaliação do paraquate em 2008. Em 2015 o órgão promoveu uma consulta pública sobre a proibição, quando recebeu milhares de contribuições. Por que, então, os estudos não foram feitos antes?

Assim como os produtores de soja, as fabricantes de agrotóxicos também estão financiando uma nova pesquisa sobre o paraquate e ela também está atrasada. O estudo vai testar a sua capacidade de provocar mutação nos genes de ratos de laboratório no Covance Laboratory, na Inglaterra. Os resultados só devem ficar prontos depois de setembro, data da proibição no Brasil.

Em ambos os casos, o atraso das pesquisas é usado como principal argumento para adiar a data do banimento.

“Sim, houve um atraso, mas é preciso entender a sazonalidade da cultura da soja”, afirma Elaine Lopes Silva, vice-coordenadora da chamada “Força-Tarefa Paraquate”, grupo formado por 12 empresas fabricantes de agrotóxicos, entre elas as multinacionais Syngenta e a Adama. É essa força-tarefa que está financiando a pesquisa na Inglaterra.

Segundo Silva, a demora se deve às dificuldades em definir o formato que o estudo deveria ser feito, achar um laboratório capaz e conciliar a agenda da pesquisa com o tempo da safra da soja. “No primeiro momento em que vimos que esse atraso aconteceria, nós comunicamos e a Anvisa se mostrou bastante aberta”, afirma. “Ela se comprometeu a levar isso [adiamento] para discussão”.

A reportagem teve acesso a quatro pedidos oficiais feitos pela indústria para adiar o prazo de proibição. O mais ousado deles foi feito ainda em 2019, quando a força-tarefa tentou ganhar mais dois anos de vendas no Brasil. Em vez de setembro de 2020, eles solicitaram empurrar o prazo da proibição para novembro de 2022.

Como o pedido não foi concedido, novas solicitações foram feitas para adiar para julho de 2021. Todas protocoladas na Anvisa antes de qualquer atraso provocado pela pandemia.

Indústria vai à Anvisa

Meses antes da reunião do dia 31 de março (quando a Anvisa pretendia deliberar sobre adiar a proibição, mas foi impedida pela justiça), estava intensa a agenda de encontros com representantes da indústria e outros atores do processo. A reportagem detectou seis reuniões na agenda oficial dos diretores da agência sanitária com o tema específico do paraquate só em outubro e novembro de 2019.

Apenas nestes dois meses, há quatro encontros na Anvisa com a Syngenta e sua força-tarefa, três deles para tratar do paraquate.

Procurada pela reportagem, a Syngenta enviou nota afirmando que “reconhece a autonomia e seriedade da Anvisa para regular o uso dos defensivos agrícolas”. E que a sua força-tarefa “valoriza e apoia os esforços da Anvisa em conduzir uma avaliação abrangente, que sempre deve considerar a importância agronômica e econômica do paraquate para a agricultura brasileira, sem prejuízo da segurança e saúde dos agricultores e consumidores” (leia aqui a nota na íntegra).

A sequência de reuniões em outubro e novembro culmina com um encontro entre o diretor Renato Porto, então responsável pelas decisões sobre a proibição do agrotóxico, com a bancada ruralista e representante da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no dia 5 de novembro. Na pauta, o paraquate.

O comitê de Ética da Unicamp deu seu aval à pesquisa pouco mais de um mês depois, no dia 11 de dezembro. Embora ele tenha autonomia da comissão nacional, a reportagem procurou a Conep para entender porque o seu coordenador geral se deslocou até a Anvisa para falar sobre o paraquate justamente neste período. A instituição afirmou apenas que “não aprovou protocolo de pesquisa envolvendo o paraquate” e não respondeu sobre o que foi discutido nas reuniões.

Segundo a nota técnica da Anvisa, a agência afirma que a “aprovação pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa” foi uma das dificuldades encontradas pela indústria que contribuíram para atrasar as pesquisas. “No caso da Conep, vale salientar que a própria Anvisa procurou auxiliar o processo, realizando interlocução com aquela Comissão, com vistas a esclarecer o propósito do estudo de biomonitoramento”, diz o documento, em referência direta à pesquisa conduzida na Unicamp.

Os encontros da indústria na agência voltaram a acontecer neste ano, com reuniões específicas sobre o paraquate com a Syngenta e a bancada ruralista em fevereiro e março. No final de março, a revisão do prazo de banimento entrou na pauta da reunião da diretoria colegiada da Anvisa, soando o alerta do Ministério Público Federal.

Depois que o MPF entrou na história, a agência teve de se manifestar dentro do processo. Os documentos enviados, aos quais a reportagem teve acesso, sugerem que a agência estava inclinada a ceder aos pedidos da indústria.

A Advocacia-Geral da União entrou no processo para defender o direito da Anvisa em debater o assunto. Mas acabou fazendo uma longa argumentação sobre o mérito, deixando claro uma posição favorável ao adiamento. O “efeito indesejado, gravíssimo e imediato” da proibição, lê-se na manifestação, “significará perda de competitividade internacional do produto brasileiro frente aos demais players do mercado de grãos” (leia o documento completo).

Lobby no Congresso

Depois que o MPF amarrou as mãos da Anvisa, o lobby parece ter tomado uma ação desesperada no Congresso. Na mesma semana no início de julho, um deputado e um senador da bancada ruralista entraram com projetos pedindo a total suspensão da resolução da Anvisa, o que teria o efeito de liberar o paraquate no país.

Por meio de Projetos de Decreto Legislativo com redação idêntica na Câmara e no Senado, afirmam que a decisão de banir o agrotóxico “fundamentou-se a partir de viés político e não de uma decisão científica”.

O avanço no Congresso também ocorreu em sintonia com a agenda de reuniões na Anvisa. Uma delas foi em 29 de junho, um dia antes do projeto ser protocolado na Câmara pelo deputado Luiz Nishimori (PL/PR). Uma semana depois, foi a vez do senador Luis Carlos Heinze (PP/RS) propor um projeto de igual teor.

Em 8 de julho, mesmo dia em que representante da bancada ruralista se reunia com a Anvisa para tratar da “modernização do processo de reavaliação dos pesticidas pela Anvisa”, um grupo de deputados da bancada entrou com requerimento de urgência para votar o projeto de Nishimori, argumentando pelo “risco de desabastecimento e de graves impactos na economia do País”.

Economia X vidas

Assim como ocorre com a pandemia, o debate sobre agrotóxicos cai na “polarização” vida versus economia.

Segundo um experiente lobista do agronegócio, o seguinte argumento será martelado em defesa do paraquate nos próximos meses: “Num momento em que a economia está fragilizada, será uma irresponsabilidade tirar uma tecnologia fundamental para a produtividade da agricultura brasileira”. Alguns dos números divulgados pela bancada ruralista são aterrorizadores. Segundo estudos apresentados por eles, a proibição do paraquate eliminaria dois milhões de empregos, reduzindo R$ 25 bilhões em geração de renda e R$ 4,7 bilhões em arrecadação de impostos.

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Esses números estão superestimados na opinião do agrônomo e professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV) Antonio Alberto da Silva. Segundo ele, já existem agrotóxicos para substituir o paraquate sem inviabilizar a produção. “É um produto importante, mas não vai causar prejuízo tão grande. Há alternativas”.

Ele argumenta que há uma lista de opções com preços distintos e eficiência um pouco inferior. O principal é o Diquat, que pode ser encontrado no Rio Grande do Sul a R$ 32 por hectare, mesmo preço do paraquate no estado.

A informação é contestada pela vice-presidente da “força-tarefa” em defesa do paraquate. Segundo Elaine Silva, o produto só pode ser substituído por uma combinação de até três agrotóxicos diferentes, o que encarece o tratamento. Ela argumenta ainda que a nova mistura de substâncias pode ser pior para o trabalhador, pois ainda não se conhece os seus efeitos.

O maior diferencial do paraquate é combater plantas daninhas que já adquiriram resistência a outros agrotóxicos. Além de seu uso no processo chamado de “dessecagem”, quando o agrotóxico é usado para antecipar a colheita da soja e padronizar a maturação dos grãos.

Este é uso mais comum e o que oferece maior risco para a contaminação humana. Se não for respeitado o momento certo da aplicação, assim como o intervalo entre a aplicação e a colheita, o agrotóxico fica na vagem e pode deixar resíduos até no grão – que será consumido por homens e animais.

“Seguindo todas as recomendações técnicas, o produto não chega no grão, mas ele fica na vagem”, afirma o agrônomo Silva da UFV. “Durante a colheita, a poeira que sai libera o paraquate”.

Os especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que os protocolos de segurança para uso da substância são complexos e de difícil execução. As roupas de proteção, extremamente quentes, são um dos exemplos de como algumas medidas são impraticáveis no centro-oeste do Brasil, afirma o procurador Leomar Daroncho, do Ministério Público do Trabalho em Goiás.

O paraquate tem a mais alta classificação toxicológica no país: extremamente tóxico. A ingestão ou inalação causa necrose nos rins e em artéria do pulmão e danos às células do fígado. Durante o debate para a sua proibição na Europa, o agrotóxico foi investigado durante 9 anos pelo Centro de Controle de Intoxicações em Marselha, na França. Os estudos investigaram 15 mortes, sendo que 10 ocorreram nas primeiras 48 horas após a ingestão. A rapidez se deve à falência de múltiplos órgãos, entre outras complicações.

Mas os efeitos da intoxicação, na maioria dos casos, não são imediatos. São doenças que só vão se manifestar ao longo do tempo. Assim, a maioria dos trabalhadores não associa as consequências da contaminação ao produto, alerta o procurador do trabalho Daroncho. Por isso, ele diz, quase não existem casos de condenação de empresas por intoxicação.

Estoque para uso ilegal?

Mesmo com a chegada da proibição do agrotóxico para setembro, os produtores rurais continuaram comprando o paraquate para uso na safra do ano que vem. Essa informação está na manifestação da AGU na ação movida pelo MPF. A advocacia afirma que os agricultores anteciparam as compras do paraquate devido à alta do dólar. Assim, a AGU argumenta pelo adiamento da proibição para evitar prejuízo: “os agricultores que já estão com produtos a base de paraquate nas fazendas para uso na próxima safra deverão trocar os produtos ou mesmo poderão perder os herbicidas, aumentando o custo de produção”.

O argumento soou estranho o agrônomo e professor da UFV. “Fizeram uma compra muito antecipada de um produto que há três anos já sabiam que ia sair do mercado a partir de setembro”, afirma Silva.

Sinal preocupante de que os produtores não pretendem parar de utilizá-lo mesmo depois da proibição é o aumento no volume de importação. Em 2017, quando a Anvisa decidiu pela proibição, eram 35 mil toneladas de paraquate entrando no Brasil. Depois da decisão, o volume de importação subiu para 50 mil em 2018 e 65 mil em 2019. Os dados são do Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços no portal Comex Stat. O aumento segue a tendência do mercado no Brasil.

Se o lobby vai surtir efeito e conseguir adiar ou até derrubar a proibição, a vice-coordenadora da “Força-Tarefa Paraquate” diz ainda não ter resposta. E brinca: “essa é a pergunta de um bilhão de dólares”.

Imagem destacada: Pedro Biondi/Repórter Brasil

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