por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
A REFORMA PATROCINADA POR MAIA
Mudar o marco legal do SUS. Junto com as reformas tributária e administrativa, essa será a prioridade de Rodrigo Maia (DEM-RJ) nos últimos meses à frente da Presidência da Câmara, cargo que deixa em fevereiro do ano que vem. A inesperada notícia foi divulgada na sexta-feira, primeiro pela jornalista Andréia Sadi, depois pelo próprio deputado em uma entrevista à rádio Eldorado. A estratégia parece ser correr com a proposta sem, no entanto, dar muitos detalhes sobre o teor.
Maia disse que tem conversado nas últimas semanas com “um grupo de pessoas” – que preferiu não citar ‘por não ter autorização’ (!) –, que fez um raio X do SUS. De acordo com ele, esse “longo trabalho” lhe foi apresentado na segunda-feira passada em uma “longa reunião”. O diagnóstico seria focado nas ineficiências, na burocracia, na falta de interatividade (com quem?) e de modernização do Sistema. Segundo o presidente da Câmara, o objetivo é ter um SUS “moderno, de melhor qualidade” e resolver o que ele chama de “aplicação de recursos distorcida” na saúde. Maia não cita a falta de financiamento do SUS como entrave.
Caberá à deputada federal Margarete Coelho (PP-PI) a tarefa de preparar um texto junto com esse grupo anônimo que já vem trabalhando “há um tempo sobre o tema”, nas palavras de Maia. A tarefa poderia ter ido parar em melhores mãos: a parlamentar está no seu primeiro mandato e sequer participa da comissão de seguridade social e família – onde o SUS é debatido. Além disso, ela assina junto com outros colegas um projeto de lei que define atividades de depilador e maquiador como essenciais durante a pandemia.
As primeiras reuniões para a redação aconteceriam durante o final de semana. Além do grupo misterioso e Margareth Coelho, apenas outros ‘dois parlamentares’ – também não nomeados – participarão desta etapa, segundo Maia.
Não é de hoje que o setor privado quer reformar o SUS. As eleições de 2014, profundamente marcadas pelo terremoto que foi Junho de 2013, serviram de tubo de ensaio para a formalização das primeiras propostas, vindas da Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp). A integração entre o setor público e privado, com o primeiro sendo responsável pelo aporte de dinheiro e o último pela gestão ‘eficiente’ e ‘moderna’ dos recursos passou a aparecer como a ‘causa’ dos empresários que, altruisticamente, teriam abandonado “reivindicações corporativistas” – sem, evidentemente, abandonar. A Anahp chegou a defender que hospitais privados tivessem o papel de gerir as políticas públicas de saúde na região onde atuam.
A agenda das empresas de saúde foi tocada adiante por uma entidade criada para reunir os diversos elos da cadeia produtiva – de hospitais à indústria farmacêutica. O Instituto Coalizão Saúde estava com a corda toda depois que os deputados aprovaram o processo de impeachment de Dilma Rousseff, ainda no governo interino de Michel Temer. Na primeira semana como ministro, Ricardo Barros se desabalou até São Paulo para participar de uma reunião do Instituto dirigido por Claudio Lottenberg – ex-presidente da United Health Brasil, multinacional que comprou a Amil antes que a participação do capital estrangeiro na saúde estivesse legalizada no país.
Lottenberg marcou presença na posse de Temer (com direito a foto abraçado ao ex-presidente) e o Instituto demonstrou influência ao se reunir com o chefe do poder Executivo para apresentar suas propostas, dentre elas a desregulamentação – ou numa imagem mais atual, inspirada em Ricardo Salles, a passagem da boiada.
De lá para cá, alguma água correu debaixo da ponte. Uma parte do setor privado da saúde viu derrotada sua tentativa de mudar a lei dos planos – mesmo com apoio do governo federal (quem lembra da obsessão de Ricardo Barros com os planos ‘populares’?). Hoje, o principal aliado dessas empresas, que presidia a comissão especial sobre o assunto – Rogério Marinho –, é ministro do governo Bolsonaro. Exatamente um ano atrás, em julho, tentou-se de novo. O projeto ‘Mundo Novo’ foi apresentado ao respeitável público pelo jornalista Élio Gaspari, sempre atento às movimentações empresariais no setor. Tinha como objetivo desregulamentar tudo o que fosse possível e ampliar o número de clientes de 47 para 70 milhões. Detalhe: recebeu pronto apoio do mesmo Rodrigo Maia que, agora, quer mudar o SUS sem sequer dizer de onde sopra esse vento.
O que sabemos é que, desta vez, trata-se de uma concertação mais ampla. Entre os operadores da máquina de raios X do SUS estaria a empresária Luiza Trajano. De fato, a presidente da Magazine Luiza vem, desde março, se pronunciando sobre o assunto. Em um debate da XP Investimentos, afirmou que o SUS “é perfeito”. “O que falta é gestão”, sentenciou. Em entrevista ao Estadão, a empresária citou que a entidade que preside – Grupo de Mulheres do Brasil – tem um comitê de saúde que “sempre estudou e valorizou muito” o SUS. “O que talvez não funcione no nosso [sistema] é que a troca de gestores é muito rápida. Em cada cidade nossa, tem um SUS. Em alguns deles, contudo, não têm ambulatórios e agora estão correndo para colocar tudo isso”, argumentou.
O próprio Maia já vinha dando declarações sobre o SUS desde maio. “Eu tinha uma visão muito pró-mercado privado de saúde, mas a gente vê que o SUS é importante”, disse na época, em um seminário virtual que contou com moderação de Armínio Fraga – outro novato na área, que entrou com tudo no debate através de seu Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.
Para quem acompanha o assunto, não é novidade que esse diagnóstico centrado nos ‘problemas de gestão’ do SUS (que existem) seja apresentado de uma forma torta, para anular a validade de outro diagnóstico, concretíssimo: o subfinanciamento do Sistema, que virou desfinanciamento com a aprovação da Emenda do Teto dos Gastos. A solução para ‘modernizar’ o Sistema Único é quase sempre entregar as chaves ao setor privado – ignorando o conflito de interesses e, a essa altura, as diversas denúncias de corrupção envolvendo parcerias público-privadas e organizações sociais (OSs). Além da gestão, os empresários avançam cada vez mais na formulação das políticas da área.
O SUS está inscrito na Constituição e foi regulamentado em 1990, pela conhecida Lei Orgânica da Saúde. É da mesma época outra lei (8.142), muito desrespeitada, que trata da participação da sociedade brasileira na construção desta política pública tão importante. A reforma patrocinada por Maia parece ser mais uma negociação de bastidores que ignora que o Brasil tem conselhos de saúde e uma tradição acadêmica que fez, ao longo de décadas, inúmeros raios X do Sistema Único.
REFORMA NO NHS
O NHS, o equivalente britânico e inspiração do SUS, também está na mira reformista. Por lá, a iniciativa não parte do parlamento, mas do primeiro-ministro Boris Johnson, que quer ter mais controle sobre o popularíssimo sistema público universal. Johnson montou uma força-tarefa para reverter a autonomia operacional do NHS, fruto de uma mudança administrativa feita em 2012. Diferente do SUS, que tem gestão de municípios, estados e União, o NHS funciona como uma agência – não reguladora, mas executiva mesmo, responsável pelo provimento dos serviços assistenciais. E há diferenças nas regras que valem em cada parte do Reino Unido. O NHS na Escócia é diferente do da Inglaterra, por exemplo. Johnson planeja enviar sua reforma aos legisladores no primeiro semestre de 2021.
FOI POR POUCO TEMPO
O fundador da Qualicorp, José Seripieri Filho, não chegou a completar os cinco dias de prisão preventiva. Na noite da sexta, o juiz eleitoral Marco Antonio Martin Vargas soltou o bilionário investigado em um esquema de doações ilegais à campanha do senador José Serra (PSDB-SP) nas eleições de 2014. A decisão também beneficiou Rosa Maria Garcia e Mino Mazzamati, donos de empresas por onde passou parte do dinheiro investigado.
O magistrado argumentou que a prisão não é imprescindível para o sucesso das investigações porque os três suspeitos foram interrogados e os documentos e demais provas apreendidos já estariam sendo periciados, “não havendo qualquer risco de destruição ou ocultação”. A Polícia Federal e o Ministério Público se manifestaram contra revogação das prisões: argumentaram que ainda há diligências pendentes. O juiz também revogou o bloqueio de bens no valor de R$ 5 milhões em troca do depósito caução na mesma quantia, proposto por Seripieri.
No pouco tempo em que ficou na carceragem da PF em São Paulo, o empresário ficou sozinho em uma cela de 11,6 metros quadrados. No depoimento, Seripieri admitiu que José Serra pediu “ajuda financeira” para a campanha ao Senado em 2014, mas tirou o corpo fora do esquema. Disse que negou o pedido e encaminhou o político ao sócio, Elon Gomes de Almeida, que poderia julgar se faria ou não a doação. Elon assinou o acordo de colaboração premiada acusando o fundador da Qualicorp de orquestrar o esquema.
O governador de São Paulo João Doria afirmou na sexta que as investigações contra Serra e também contra Geraldo Alckmin – acusado na quinta-feira de receber R$ 11,3 milhões da Odebrecht para campanhas – são ‘técnicas’, sem motivação política. “A Polícia Federal realiza seu trabalho assim como o Ministério Público, cumprindo o seu dever. E o dever é investigar, assim como o [dever] do PSDB é não criar nenhuma objeção e nem condenar nenhum tipo de investigação”, declarou. A posição não é unânime no partido. Segundo o Estadão, Doria quer aproveitar a oportunidade para retomar seu plano de lançar um “novo” PSDB para as eleições presidenciais de 2022. Além da aposentadoria de quadros históricos do partido, até o tucano seria trocado por outro mascote.
NO TRIBUNAL DE HAIA
Um grupo formado por mais de 50 entidades sindicais – a maioria de profissionais de saúde, sob a liderança da Rede Sindical UniSaúde – ingressou ontem com uma ação no Tribunal Penal Internacional, em Haia, contra Jair Bolsonaro. O documento pede que o presidente seja investigado por genocídio e crimes contra a humanidade, apontando “falhas graves e mortais” na resposta brasileira à crise sanitária e citando a situação específica de indígenas, comunidades vulneráveis e profissionais de saúde.
Os sindicatos consideram que existe “dolo” e “intenção na postura do presidente, quando adota medidas que ferem os direitos humanos e desprotegem a população, colocando-a em situação de risco em larga escala, especialmente os grupos étnicos vulneráveis”, informa o repórter Jamil Chade, no UOL.
Embora a maior parte das manchetes fale em denúncia, ainda não é disso que se trata, como explica o advogado e professor da FGV Thiago Amparo. Isso porque só um Estado, o Conselho de Segurança da ONU ou a Procuradoria do Tribunal podem fazer denúncias. Outras entidades (como ONGs, partidos e sindicatos) podem apenas pedir que se abra um caso. E aí há algumas etapas para que esse pedido vire denúncia. Primeiro, a Procuradoria examina; depois, pede ao Juízo de Instrução (um conjunto de juízes) uma autorização para abrir inquérito; se a autorização for dada, a Procuradoria investiga o caso e, se houver elementos suficientes, faz a denúncia.
O caminho, portanto, é longo. O professor lembra que o Tribunal não aceita facilmente um caso, e a maior parte dos pedidos para na primeira etapa, a do exame preliminar. Aliás, na semana passada mesmo comentamos aqui que não vai ser fácil conseguir um julgamento. Mas “não devemos trivializar a acusação, tampouco”, escreve Amparo, completando: “Não é porque o TPI tenha todos estes meandros técnicos que não seja grave ter um presidente em exercício às voltas com acusações de crimes internacionais.”
Jair Bolsonaro já foi alvo de outros três pedidos de investigação no Tribunal desde o começo do seu mandato. Ainda em novembro de 2019, uma ação de advogados e militantes de direitos humanos o acusou de “incitação a genocídio indígena”. Em abril deste ano, foram protocoladas duas ações diferentes – uma da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e outra do PDT – sobre crimes do presidente contra a humanidade, por seu incentivo a atitudes que aumentam o risco de proliferação do novo coronavírus.
NOUTROS ESPAÇOS TAMBÉM
A bancada do PSOL na Câmara acionou a Procuradoria-Geral da República contra Bolsonaro, acusando-o de propagar doença contagiosa. Afinal, sabendo que tinha covid-19, ele conversou com garis sem usar máscara… O partido já tinha entrado com a mesma acusação tempos atrás, quando não sabíamos se o presidente estava infectado e se aglomerava com apoiadores. Mas, como na época ele apresentou diagnóstico negativo, a PGR afirmou que “não poderia causar perigo de lesão ao bem jurídico”. Esse argumento caiu.
O PSOL tinha ainda uma ação civil pública pedindo a condenação do presidente por ter incentivado as pessoas a invadirem hospitais para filmar leitos vazios. Mas o juiz Paulo Cezar Duran arquivou o processo, entendendo que, pela legislação, partidos não podem propor uma ação civil pública.
E 152 bispos, arcebispos e bispos eméritos do Brasil assinaram uma carta com críticas à “incapacidade e inabilidade” do governo em enfrentar as crises sanitária, econômica, política e de governança. O documento não é nenhuma denúncia formal, mas o número de assinaturas não é irrelevante – são ao todo 310 bispos na ativa e 169 eméritos no país, informa a colunista da Folha Monica Bergamo, que publicou a íntegra. De acordo com ela, a carta seria divulgada no dia 22, mas foi suspensa para ser analisada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Entre os signatários, há um temor de que o setor conservador do órgão impeça a divulgação. Além da inação federal diante da pandemia, o texto também desaprova as reformas trabalhista e previdenciária, a destruição do meio ambiente e a “brutal descontinuidade” da destinação de recursos para alimentação, educação, moradia e geração de renda.
(MAIS) LIVRE, LEVE E SOLTO
Depois de anunciar bem ao seu estilo – no Twitter, com uma foto em que exibe um sorriso, um sinal de joinha e uma caixa de hidroxicloroquina – o resultado negativo de seu último teste para o novo coronavírus, Jair Bolsonaro foi dar uma volta de moto. Disse a apoiadores que não sentiu nada durante a infecção, reforçando seu discurso de que era só uma gripezinha. Isso apesar de ele ter corrido para o hospital ao primeiro sinal de febre, ter tido uma ambulância a seu dispor no Palácio da Alvorada, ter feito duas baterias diárias de eletrocardiograma para acompanhar os possíveis efeitos da hidroxicloroquina…
A aprovação do presidente está com uma leve tendência de alta, enquanto a rejeição a ele cai. Não são variações muito grandes, mas ainda são ruins. A tragédia anunciada da pandemia, que durante um tempo pareceu sacudir a opinião pública, pode afinal não ser suficiente para achatar em definitivo seu apoio. “Se morrer 1 milhão de pessoas, e seus, digamos, dez parentes e amigos próximos se revoltarem contra Bolsonaro, ainda não é gente suficiente para colocar um candidato presidencial no segundo turno. Como notou o cientista político Christian Lynch, os que morreram não vão votar“, diz o colunista Celso Rocha de Barros, descrevendo em seguida a estratégia do presidente para manter sua bolha minimamente inflada: minar a empatia pelos mortos (mentindo que são apenas os velhos e doentes que já iam morrer de qualquer jeito), manter seus seguidores alimentados com fake news anticiência, fazer com que ignorem a impossibilidade de recuperar a economia antes de mitigar a crise sanitária.
“Ainda é cedo para dizer se matar 100 mil pessoas custa votos no Brasil. Nos Estados Unidos, a reeleição de Donald Trump parece seriamente ameaçada. Aqui o clima anda mais para acordão. Sabe como é, você anistia 500 assassinatos, passa uns anos, os caras aparecem querendo que anistie mais 100 mil”, aposta Barros.
PARA PERSEGUIR
Não é muito conhecida do público a Secretaria de Operações Integradas (Seopi), criada logo no começo do governo Bolsonaro com a missão declarada de integrar operações policiais contra o crime organizado, redes de pedofilia, homicidas e crimes cibernéticos. Subordinada ao ministro da Justiça André Mendonça, nos últimos tempos ela tem voltado sua atenção para algo bem diferente: a vigilância de servidores públicos antifascistas.
Em junho, o Ministério começou uma ação sigilosa sobre um conjunto de 579 policiais e outros servidores federais e estaduais de segurança identificados como do “movimento antifascismo”, além de dois ex-secretários nacionais de Segurança Pública e um ex-secretário nacional de Direitos Humanos. O furo foi do repórter Rubens Valente, do UOL, que teve acesso a um dossiê produzido pela pasta.
O documento foi enviado à Polícia Federal, ao CIE (Centro de Inteligência do Exército) e a órgãos como a Polícia Rodoviária Federal, à Casa Civil, à Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e à Força Nacional, além de três “centros de inteligência” vinculados à Seopi no Sul, Norte e Nordeste. “Não se sabe a consequência dessa disseminação. Pode ser usado, por exemplo, como subsídio para perseguições políticas dentro dos órgãos públicos”, diz a matéria. Segundo Valente, o documento saiu pouco depois da divulgação de um manifesto intitulado “Policiais antifascismo em defesa da democracia popular”, assinado por 503 servidores da segurança.
A Rede Sustentabilidade pediu ontem que o STF determine abertura de inquérito na PF para investigar o caso. Em nota, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), pede que se investigue se houve vigilância ilegal pelas agências de inteligência do Estado. O Estadão pediu explicações sobre o dossiê ao Ministério; a pasta disse que não comentaria o caso, mas alegou que a Seopi serve para “evitar ameaças”.
A propósito, sabemos que o governo Bolsonaro tem usado a Lei de Segurança Nacional a torto e a direito. De janeiro de 2019 a junho deste ano, a PF já abriu 20 inquéritos (11 deles só no primeiro semestre de 2020) com base nesse instrumento, criado pela ditadura para silenciar opositores. É o maior número do período democrático; para comparação, foram 29 em todos os oito anos de gestão Lula. Agora, a OAB vai entrar com uma ação no Supremo para questionar a constitucionalidade dessa lei. De acordo com o parecer da Ordem, ela tem “termos vagos em certos comandos, que podem causar insegurança jurídica quanto à sua definição e aplicação, como, por exemplo, a menção a ‘atos de terrorismo’”.
NÃO SOU OBRIGADO
Como faltava tudo nos estados e municípios, e como o Ministério não parava de atrasar as entregas de testes, respiradores, leitos de UTI e equipamentos de proteção individual, a pasta encontrou uma solução simples: tirou o corpo fora. Na última sexta, o Estadão publicou trechos da ata de uma reunião do Centro de Operações de Emergência (COE) realizada no dia 17 de junho, já sob a gestão do interino Eduardo Pazuello. E o documento sugere “deixar claro” que o Ministério “não tem a responsabilidade de fornecer respiradores e EPI”.
Não faltam exemplos de promessas não cumpridas pelo Ministério: de três mil kits para instalação de leitos de UTI, só 540 foram enviados; dos 46 milhões de testes, foram entregues menos de 30%; foi anunciada a compra de 15 mil respiradores da China, mas o negócio nunca se concretizou e, até hoje, só cerca de oito mil (produzidos nacionalmente) foram entregues.
Ainda na sexta, o secretário-executivo Élcio Franco afirmou que o Ministério “não se furtou a ajudar estados e municípios”. E reforçou a ideia de que a pasta não tinha essa responsabilidade: “Quero deixar bem claro que, pela gestão tripartite, pela lei 8.080, é sim responsabilidade dos estados e municípios adquirirem seus insumos, pagarem seus recursos humanos, fazerem a manutenção das suas estruturas hospitalares e adquirir seus equipamentos e medicamentos. Isso é pela gestão tripartite, obrigação de estados e municípios. Para que não fiquem questionando o Ministério”. Só que, também pela lei 8.080, é obrigação do governo federal formular e participar da execução de políticas de insumos e equipamentos.
Há meses temos visto como, realmente, vários estados tiveram que se virar para tentar concretizar suas compras. Mas é um tanto difícil fazer isso num cenário em que o mundo inteiro busca os mesmos produtos. “A política de compra, de garantia de estoque regulador, ou mesmo de tentar importar produto, é do governo federal. O Ministério importa com um ‘pé nas costas’. Já para um estado ou município, comprar na pandemia é um desastre”, diz Gonzalo Vecina, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e ex-presidente da Anvisa.
Em tempo: representantes de 13 entidades científicas e o Conselho Nacional da Saúde entregaram seu Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia a secretários do Ministério, e pediram uma nova composição do COE.
DESAFOGOU
Por falar em equipamentos, uma reportagem da Piauí nos apresenta a uma empresa brasileira que se deu muitíssimo bem na pandemia. Depois de não conseguir importar respiradores chineses e decidir turbinar a produção nacional, o Ministério da Saúde fez ofertas comerciais a três fabricantes. Uma delas, a KTK Indústria de Importação, Exportação e Comércio de Equipamentos Hospitalares, estava afundada em dívidas e em recuperação judicial desde 2012. Não poderia ser contratada pela administração pública. Mas foi. Além do contrato de R$ 78 milhões com o governo federal, fechou outro, de R$ 43,9, com a secretaria estadual de Saúde de Minas Gerais. A soma de ambos, feitos sem licitação, supera o valor da dívida da empresa, que é de R$ 95 milhões. Nada mau… “O Ministério da Saúde deve explicações, e o Tribunal de Contas, o Ministério Público e a Controladoria Geral da União devem investigar a licitude desse processo”, afirma o economista Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas.
VOLTA ÀS AULAS
Não há uma orientação nacional em relação à volta às aulas – aliás, sabemos que o MEC não tem sido lá muito atuante em relação à pandemia. Mas, segundo o Estadão, um protocolo está sendo analisado pela pasta desde o início do mês. Há orientações sobre uso de máscaras, distanciamento social com marcações feitas no chão, limpeza e ventilação dos ambientes, escalas de entrada e saída das turmas, refeições dentro das salas de aula. Também há a ideia, segundo o registro de uma reunião do COE em que o texto foi discutido, de garantir recursos para a compra de materiais de higiene, mas o total não foi apontado… O MEC afirma que o Conselho Nacional de Educação já aprovou um parecer com orientações relacionadas à educação básica, e que ainda aguarda homologação.
Enquanto isso, estados e municípios estão estabelecendo suas retomadas nas escolas por conta própria. O tema foi pauta de uma reportagem do Fantástico ontem, que mostrou escolas [onde] os alunos já estão voltando. Há um temor grande por parte dos profissionais da educação, principalmente naquelas instituições onde as condições são piores – em muitas delas, não há sequer torneira para lavar as mãos. Por outro lado, em vários locais há forte pressão das particulares pela reabertura. Em Maceió, donos de escolas particulares fizeram carreata pelo retorno. No Rio, o Sindicato das Escolas Particulares divulgou um vídeo afirmando que a “covid nunca irá de todo, o que acaba é o medo” (num estilo “muito tempo passou; hora de fingir que a pandemia acabou“). Segundo o porta-voz do sindicato, a entidade vem sendo pressionada por famílias que precisam voltar a trabalhar e não têm onde deixar as crianças. O que, de fato, é um grave problema.
Nada indica que o retorno será tranquilo, porque, mesmo nos locais que registram queda nos contágios, eles não desceram a um ponto em que a circulação do coronavírus esteja perto de ser eliminada. A Escola Politécnica da Fiocruz lançou um manual com orientações sobre a retomada, e ressalta: “é possível que tenhamos que conciliar o retorno das atividades com novas suspensões, que serão indicadas pelas autoridades educacionais, sanitárias e governamentais. Essa alternância entre isolamento social e retorno às atividades poderá vigorar por algum tempo até o alcance da imunidade coletiva”. Mas é claro: o momento das novas suspensões só vai ser acertadamente identificado quando houver um monitoramento decente do curso da pandemia. De preferência, detectando-se altas nos novos casos – antes que de eles se tornarem novas internações e mortes.
PIOR SEMANA
Já são 2,4 milhões de casos e 87 mil mortes confirmadas. A semana passada já é oficialmente a pior da pandemia, com um acumulado de quase 320 mil novas infecções e mais de 7,6 mil óbitos. Nesse período, Santa Catarina registrou uma alta de 100% na contagem de vidas perdidas para a covid-19. O estado é acompanhado por Minas e Mato Grosso do Sul (ambos com 84%), Roraima (69%), Amapá (62%), Tocantins (49%), Rondônia (44%), Rio Grande do Sul (35%), Paraná (29%), Mato Grosso (22%) e Minas (16%).
Mas o fato é que existem muitas contradições entre o momento da epidemia e as políticas públicas de contenção do avanço do vírus. Em Curitiba, por exemplo, a ocupação dos leitos do SUS chegou aos 97% no sábado. Poucos dias antes, o prefeito Rafael Greca (DEM) havia autorizado a abertura de academias de ginástica – considerada uma das atividades mais favoráveis à transmissão do vírus.
A população, colocada desde sempre em uma encruzilhada de orientações, está circulando bastante. Segundo o Google, entre março e julho houve aumento de 30% no número de pessoas que saem às ruas. “Muita dessa confusão pode também estar relacionada com promessas de tratamentos milagrosos e as pessoas achando que a vacina já vai estar disponível no mês que vem”, pondera Raquel Stucchi, da Sociedade Brasileira de Infectologia, em entrevista à Folha.
Mas, por outro lado, muitos não têm opção, já que as quarentenas foram suspensas e as atividades de trabalho voltaram. Metade das pessoas afastadas pelo isolamento já voltaram a ocupar seus postos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Covid (Pnad Covid). Em maio, 16,6 milhões estavam em casa. Em julho, o número mingou para 8,3 milhões.
Mesmo mal feito, o isolamento social adotado por aqui teria evitado a morte de 188 mil pessoas e algo na casa dos 9,8 milhões de casos. A conta vale apenas para o mês de maio – que nem foi aquele onde mais se respeitou a quarentena – e é de um grupo de professores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Já o afrouxamento da quarentena levaria o Brasil a fechar o ano com 200 mil mortes, segundo Gabriel Arisi, da Unifesp.
Na sexta, a prefeitura de SP anunciou o adiamento do Carnaval e de outros grandes eventos, como a Parada LGBTQI+. Ainda não há previsão de data para os eventos. Já no Rio, houve pressão e ela parece ter surtido efeito: Marcelo Crivella (Republicanos) anunciou no sábado que cancelaria o réveillon de Copacabana, mas donos de restaurantes e hotéis reclamaram. O prefeito não tem nem vergonha de voltar atrás: “Não foi adiado, nós estamos pensando em fazer o réveillon de outro jeito. Como é que é o réveillon de outro jeito? Ah, nós vamos fazer tudo virtual. Mas deu uma confusão danada, porque o pessoal dos hotéis ligaram brabos (sic) pra mim, ligaram brabos, e o pessoal dos restaurantes também, ‘Ô, Crivella que história é essa?’. Então vamos agora essa semana fazer uma reunião com a imprensa para tratar do assunto”, disse. Brasil afora, outros grandes eventos foram adiados ou suspensos, como o tradicional São João de Caruaru.
RECORDES E REPIQUE
Ontem, o número de infectados no mundo ultrapassou a marca dos 16 milhões. E a última semana também foi a pior da pandemia no planeta. Houve recorde – 282 mil novos casos em um dia –, tendência de alta – três dias seguidos com 280 mil infecções –, tudo isso levando a um resultado inédito: média diária de mais de 250 mil registros.
Há os casos consistentemente ruins, como Estados Unidos e Brasil, mas também foram registrados vários repiques. O Vietnam havia conseguido manter-se livre do coronavírus por cem dias seguidos, mas no sábado as autoridades de saúde confirmaram uma infecção. No mesmo dia, a Coreia do Sul – outro exemplo de contenção das transmissões – registrou o maior aumento de casos em quatro meses, com 113 infectados. A China também voltou a experimentar alta: desde o início de março, o país não registrava tantos casos como ontem, quando 61 diagnósticos foram confirmados. Já a Espanha vive a segunda onda, com 224 surtos espalhados pelo país.
Segundo a OMS, na semana passada 37 países relataram recordes de infecções em um único dia. Estamos na lista, obviamente.
MANDETTA E MORO
O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta tem falado em concorrer às eleições de 2022 – inclusive à Presidência. Pois a colunista Bela Megale apurou que há uma negociação para que seja formada uma chapa dele com Sergio Moro. Só que Mandetta quer ser o cabeça. E Moro, apesar de desconversar, não abriria mão de ser ele o candidato.
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Imagem: Cellus