Pazuello sinaliza saída; crise entre poderes continua

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

A CRISE CONTINUA

Pelo visto, a crítica de Gilmar Mendes à presença de militares no Ministério da Saúde em plena pandemia terá o condão de forçar aquilo que entidades e especialistas não conseguiram: a saída do general. Segundo a Folha, Eduardo Pazuello teria apontado ao Planalto dois momentos ideais para a passagem do bastão a um ministro titular. Isso poderia acontecer já no final do mês, quando a pasta prevê que os casos de covid-19 na porção que vai do centro ao norte do país comecem a declinar. Depois, haveria outra janela entre agosto e setembro, período em que se espera que os números melhorem na porção centro-sul.

As datas se casam com a apuração de O Globo, que revela que o prazo dado pela ala militar para a permanência de Pazuello como ministro interino é agosto. Se quiser continuar depois disso, ele teria de ir para a reserva – o que não faria por ainda ser general três estrelas. Pazuello também parece inclinado a refutar o arranjo no qual voltaria a ocupar o segundo posto mais importante no Ministério, a Secretaria Executiva. Quem defende essa opção calcula que ele poderia ficar afastado do Exército dois anos e, ainda sim, voltar para a ativa e se aposentar como  general quatro estrelas.  “Ele tem dito a interlocutores, porém, que essa opção não está na mesa, já que a ‘missão’ que lhe foi dada era temporária”, relata a repórter Natália Portinari.

Segundo ela, o Centrão engrossou o cordão dos insatisfeitos com Pazuello. Lembremos que o bloco de partidos de aluguel defendeu ativamente a permanência do general em um “mandato-tampão” – e quem serviu de porta-voz dessa posição não foi qualquer um, mas o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), ex-ministro da Saúde. A mudança pode indicar uma nova investida do Centrão sobre o Ministério. Os líderes partidários estariam usando como justificativa para pressionar pela saída a ‘falta de experiência’ do general ‘em lidar com políticos’ – coisa que os quadros do Centrão têm de sobra.

Saindo da Esplanada e indo para a Praça dos Três Poderes, o embate entre os militares e o ministro do Supremo continua. Ontem logo de manhã, Gilmar Mendes divulgou uma nota em que manteve sua crítica de que o Exército se associa a um genocídio, mas evitou a palavra. No texto, afirma que não atingiu a honra das Forças Armadas. “Apenas refutei e novamente refuto a decisão de se recrutarem militares para a formulação e execução de uma política de saúde que não tem se mostrado eficaz para evitar a morte de milhares de brasileiros”, escreveu. Ainda de acordo com ele, ‘nenhum analista atento da situação atual do Brasil teria como deixar de se preocupar com o rumo das políticas públicas de saúde’ do país. “Em um contexto como esse, a substituição de técnicos por militares nos postos-chave do Ministério da Saúde deixa de ser um apelo à excepcionalidade e extrapola a missão institucional das Forças Armadas”, afirmou. 

Já de tarde, o ministro do STF voltou a comentar o caso, dando mais ênfase à estratégia do presidente Jair Bolsonaro de se descolar da pandemia. “O Supremo na verdade não disse que os estados são responsáveis pela Saúde. O Supremo disse apenas que isso era uma competência compartilhada, como está no texto constitucional. Mas o presidente esquece esta parte e diz sempre que a responsabilidade seria do Supremo e a responsabilidade seria dos estados. Então eu disse: se de fato se quer mostrar isso do ponto de vista político, isso é um problema e isso acaba sendo um ônus para as Forças Armadas, para o Exército, porque eles estão lá inclusive na condição de oficiais da ativa”, observou, arrematando: “Na verdade, o meu discurso é de defesa da institucionalidade das Forças Armadas, do seu papel, que eles acabem não se envolvendo. Que eles não se deixem usar nesse contexto.”

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que participou da transmissão ao vivo da IstoÉ na qual Gilmar Mendes deu a declaração do genocídio, saiu em sua defesa. “Muitos militares também estão desconfortáveis com essa ocupação. Eles sabem que o fardo está pesado”, disse ao colunista Bernardo Mello Franco. “Numa crise, sempre aparece gente que diz o que o chefe quer ouvir. Mas esta é a maior crise de saúde que o Brasil já enfrentou”, continuou, para concluir: “O Gilmar colocou o dedo na ferida. É por isso que está doendo”.

Cumprindo o anunciado, o Ministério da Defesa protocolou a representação contra Mendes na Procuradoria-Geral da República (PGR) ontem de tarde. E a Lei de Segurança Nacional, sancionada durante a ditadura e que lista crimes que afetam ‘a ordem política e social’, voltou a aparecer. Segundo o Estadão, a pasta sustenta que o ministro do Supremo pode ser enquadrado no artigo 23, que prevê como crime a prática de incitar ‘à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis’. A pena é de um a quatro anos de prisão. Cabe à PGR seguir com o caso ou arquivá-lo.

Acusado nos bastidores de ter pegado leve na réplica à Mendes, ontem o vice-presidente Hamilton Mourão subiu o tom. “Vi o cidadão Gilmar Mendes fazendo uma crítica totalmente fora de propósito, ao comparar o que ocorre no Brasil com um genocídio. Genocídio foi cometido por Stalin contra as minorias russas, foi cometido por Hitler contra os judeus, foi cometido na África, em Ruanda, e outros casos. Saddam Hussein contra os curdos”, comparou em entrevista à CNN Brasil. No início da tarde, Mourão disse a repórteres que a nota divulgada pelo ministro do STF não era suficiente. O vice defende que Gilmar Mendes peça desculpas se tiver “grandeza moral”. 

Em editorial, O Globo avalia que “os militares do governo não entenderam” que Mendes criticou o presidente da República. “Afinal, ele é o responsável por colocar um general na pasta da Saúde, na maior pandemia em cem anos.” Avançando um pouco mais na reflexão, o colunista da Folha, Bruno Boghossian, analisa que “a resposta dos militares e a decisão de acionar a Procuradoria-Geral da República contra o ministro do Supremo amarram ainda mais esse grupo aos resultados e fracassos do governo”.

Já Elio Gaspari vai além: para o jornalista especializado na ditadura militar, a representação do  Ministério da Defesa contra Gilmar Mendes é uma reação semelhante a que deu margem para a edição do Ato Institucional nº 5: “Uma conspiração palaciana manipulou um discurso (irrelevante) do deputado Márcio Moreira Alves para que o governo pedisse licença à Câmara para processá-lo. No dia 12 de dezembro de 1968 o plenário negou o pedido e no dia seguinte o marechal Costa e Silva baixou o ato. Foram dez anos de ditadura escancarada, torturas e extermínio.” Para ele, o recesso do Judiciário – que dura mais duas semanas – permite “que se jogue água nas cabeças quentes”. “Mesmo assim, a fala de Gilmar pode ser usada para alimentar uma crise. Para isso os golpistas precisam dizer que o que eles querem é uma ditadura.”

E quem gosta de crise é a ala ideológica do governo, que parece enxergar no episódio uma oportunidade para voltar ao protagonismo. Ontem, Filipe Martins, assessor da Presidência e um dos membros mais ilustres desse núcleo, caracterizou as críticas aos militares como parte do projeto do establishment político e afirmou ser necessário “resgatar e proteger” a ala ideológica. “Trata-se de um apelo para que Bolsonaro retome sua guerra institucional. É, ainda, uma reação aos generais que afiançaram uma aproximação com os demais Poderes e convenceram o presidente a camuflar seu radicalismo com um discurso aparentemente mais moderado”, analisa Bruno Boghossian.

500 MORTES ENTRE INDÍGENAS

Ontem, as mortes de indígenas na pandemia ultrapassaram a marca de 500. O acompanhamento tem sido feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) que tem coletado os dados junto a junto a organizações, distritos especiais indígenas e secretarias de saúde. O levantamento revela que o Amazonas é o estado com maior número de óbitos (178) seguido por Pará (83) e Roraima (47). Segundo a Apib, 14.793 índios de 131 diferentes povos foram infectados no Brasil. Também ontem, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) destacou que as comunidades indígenas ao longo da bacia amazônica estão vendo taxas de incidência mais de cinco vezes acima da média nacional.

O marco ganha um novo simbolismo no contexto da crítica de que o que vemos no país é um ‘genocídio’. O projeto de lei que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19, e é voltado para a proteção das populações tradicionais, foi o PL mais vetado da história. Na segunda-feira, diversas frentes parlamentares, bancadas partidárias e entidades assinaram uma carta aberta aos presidentes do Senado e da Câmara. Pedem a derrubada dos 22 vetos. 

DA SAÚDE AO GARIMPO

O Ministério Público que atua no Tribunal de Contas da União (TCU) pediu ontem a abertura mais uma investigação. Desta vez, a suspeita recai sobre contratos do Ministério da Saúde com a Icaraí Turismo Táxi Aéreo para ofertar voos a índios e equipes de saúde. Um dos sócios da empresa, Rodrigo Martins de Mello, é suspeito de participar do garimpo que acontece na terra indígena ianomâmi. Ele teria cedido aeronaves para facilitação da atividade ilegal, segundo apurou a Polícia Federal (PF) em uma operação deflagrada em 2018. Na ocasião, a Justiça decretou a busca e apreensão de um avião registrado no nome do empresário.

Além disso, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) suspendeu em 17 de junho a permissão para que a empresa operasse voos depois de constatar que a Icaraí “não demonstrou possuir controle sobre a qualificação de seus tripulantes”. Ontem, a Anac anunciou que vai apurar se a companhia seguiu operando nos distritos sanitários especiais indígenas mesmo assim. 

A empresa já recebeu R$ 24,3 milhões do Ministério – sendo R$ 17 milhões pagos no governo Bolsonaro. O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado quer que o TCU verifique se a empresa tem “efetiva qualificação técnica” para o transporte aéreo em terras indígenas e requisite cópia das investigações da PF para apurar se a Icaraí tem ligação com o garimpo.

A reportagem de O Globo mostra que essa não é a única empresa que tem contratos em vigência com o Ministério da Saúde e é suspeita de participar do garimpo ilegal em terras indígenas. A Voare Táxi Aéreo também está no inquérito da PF. Só em contratos com a pasta, ganhou R$ 197 milhões entre 2014 e julho de 2020. A empresa também recebeu recursos de outros órgãos federais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai).

MAIS DEFESA QUE CONTROLE

Ontem, o ministro da Controladoria Geral da União (CGU) mostrou que é bolsonarista de carteirinha. Em audiência feita pela comissão mista do Congresso que acompanha as ações do Executivo na pandemia,  Wagner Rosário afirmou que tomará cloroquina se for infectado pelo novo coronavírus. E, pior: elogiou como “acertadíssima” a decisão, capitaneada por Jair Bolsonaro, de aumentar a produção da substância no Laboratório do Exército. “Eu já sei o que eu faria: eu vou tomar o remédio, quero que o remédio esteja lá, acho que o governo fez corretamente”, afirmou. 

Ele também defendeu o governo quando perguntado sobre as fraudes envolvendo o pagamento do auxílio emergencial. “Nós tínhamos, entre a data da aprovação do PL no Congresso e o primeiro pagamento, sete dias somente. Não existia tempo hábil para cruzamento de informações”, disse. A CGU identificou 300 mil servidores públicos que receberam indevidamente os R$ 600. 

Para o titular da CGU – criada com a missão de aumentar a transparência no governo –, o escândalo de ocultação de números de casos e mortes pelo Ministério da Saúde que repercutiu no mundo inteiro não mereceu nenhuma crítica mais consistente. “A grande falha do governo foi a não informação prévia à sociedade de que o site ficaria com algum problema ou sem todas as informações durante dois ou três dias, que foi o que aconteceu”, disse. Segundo ele, R$ 6,4 bilhões em contratos feitos pela pasta durante a pandemia já foram analisados pela CGU; e R$ 2 bilhões foram revogados por fragilidades. 

CORRIDA PELA MARCA

O governo federal quer correr para lançar o Renda Brasil daqui a um mês, conta o Valor. Jair Bolsonaro pretende anunciar o novo programa antes do fim do auxílio emergencial e antes que o Congresso aprove, de sua parte, uma proposta semelhante. A ideia, sabemos, é garantir que o presidente não perca sua recém-conquistada popularidade entre parte da população mais pobre. Além dos beneficiários do Bolsa Família, devem receber o novo benefício trabalhadores informais e desempregados. “Com o Renda Brasil, Bolsonaro vai ter as condições de fato de disputar as eleições com chance de ser o primeiro colocado em 2022”, espera o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE). 

Quase não há detalhes sobre o Renda Brasil. Mas o modelo prevê a fusão ou extinção de outros benefícios, como o seguro defeso e o abono salarial, e deve encontrar resistência no Congresso. Nas palavras do senador Humberto Costa (PT-PE), a proposta do governo parece uma “repartição dos pobres com os pobres”. Segundo ele, o Partido dos Trabalhadores também está preparando um programa de renda mínima para ser apresentado no fim do mês. 

PRORROGAÇÕES

Há grande pressão das empresas para que o Congresso derrube o veto de Jair Bolsonaro à desoneração das folhas de pagamento. Os parlamentares haviam aprovado que essa desoneração, que acaba em dezembro, se estendesse por mais um ano. A medida permite que empresas de determinados segmentos paguem a contribuição previdenciária dos funcionários com base num percentual (entre 1% e 20%) do faturamento, e não os 20% sobre salários.  

Bolsonaro argumenta que o impacto fiscal (de R$ 10,2 bilhões) não está previsto no ano que vem. Desde então, empresários vêm afirmando que, mantido o veto, haverá demissões em massa. Dentro do Congresso, mesmo a bancada ruralista – um dos pilares de sustentação do governo – se mobiliza contra o fim da desoneração. Para evitar a derrubada, o governo quer negociar, trazendo à baila a incorporação de parte da reforma tributária de Paulo Guedes. “O caminho sinalizado pela liderança do governo e pela equipe econômica é oferecer uma medida mais ampla de corte de impostos sobre a folha, sem distinção de segmentos da economia”, explica a Folha.  

Enquanto isso, em decreto publicado ontem, Jair Bolsonaro prorrogou os prazos de redução de salários e jornadas e da suspensão dos contratos de trabalho durante a pandemia. A medida já estava prevista em uma lei sancionada na semana passada, mas precisava de regulamentação. Agora, a redução de jornada e salário poderá ser estendida por mais um mês e a suspensão, por outros dois meses. Lembrando: os salários podem ser reduzidos em 25%, 50% ou 70% (e, na suspensão, 100%), e o governo paga parte da renda perdida até o limite do seguro-desemprego, que é R$ 1.813.

PARA OS PROFISSIONAIS

E, contrariando o Ministério da Economia – que prevê impacto de R$ 1,7 bilhão a R$ 3,7 bilhões –, a Câmara  aprovou ontem a indenização de R$ 50 mil a profissionais de saúde incapacitados pela covid-19. O projeto foi à sanção.

TRANSMISSÃO NO ÚTERO

Pela primeira vez, pesquisadores registraram um caso de transmissão de coronavírus de mãe para filho. Na França, uma mulher com oito meses de gestação chegou ao hospital com sintomas de covid-19 e testou positivo. Os médicos colheram amostras do líquido amniótico e também detectaram a presença do vírus; quando o bebê nasceu, teve resultado positivo também. Ele teve inflamações no cérebro, com alterações no tônus muscular e na motricidade, mas não precisou de nenhum tratamento específico e se recuperou em alguns dias. Desde o início da pandemia, houve casos isolados de recém-nascidos diagnosticados com o novo coronavírus, mas sem que a via de transmissão estivesse bem estabelecida. Recentemente, foi comprovada a possibilidade da transmissão via útero, com detecção do SARS-CoV-2 na placenta, por exemplo – porém, ainda sem identificá-lo nos bebês. Agora, os médicos conseguiram testar a placenta, o líquido amniótico, o sangue do cordão umbilical e o sangue da mãe e do bebê.

E por falar em gravidez, uma pesquisa brasileira chegou a um dado impressionante: de cada dez grávidas e puérperas que morreram até agora de coronavírus em todo o mundo, oito eram brasileiras. “Até o dia 18 de junho tinham sido notificadas 160 mortes maternas em todo o mundo e o Brasil era responsável por 124 dessas mortes. São 188 territórios afetados pelo coronavírus e o Brasil tem mais mortes maternas que a soma de todos esses países”, constata a obstetra Melania Amorim, no Estadão.

MAIS QUE RESPIRATÓRIA

A essa altura, já está evidente que a covid-19 é muito mais do que uma doença respiratória. Autópsias realizadas em 70 doentes tratados no Hospital das Clínicas da USP nos últimos quatro meses mostram mortes por alterações cardiovasculares, e não por insuficiência pulmonar. Entre eles, duas crianças com idades de oito e 11 anos. “Eles tinham pulmões razoavelmente preservados, mas desenvolveram uma insuficiência cardíaca muito intensa que levou ao óbito”, diz Paulo Saldiva, do HC. “Já sabemos como o vírus se distribui por órgãos como o cérebro e os rins, além das glândulas salivares e gônadas, por exemplo, e que ele chega ao sistema nervoso central por meio do nervo olfatório. Queremos saber, agora, como o vírus causa trombos na micro e macrocirculação de forma muito mais exuberante que a do vírus da influenza, por exemplo”, completa.

COMO ESTÁ O BRASIL

Foram registradas 1.341 novas mortes e 43.245 novos casos ontem. Com isso, o país chega a 74.262 óbitos e 1.931.204 casos conhecidos de covid-19.

A média de óbitos dos últimos sete dias foi 1.056, e é o maior número desde o início da pandemia. Mas, olhando o gráfico da evolução, dá para ver claramente a estabilidade desse altíssimo número de mortes desde o início de junho, há mais de um mês. O ‘platô’, nesse caso, é uma péssima notícia. Afinal, se continuarmos nele, serão no mínimo mais 30 mil óbitos ao longo dos próximos 30 dias. Não há, até o momento, nenhuma evidência de que o país ou qualquer uma de suas cidades tenha atingido a imunidade coletiva, lembrou ontem Marcos Espinal, diretor do Departamento de Doenças Transmissíveis da Opas. 

O vírus continua se movendo pelo país. Centro-Oeste e Sul são as regiões que registraram maior aumento percentual de mortes. No Sul, o total na última semana dobrou na comparação com os 14 dias anteriores. Já no Centro-Oeste, a alta foi de 43%. Mas ainda é no Sudeste que se concentram os maiores números absolutos: 51% das mortes registradas ontem aconteceram na região. E São Paulo segue puxando a alta, com 417 óbitos ontem, ou 31% do total.  Foi o segundo pior registro diário no estado desde o começo da pandemia. Já seu número de casos registrados (12 mil) foi o terceiro pior desde março. A doença já chegou a 633 das 645 cidades paulistas; em 412 delas há ao menos uma morte; mas o governo estadual relaxou as medidas de isolamento para 83% da população.

As internações por SRAG cresceram nada menos que 930% em Minas Gerais entre janeiro e junho, comparando com o mesmo período do ano passado. Até maio, o estado se gabava de ter menos de sete mil casos e 250 mortes. Era subnotificação, em grande parte: entre junho e julho, as cifras subiram para 78.643 infectados e 1.688 óbitos. Mais de metade do total de casos foram confirmados nas últimas duas semanas. A presidenta do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Carla Anunciatta, defende medidas mais contundentes de isolamento social, como o lockdown. Esse apoio tem custado caro: ela tem sido ameaçada de morte nas redes sociais. 

NO TRANSPORTE

Na capital de São Paulo, os bairros que apresentam o maior número de internações por covid-19 são os mesmos cujos moradores não puderam ficar em casa na quarentena – e uma pesquisa liderada por Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, mostra o papel do transporte público nisso. Informações do DataSUS sobre as áreas com mais internações foram cruzadas com dados públicos da companhia de transportes São Paulo sobre ônibus no mesmo período. Além disso, foram usados dados da pesquisa Origem Destino, sobre o itinerário das viagens de trabalho. O resultado mostra grande aumento da movimentação de passageiros nas linhas de determinados bairros e na região central, principal destino de muitos trabalhadores. “Aparece muito claramente uma divisão entre aqueles que ficaram em isolamento social e teletrabalho e os que precisaram sair para trabalhar para que outros pudessem ficar em isolamento”, diz a pesquisadora.

Mesmo que não dê para saber o percentual dos contágios que aconteceram no transporte, em casa ou no trabalho, é razoável supor  que boa parte ocorra nos ônibus lotados. Com a abertura do comércio, vai haver ainda mais gente circulando, e Rolnik ressalta que os trabalhadores desses serviços são da mesma base social dos que já estavam se contaminando mais antes. “Essas linhas com maior concentração de pessoas, seria importante fazer adaptações para proteger os passageiros. Não falo apenas de equipamentos de proteção individual como máscaras, do uso de álcool gel e da necessidade de aumentar o número de ônibus para atender essas linhas específicas. Seria importante também aumentar o espaço dos terminais e pontos de ônibus com tendas, demarcações e espaços provisórios para as pessoas poderem manter o distanciamento necessário”, diz. 

Mas em vez de oferecer proteção, em geral governos têm apenas desincentivado a população a usar transportes coletivos. Caso não haja uma vacina disponível no curto ou médio prazo, isso deve gerar vários efeitos nocivos nas cidades: aumento da poluição e nos congestionamentos, crescimento dos acidentes de trânsito e uma segregação ainda maior entre pobres e ricos. “O conflito entre os interesses públicos – qualidade, conforto, oferta ampla – e aqueles ligados à forma de financiamento (e ao lucro das empresas) se explicitou [na pandemia]. Gestores públicos e empresários do setor têm denunciado desequilíbrio econômico financeiro com a proibição de aglomerações nos transportes, o que deixa nítido que os sistemas de transporte coletivo urbano no Brasil contam com a lotação para garantir seus ganhos financeiros e sua lucratividade”‘, escrevem Clarissa Linke e Roberto Andrés, na Piauí. No artigo, eles defendem que o “Brasil precisa de um SUS no transporte público”: um sistema nacional, integrado e público, baseado na ideia de que o transporte é um serviço público essencial.

PODE LEVAR ANOS

A diretora da Organização Pan-Americana da Saúde, Carissa Etienne, afirmou ontem que uma vacina pode estar pronta nos próximos meses, mas, dependendo do cenário, pode levar anos para que pessoas nas “comunidades vulneráveis” sejam imunizadas. Reforçou que, atuando como bloco, os países das Américas podem se beneficiar dos processos de compra e distribuição das vacinas. A fala vem num momento delicado para a organização, diante da ameaça de saída dos Estados Unidos e do Brasil. Já falamos aqui como, para o Brasil, isso seria também um tiro no pé. O mecanismo da Opas para compra e entrega de vacinas permite que mais de 40 países comprem esses imunizantes a preços mais baixos. Nos últimos 35 anos, isso tem sido vital para combater doenças como poliomielite, sarampo, caxumba e rubéola. 

OS RESULTADOS DA MODERNA

A empresa Moderna publicou ontem, no New England Journal of Medicine, os resultados dos ensaios clínicos de fase 1 com sua potencial vacina contra covid-19. Nos 45 voluntários, de 18 a 55 anos, ela foi considerada segura, provocou efeitos colaterais leves e gerou resposta imunológica em todos os envolvidos. 

Mas ainda falta muito para saber o quanto a vacina pode ser eficaz. É que o objetivo principal da fase 1, feita com poucos pacientes, é demonstrar sua segurança. A resposta imunológica observada é um resultado secundário e pouco significativo quando há um número tão reduzido de participantes. Além disso, ainda existe uma grande questão sobre se a produção de anticorpos realmente garante proteção e, em caso positivo, por quanto tempo. “Não sabemos de quantos anticorpos precisamos para ser protegidos, portanto não podemos dizer que todos os participantes ‘atingiram um nível de proteção’, disse ao Stat Kathryn Edwards, diretora do Programa de Pesquisa em Vacinas do Instituto Vanderbilt.

A fase 2, com algumas centenas de voluntários, está em curso. E a fase 3, que vai envolver 30 mil pessoas, está marcada para começar no próximo dia 27. Aí, o estudo vai precisar mostrar que aqueles que foram vacinados tiveram uma probabilidade significativamente menor de contrair o vírus do que os que receberam placebo. 

A Moderna foi a primeira a começar a testar a vacina em humanos, ainda em março. Está recebendo cerca de meio bilhão de dólares do governo dos EUA. Ontem, as ações da empresa saltaram mais de 15%. 

FUGINDO DA OBRIGAÇÃO

A ANS conseguiu na Justiça suspender os efeitos de uma medida cautelar que obrigava planos de saúde a cobrir o teste sorológico para detectar a infecção pelo novo coronavírus. A decisão ainda precisa ser levada para uma discussão da Diretoria Colegiada da agência. Até lá, ainda vale a obrigação.

Imagem: Kleber Sales

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