Um ano depois, empresas de ônibus no Rio não cumpriram o que prometeram no fim da intervenção no BRT

Pontos não cumpridos envolvem falta de comprovação de investimentos acordados, estudos incompletos, estações inoperantes e ônibus fora de circulação

Por João Vitor Costa, Agência Pública

A necessidade de “atender ao veemente clamor público de insatisfação da população com o Bus Rapid Transit – BRT” foi um dos motivos listados no decreto do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), em 29 de janeiro de 2019, para decretar a intervenção no sistema BRT do Rio.

Ao longo de seis meses, o engenheiro elétrico e ex-secretário de Transportes do estado Luiz Alfredo Salomão ficou à frente do Consórcio Operacional BRT, como interventor. Ele fez um robusto relatório final, com 72 páginas, descrevendo tudo o que havia de errado com o sistema. O descaso era tanto que o patrimônio da prefeitura do Rio estava se desfazendo: pistas e estações estão em estado precário, levando ônibus a quebrar. Por outro lado, responsabilidades das empresas de ônibus também foram apontadas. Eram quase cem ônibus fora de circulação, o setor de inteligência era precário, havia falta de controle sobre a remuneração das empresas e uma lógica de operação das linhas mais voltada para lucrar do que para atender a demanda.

Finalmente, em 29 de julho do ano passado, as mesmas operadoras fecharam um acordo com a prefeitura do Rio para implementar melhorias no sistema que exigiriam investimentos milionários, recuperação da frota e elaboração de estudo para operar o futuro corredor Transbrasil, que liga o centro do Rio à zona oeste.

Hoje, um ano depois, dos 11 pontos do acordo, oito não foram cumpridos, segundo apurou a Agência Pública, que obteve documentos sobre o Termo de Compromisso via Lei de Acesso à Informação (LAI).

Os pontos que não foram cumpridos envolvem falta de comprovação de investimentos acordados, estudos incompletos, estações inoperantes e ônibus fora de circulação.

A Secretaria Municipal de Transportes alega que vem acompanhando os esforços para que o Termo de Compromisso seja cumprido, mas, “entendendo o momento atípico” por conta da Covid-19, “o cronograma para a execução das obrigações será revisto”. Sobre penalidades ao Consórcio BRT, a secretaria informa que este foi “notificado na medida em que foram observadas falhas no cumprimento de cláusulas do Termo de Compromisso”, mas não informou se haverá punições.

Os prazos variavam entre 30 e 120 dias para serem cumpridos, segundo um cronograma de cumprimento obtido pela reportagem.

Na opinião do vereador Tarcísio Motta (Psol), que foi membro da CPI dos Ônibus na Câmara dos Vereadores em 2017, a intervenção não solucionou o principal problema: “O ideal seria declarar a caducidade do contrato dos ônibus como um todo”, afirmou. “Não cabe mais band-aid em fratura exposta”. Para ele, os coletivos da cidade deveriam estar nas mãos de uma empresa pública de transportes, e uma nova licitação “deveria ser feita em outros moldes”.

“Ardiloso”

Desde 2012, quando foi inaugurado o Transoeste, primeiro corredor de BRT da cidade, quem opera o BRT são as mesmas empresas que atuam nas linhas convencionais do Rio. No relatório da intervenção, esse fato é apontado como um “dispositivo ardiloso”, ilegal e inconstitucional, pois estava “sutilmente escondido” no edital de licitação e serviu para “licitar” um modal de obras bilionárias que ainda nem existia.

A origem dessa decisão remonta a uma licitação feita em 2010 pelo então prefeito Eduardo Paes (à época, no MDB). Essa concessão pública, chamada de SPPO, garantia que o BRT, quando construído, seria de responsabilidade dos próprios concessionários do SPPO.

Para Tarcísio Motta, o fato de o BRT estar citado no edital “já é equivocado”, pois não estava definido nenhum parâmetro, como o trajeto dos corredores. No caso, a presença do BRT no contrato de concessão dos ônibus comuns da cidade servia como “desculpa” – de acordo com o vereador – para não licitá-lo à parte.

Além da concessão feita antes mesmo de o BRT existir, diz Salomão, os problemas na operação começava desde o próprio nome, “Consórcio Operacional BRT”. Na verdade, não se trata de um consórcio, mas de um contrato da prefeitura com quatro consórcios que existem de fato: Intersul, Internorte, Transcarioca e Santa Cruz. No seu relatório, Salomão apontou que se tratava de uma “paper company” que não tinha “acesso a crédito em instituições financeiras, pois é um ente jurídico sem patrimônio”.

Por isso, o acordo previa que o grupo de empresas passaria a se chamar BRT Rio S.A. e se tornaria uma Sociedade de Propósito Específico (SPE). Essa foi uma das três cláusulas cumpridas.

A BRT/Rio se prontificou a ratificar acordo de concessão de ônibus SPPO, outro item do acordo.

Além disso, um relatório sobre o estado das estações foi entregue, mas precisou ser refeito, inicialmente, por ter usado a mesma foto para descrever estações diferentes e por incluir imagens em baixa resolução.

Infográficos: Larissa Fernandes

Outras cláusulas previam o retorno da operação de 22 estações do Transoeste, a aquisição de ônibus para operar o Transbrasil e a reforma de 90 ônibus.

Oito delas não foram cumpridas plenamente. Por conta disso, o déficit de coletivos operando no BRT é grande, não há estudo concluído para a aquisição de veículos de um corredor quase pronto, as estações abandonadas desde 2018 permanecem fechadas e os investimentos em segurança são insuficientes para conter o vandalismo.”

A operação dos corredores é uma questão central nesse acordo. O Transbrasil – cuja conclusão estava prevista para o primeiro semestre de 2020 – precisava de um estudo de demanda para que, quando fosse inaugurado, tivesse ônibus para operá-lo. Até hoje o estudo não foi concluído pelos operadores, e o corredor que já deveria estar inaugurado corre o risco de ficar pronto e não ter coletivos para operar em suas pistas.

Por outro lado, nos corredores já existentes – Transolímpica, Transcarioca e Transoeste – o número de ônibus quebrados era o principal problema. A equipe do interventor avaliou que 90 veículos estavam precisando de manutenção nas garagens. Eles deveriam ser catalogados, reformados e devolvidos ao sistema. O Consórcio Operacional BRT apresentou um inventário com apenas 72 veículos e alegou já tê-los reinserido no sistema. A Casa Civil, porém, fez um levantamento e constatou que há 50 veículos que ainda não constam no sistema.

Na zona oeste da cidade, a preocupação vai além dos ônibus: 22 estações foram fechadas em 2018 por causa da falta de combustível durante a greve dos caminhoneiros. Até hoje, 20 delas não foram reabertas.

O Termo de Compromisso previa solucionar isso, já que a Secretaria da Casa Civil elaborou um cronograma de reconstrução dessas paradas. A alegação de que faltavam informações sobre a demanda da região motivou o atraso nas obras. Uma linha de BRT chegou a ser implementada nessa área da zona oeste, da avenida Cesário de Melo, para apurar a demanda, mas, segundo a Casa Civil, teremos que esperar o fim do isolamento social para elaborar outro plano de retomada do trecho.

Paralelamente, além das 20 estações do Transoeste que estão fechadas desde 2018, em 2020 foram mais dez fechadas por causa de vandalismo – no Transcarioca e no Transolímpica. Apesar de alegar que a responsabilidade da segurança é do poder público, o BRT comprometeu-se a investir R$ 6 milhões em segurança (mas, até hoje, apenas cerca de 70% do valor foi aplicado).

Os valores milionários também se aplicariam à manutenção de estações, por exemplo, já que os operadores deveriam “providenciar aporte” de R$ 18 milhões no sistema, ou R$ 1,5 milhão por mês, para manutenção e conservação de estações do sistema BRT.

Embora as empresas aleguem ter feito o investimento, a Casa Civil confirmou à Pública que elas jamais comprovaram que esses valores foram de fato aplicados. A Casa Civil diz que esperava receber “documentação mínima que detalhasse o cronograma físico-financeiro das atividades”, com valores comprovados.

Contratos de grande fragilidade e bilhetes na mão da Fetranspor

O relatório final do interventor traz detalhes escandalosos sobre como o BRT era gerido. Segundo o documento, o monitoramento da frota – importante, pois era com base nisso que se fazia a remuneração das empresas – era feito pela empresa M2M. Falhas de transmissão demonstravam, de acordo com o relatório, “grande fragilidade e possibilidade de manipulações”, pois as planilhas eram feitas manualmente, sem auditoria de controle.

A inteligência do BRT também era precária, de acordo com o relatório, pois tinha “licenças de uso dos fornecedores expiradas, sem proteção adequada contra ataques virtuais (hackers) e um histórico de falta de segurança marcado por apagões” que levavam ao “risco de perda de dados”. O sistema de circuito fechado de TV das estações estava com licenças expiradas e só continuava funcionando “graças à fraude consistente na alteração de datas no servidor, para burlar a limitação do fabricante”.

A bilhetagem também é abordada pelo interventor, pois é operada pela RioCard – empresa do leque da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio (Fetranspor), investigada pela Lava Jato por estar envolvida em escândalos de corrupção. Em 2019, o ex-presidente da Fetranspor Lélis Teixeira acordou sua “delação premiada” e, em dezembro desse ano, deu detalhes sobre o caixa dois da federação, a chamada “caixinha da Fetranspor”, que serviria para o pagamento de propina. Teixeira citou nomes como o do atual prefeito do Rio e de seu antecessor, Crivella e Paes, respectivamente, e dos ex-governadores Garotinho, Cabral e Pezão. Em 2017, o esquema foi exposto pelo delator Álvaro Novis e, por isso, foi decretada a prisão preventiva de alguns empresários do setor de transporte, como Jacob Barata Filho, José Carlos Reis Lavouras e Lélis Teixeira.

De acordo com o relatório final do interventor, o BRT fornece estrutura de bilheteria e remunera mais de 500 funcionários. Por outro lado, recebe, já prontas, as planilhas sobre dados de bilhetagem da Fetranspor, sem acesso em tempo real nem meios de verificação.

Sobre a quantidade de ônibus atuantes no sistema, o interventor constatou que ao longo de três anos a frota operacional sempre foi inferior à planejada. Em dado momento, já durante a intervenção, esse desvio chegou a 25% – um quarto da frota. Os cálculos da frota eram feitos por um software – ao custo de R$ 500 mil por ano – que obtinha dados distorcidos.

O déficit diário na frota seria não apenas pela má qualidade das pistas – que causa problemas nos pneus, na sanfona que interliga o ônibus articulado e na suspensão do veículo – mas também pela falta de manutenção.

A dimensão dos corredores foi outro ponto abordado no relatório final. No documento, aponta-se que os três corredores da cidade tiveram erros de planejamento: enquanto o Transoeste é subdimensionado, atendendo bem mais passageiros do que o planejado – a previsão era de 135 mil passageiros por dia, mas transportava mais de 250 mil –, o Transcarioca e o Transolímpica são superdimensionados. O Transcarioca previa 650 mil passageiros por dia, quando fosse integrado ao Transbrasil (até hoje não inaugurado), mas o maior volume de passageiros foi de 282 mil passageiros/dia. Já o Transolímpica, que tinha previsão de 70 mil passageiros/dia, transporta apenas 36 mil.

Além disso, 13 estações têm demandas muito baixas, de menos de 500 passageiros diariamente. Dessas, apenas três estão operantes atualmente.

Salomão diz que a solução pode ser o desmonte dessas estações. “Podem ser desmontadas e guardadas para fazerem substituição de partes e peças de outras estações que ficarem prejudicadas”, sugeriu.

Procurado, o BRT respondeu por email que “o detalhamento nos pareceu inconsistente, inclusive no que diz respeito à quantidade de cláusulas não cumpridas. Diante disso, o BRT Rio restringirá o debate desse tema ao âmbito da Prefeitura do Rio.”

As empresas que operam no BRT

Onze empresas de ônibus operam, atualmente, o BRT. Elas são marcadas por dívidas enormes, recuperações judiciais, reclamações de consumidores e diretores investigados pela Lava Jato.

Três delas fazem parte do Grupo Redentor: Transportes Futuro, Transportes Barra e Viação Redentor. O grupo, que tem presença maciça na zona oeste do Rio, ganhou destaque nos noticiários com a delação premiada do ex-executivo da Fetranspor Lélis Teixeira, que citava a então diretora da Viação Redentor Helena Maia como responsável por repassar pagamentos ao promotor de justiça Flavio Bonazza – preso no início do ano – em troca de proteção aos empresários de ônibus do Rio. A garagem do grupo, que fica na estrada do Gabinal, foi o lugar escolhido para o pagamento da propina em dinheiro, feito em 22 parcelas de R$ 60 mil.

Outras três empresas são ligadas à família de Jacob Barata Filho, conhecido como o “rei dos ônibus. O sobrenome da família consta no quadro de sócios e administradores da Auto Viação Tijuca, da Auto Viação Jabour e da Viação Normandy do Triângulo. Barata Filho foi preso em julho de 2017, no aeroporto do Galeão, quando estaria tentando fugir para Portugal, em consequência da Operação Cadeia Velha, da Polícia Federal. Embora ele seja o único com participação nos quatro consórcios da capital fluminense, os negócios de sua família vão muito além da operação dos ônibus na cidade.

A Auto Viação Tijuca destaca-se no ranking de reclamação da Secretaria de Transportes: uma de suas linhas, a 301, é a quarta colocada da lista, com mais reclamações dos usuários.

Outras três empresas enfrentam dívidas e problemas de manutenção. A Paranapuan, da zona norte, está em recuperação judicial, com uma dívida de R$ 82,2 milhões com a União. Em 2019, quando uma linha foi implementada para ligar a Ilha a Copacabana, na zona sul, reclamações e insatisfação fizeram moradores da Ilha do Governador protestarem contra a participação da empresa – ela ficou fora da operação.

Já a Expresso Pégaso, a líder do Consórcio Santa Cruz, na zona oeste, não vive sua melhor fase. Há notícias de veículos que pegaram fogo (o que virou motivo de piada para a página Consórcio Santa Cruz da Depressão, com o quadro “Loteria do Fogo”), sumiço de suas linhas das ruas e ares-condicionados quebrados – o que ajuda a explicar por que suas linhas lideram o ranking de reclamações da Secretaria de Transportes.

Em maio, a Pégaso entrou com pedido de recuperação judicial e, atualmente, tem dívidas com a União na casa dos R$ 37,5 milhões.

A Transportes Campo Grande, apesar de ter apenas dois ônibus operando no BRT, opera linhas convencionais na zona oeste e faz a ligação entre a região, a zona norte e o centro do Rio. Atualmente, deve à União quase R$ 14 milhões.

Já as empresas Caprichosa Auto Ônibus e Auto Viação Três Amigos têm maneiras parecidas de atuar. Com presença maciça na zona norte, são integrantes dos consórcios Internorte e Transcarioca. A atuação em cada vez mais partes da cidade foi um fenômeno dos últimos anos, seja por participarem no BRT, seja por assumirem linhas de empresas falidas: passaram a atender a Barra da Tijuca e o Recreio, na zona oeste, o centro do Rio e até a zona sul.

José de Castro Barbosa, o “Zé do Pau”, é presidente da Três Amigos. A Caprichosa é da mesma família, mas atualmente sem ele no quadro societário, o que não quer dizer que o sobrenome tenha desaparecido: entre os sócios estão Isaac de Castro Barbosa, Isabella de Castro Barbosa e Isaac de Castro Barbosa Filho, por exemplo. Atualmente, em comum às duas empresas, apenas José Antonio Fernandes, cadastrado como um dos diretores da Três Amigos e sócio na Caprichosa.

Comments (1)

  1. Então, hoje é 03 de dezembro de 2020 e a situação está pior.
    A maioria dos ônibus sucateados, com péssima refrigeração e quando tem.
    O consórcio por si só se revela como um fracasso mal administrado e com interesses particulares, onde jamais a atenção aos usuários foi a prioridade.
    Uma pergunta. Quais são os nomes das pessoas que administram essa zorra total (BRT) e quem fiscaliza isso? E porque isso se arrasta e até quando?

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