Como explicar a ‘suspeição’ de um juiz criminal para uma criança de 5 anos. Por Rubens R.R. Casara

Na Revista Cult

Nos próximos meses, o Supremo Tribunal Federal (STF) irá julgar um tema importantíssimo à qualquer concepção minimamente democrática de Justiça: pode um “juiz suspeito” conduzir e/ou julgar um processo judicial? O que caracteriza a suspeição judicial? A imparcialidade ainda é exigida dos juízes no Brasil?

Suspeição, por definição, significa dúvida, suspeita ou desconfiança. No campo do direito, o significante “suspeição” equivale a uma espécie de corrupção do órgão estatal encarregado de julgar um processo. Sempre que um juiz, após violar a “imparcialidade” (como, por exemplo, ao aconselhar uma das partes), continua a exercer atos em um processo, tem-se a suspeição, a violação do devido processo legal e a corrupção do julgamento.

Pense-se, por exemplo, em um juiz que troca mensagens privadas com um promotor de justiça (ou um procurador da República), aconselhando-o como agir em um  determinado processo, quais provas produzir ou, mesmo, como manipular a mídia ou a opinião pública contra um réu. Em todos esses casos, há evidente violação ética e jurídica na ação do juiz suspeito. Qualquer criança de cinco anos perceberia que o julgamento desse réu pelo juiz suspeito levaria a um julgamento injusto. Como lembrou o jus-filósofo Luigi Ferrajoli, a parcialidade de um juiz justifica a nulidade dos atos processuais praticados por ele em qualquer país democrático.

Pode-se, desde já, afirmar que o juiz suspeito é aquele que viola a imparcialidade. Fala-se muito em imparcialidade, mas há muita confusão sobre o tema. Juízes que atuam de forma flagrantemente parcial, comprometidos com interesses outros que não o da concretização do Estado Democrático de Direito, costumam se apresentar como exemplos de imparcialidade. Isso para não falar de juízes que partem de certezas delirantes incompatíveis com a posição inicial de não-saber que caracteriza a jurisdição imparcial. Há também situações em que juízes distanciados dos interesses em disputa, e que se limitam a aplicar a lei contra a opinião de maiorias de ocasião, são apontados tanto pelos meios de comunicação de massa (que, não raro, nada tem de imparciais) quanto por outros atores jurídicos (estes, verdadeiramente parciais) como violadores da imparcialidade. Mas, afinal, o que é a imparcialidade?

Imparcialidade é sinônimo de alheabilidade, ou seja, os juízes não podem ter interesse pessoal em relação ao resultado do processo, nem atuar para retirar proveito político, midiático, financeiro ou social da causa posta em julgamento. Mais do que isso: todo julgador deve ter contato com o processo em uma situação de não-saber, sem ter convicções ou certezas acerca dos fatos atribuídos ao acusado. A grosso modo, pode-se afirmar que, no processo penal brasileiro, a decisão do juiz imparcial só é tomada no momento constitucionalmente adequado, a saber: após a apresentação das alegações finais das partes. Até esse derradeiro momento, o juiz deve estar em condições de alterar suas impressões provisórias sobre o caso. Trata-se de um dos pilares da estrutura judiciária democrática. Há, portanto, verdadeiro direito fundamental ao acesso a um juiz independente e imparcial. E só a atuação de um juiz imparcial (Estado-Juiz) legitima o afastamento e/ou restrições aos direitos fundamentais.

A própria ideia de “justiça”, construída ao longo da história, nunca se afastou da exigência de um julgador imparcial. Na Bíblia encontra-se menção à imparcialidade (“justos juízos, sem se inclinarem para uma das partes”, Deuteronômio, 16, 18-20). Também no Código de Hammurabi e no de Manu exige-se a imparcialidade do juiz. A previsão de um juiz imparcial encontra-se prevista no artigo 8.º, n.º 1, do Pacto de São José da Costa Rica. Não se trata, portanto, de uma novidade, nem de um obstáculo à eficiência do julgamento ou à descoberta da verdade. Na realidade, a imparcialidade é verdadeira condição de possibilidade de um julgamento justo.

Trata-se de condição de validade da atuação judicial. A exigência legal é um dado objetivo. Como registra Mouraz Lopes, “a importância da imparcialidade como alteridade, ou distinção perante as partes e como terzietá, no sentido de equidistância perante os intervenientes são, dir-se-ia, um acquis indiscutível. Uma outra dimensão da imparcialidade começa a ser hoje absolutamente inequívoca: o juiz só é imparcial se estiver disponível a decidir somente com base nas provas legitimamente carreadas para o momento da decisão sobre o seu objeto que, naquele momento e circunstâncias, deverá ser por si analisado. Sem qualquer pré-juízo fundado em interesses subjetiva e objetivamente identificáveis, decorrentes de intervenções anteriores no processo”.

O juiz fica impedido de exercer jurisdição sempre que ocorra ou que tome conhecimento de algum fato, alguma circunstância, que o torne passível de parcialidade. Assim, por exemplo, um juiz não pode julgar os seus adversários ou inimigos (ou mesmo os adversários de sua família ou de seus amigos íntimos). De igual sorte, se o juiz tem pretensão de exercer cargos políticos no poder executivo não pode julgar causas que facilitem essa nomeação ou que gerem vantagem para seus familiares ou aliados. Apenas em uma “república de bananas” se teria por normal um juiz condenar uma pessoa (vamos imaginar um candidato a cargo eletivo), retirando-lhe as chances de vitória em uma disputa eleitoral, e, em seguida, concorrer ao mesmo cargo pretendido por aquele ou mesmo ser nomeado para cargo no governo vitorioso em razão da eliminação do concorrente.

A imparcialidade do órgão julgador é indispensável do início ao término da relação processual, isso porque o fato gerador da parcialidade pode ser posterior à instauração da relação processual. Um exemplo pode ser útil: assim, se no decorrer do procedimento, o juiz comete um ilícito contra o réu (por exemplo, vaza à imprensa, em contrariedade à legislação, a interceptação de uma conversa telefônica), torna-se evidentemente parcial e deve abandonar o julgamento. Aliás, o risco da imparcialidade surgir após o início do processo torna imprescindíveis mecanismos e estratégias de manutenção da imparcialidade originária.

A maior garantia para a imparcialidade no curso do procedimento é a inércia do órgão julgador, em especial porque cabe às partes (acusador e réu) decidir as provas que pretendem produzir, o que assegura o distanciamento necessário ao julgamento e à justiça da decisão. Sempre que um juiz abandona a inércia para, em parceria com o Ministério Público, atuar no sentido de confirmar a hipótese acusatória, tem-se clara violação da imparcialidade. Sinais da violação à imparcialidade, portanto, podem ser percebidos ao se analisar a relação de parceira entre o órgão acusador e o juiz ao longo do processo. Também basta pensar na prática inquisitorial de alguns juízes que ficam por horas a formular perguntas ao réu durante o interrogatório na tentativa de “produzir” contradições ou encontrar elementos probatórios que não foram produzidos durante toda a instrução, para se identificar indícios de parcialidade. Em apertada síntese, sempre que o juiz adota o compromisso de confirmar a hipótese acusatória, tem-se clara violação à imparcialidade judicial.

A doutrina processual penal costuma distinguir entre duas vertentes do princípio da imparcialidade do juiz: a) a imparcialidade objetiva; e b) a imparcialidade subjetiva. Em que pese essa distinção, o certo é que a parcialidade da decisão decorre sempre do caminho intelectual seguido por seu autor. A constatação do desvio, por sua vez, exige a exteriorização de atos que revelam a parcialidade. Um exemplo pode ajudar: imagine um juiz que durante as suas férias adota medidas concretas (exteriorização do ato) para fazer prevalecer o seu desejo (parcialidade subjetiva) sobre a situação jurídica de um determinado réu, isso ao arrepio das normas de competência e da garantia constitucional do juiz natural.

A imparcialidade subjetiva diz respeito ao que pensa um juiz que intervém em um dado caso penal. Logo, a constatação da parcialidade em sentido subjetivo importa em uma investigação, na medida do possível, do foro íntimo do julgador para se descobrir se o juiz esconde razões para favorecer uma das partes. A imparcialidade subjetiva do juiz é presumida (presunção iuris tantum), devendo os interessados demonstrar o contrário apontando atos concretos que permitam identificar sinais que explicitem a vontade do juiz de tratar de forma diferenciada um determinado réu ou o desejo de atuar sempre no sentido de produzir uma condenação (o distanciamento em relação às regras do jogo democrático, em especial aos direitos e garantias fundamentais, é um bom indicativo de parcialidade subjetiva).

A imparcialidade objetiva, por sua vez, refere-se ao juiz, em razão de considerações de caráter orgânico ou funcional, não apresentar (e nem dar sinais de) (pré)juizos ou (pré)conceitos em relação ao caso penal que irá julgar (parafraseando o que se dizia da mulher de César, não basta ao juiz ser imparcial, ele deve aparentar essa imparcialidade). Assim, por exemplo, se o juiz vaza conteúdos sigilosos de um determinado caso penal, para mobilizar a opinião pública, causar prejuízos a um réu ou facilitar a aceitação da decisão que ele pretende tomar (decisão, aliás, tomada antes do momento adequado), fica evidente a parcialidade analisada do ponto de vista objetivo.

É importante perceber que a atividade jurisdicional só é legítima pelo fato da Agência Judicial encontrar-se distante dos interesses parciais, o que garante que as decisões e/ou eventuais restrições aos diretos fundamentais miram na solução justa do caso penal. Sem imparcialidade, não há efetivo contraditório, não há obediência ao devido processo legal e o sistema acusatório se mostra inviável. Sem imparcialidade, eventual julgamento não passará de uma fraude. 

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

Foto: Lula Marques

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