Na Revista Cult
A racionalidade neoliberal preparou o terreno para mobilizar e legitimar forças ferozmente antidemocráticas na segunda década do século 21.
A conclusão é da cientista política da Universidade de Berkeley nos Estados Unidos, Wendy Brown, autora do recente Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente (Politeia), na qual relaciona o crescimento das formações políticas nacionalistas autoritárias a três décadas de “assaltos neoliberais à democracia, à igualdade e à sociedade”.
Sobretudo entre nós, o tema é de grande importância para desvelar o comportamento daqueles que criticam os atuais modelos autoritários sem abrir mão do apoio às propostas neoliberais, que foram essenciais para a construção desses modelos – e que ainda lhes dão suporte.
Concepções nostálgicas de liberdade e moralidade, sobretudo como forma de dinamitar os esforços de igualdade, se agregaram ao desprestígio da noção de sociedade e a diuturna repulsa à política e aos políticos. Assim, permitiram que as aventuras autoritárias se vissem legitimadas.
Ainda que não se possa dizer que tenha sido um objetivo premeditado, no que acredita Brown que se refere à criação frankensteniana, a conta pela emergência do populismo nacionalista e autoritário, em diversas partes do mundo, recai sobre os arautos do mercado e da desigualdade, críticos contumazes da democracia e inimigos declarados da justiça social.
Os motivos para isso são vários.
A ressignificação da liberdade é um dos conceitos chave.
Brown foca no fato de que as formulações neoliberais da liberdade, sobretudo a ideia de uma “licença pessoal não regulada”, portanto, sem controle, acabaram por inspirar e legitimar a extrema direita para justificar suas exclusões e violações que visam reassegurar a hegemonia branca.
A repulsa à ideia de justiça social e ao modelo de Welfare State, ao lado da louvação do binômio “mercado e moral”, esvaziou o sentido democrático da liberdade. Liberdade sem sociedade, completa Brown, é puro exercício de poder, despida da preocupação com os outros. Sempre será a liberdade do mais forte, a liberdade de oprimir.
É assim que uma formulação vazia da liberdade acabou possibilitando que os grupos extremos “pintem a esquerda, incluindo a esquerda moderada ou liberal, como tirânica ou mesmo fascista”- e ao mesmo tempo permite entender como neonazistas, membros da Ku Klux Klan e outros supremacistas brancos se reúnam publicamente em comícios em prol da “liberdade de expressão” – ao qual podemos agregar o exército dos produtores de fake news.
Outro pilar importante desse desenvolvimento é o resgate da ideia de moralidade que, no fundo, só tem servido de combustível para repelir o combate às desigualdades, como assegurar a liberdade reprodutiva das mulheres ou a não-discriminação pela orientação sexual. Não à toa, a obsessão no repúdio a movimentos LGBTs. A noção de “moralidade tradicional” liga-se, sobretudo, a um patriotismo saudosista, mas que no fundo promove não um “amor ao país”, mas amor ao modo como as coisas eram. Com todas as exclusões e preconceitos que marcaram as nossas histórias.
É assim, segundo Brown, que se permite tachar de antipatrióticos protestos contra injustiças de gênero ou raciais. Curiosamente, a autora evoca uma correlação que pode até fazer mais sentido desse lado de baixo do Equador: os militares, identificados como “a defesa do nosso mundo de vida”, são o emblema mais perfeito dessa imagem de tradição, que permite atribuir às críticas políticas e sociais uma espécie de traição ao país.
A construção do modelo autoritário é pavimentado, ainda, pela destruição do conceito de sociedade.
Quem não se lembra da célebre frase de Margaret Thatcher: “sociedade não existe, e sim os indivíduos”. Para a professora de Berkeley, o ataque neoliberal ao social é fundamental para gerar uma cultura antidemocrática. E, nesse sentido, cita o pensamento de Friedrich Hayek, para quem a noção de social é “falsa e perigosa, sem sentido, oca, destrutiva e desonesta” -além de associar a crença na justiça social a uma aproximação do totalitarismo.
Para o pensador austríaco, considerado um dos cardeais do neoliberalismo, o mercado e a moral revelam a verdadeira natureza da justiça. Os sistemas morais tradicionais assemelhariam-se aos mercados, especialmente ao estabelecerem uma ordem desprovida de projeto prévio e situarem a justiça nas regras e não nos resultados.
Como explica Brown, isso permite a contestação da justiça social por meio da suposta autoridade dos valores tradicionais. Na aplicação dos dias atuais, isso se resume basicamente em legitimar a desigualdade e desencadear um novo e desinibido ataque aos membros mais vulneráveis da sociedade.
O ataque ao Estado em si também foi um importante contribuinte para o desgaste da política e a ascensão ao poder dos chamados “anti-políticos”.
Pensadores neoliberais, aponta Brown, viam o político com desconfiança, sendo abertamente hostis. Desde a prevalência da tecnocracia à oposição ao estatismo, da deslegitimação das reivindicações democráticas a uma governança baseada no mercado. O resultado de tudo isso é expressivo: “várias décadas de hostilidade multifacetada à vida política geraram uma desorientação generalizada quanto ao próprio valor da democracia.”
A essa análise podemos agregar a participação consciente da mídia, seja como forte crítica ao Estado sempre “ineficiente”, seja pela elegia dos poderes persecutórios e na consequente desmoralização da administração sob o ponto de vista ético -poupando, no mais das vezes, os agentes da corrupção, grandes corporações situadas no andar mais alto da pirâmide social. Menos Estado, menos governo, menos servidores, tudo isso foi associado de um lado à produtividade; de outro ao combate à corrupção. A influência desproporcional do poder econômico nas diversas esferas do Estado – por meios explícitos ou disfarçados, acrescentamos – obviamente escapa a essa visão seletiva de moralidade, pois aparece apenas como contribuição ao desenvolvimento.
Nos Estados Unidos, aponta Brown, o desgaste da política ajudou sobremaneira a que um incorporador imobiliário que explorou eleitoralmente sua falta de conhecimento e de experiência políticas (portanto, anti-político) chegasse ao poder, e a partir daí cultuasse a consagração desse liberalismo autoritário.
Ainda no âmbito do desgaste da política, Brown recupera o pensamento de Milton Friedman, outro dos pilares do neoliberalismo, para quem qualquer tipo de exercício do poder político ameaçaria a liberdade: “o poder político requer ou impõe a conformidade, só o mercado permite a diversidade”. A ameaça fundamental à liberdade é o poder de coagir, diria Friedman, “seja nas mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea”. Não é preciso mais para ter por desprestigiada e desnecessária a democracia.
No tocante às estratégias eleitorais, vê-se que não há variações profundas.
A campanha de Trump, particularmente graças à contribuição de Steve Bannon, compreendeu desde cedo a importância do voto evangélico branco. Trump nunca parou de atiçar esse eleitorado, seja apoiando explicitamente a criminalização do aborto e a proibição da regulamentação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, seja refutando a aceitação de transgêneros ou propondo o resgate de Jerusalém, ou, enfim, oferecendo a expansão do poder das igrejas na vida política.
De outro lado, a crença que Deus escolheu Donald Trump como seu instrumento para criar um mundo mais cristão, a par de suas questionáveis características morais, é comum entre os evangélicos brancos norte-americanos – Brown cita o caso da eleição de 2017 para uma vaga do Senado no Alabama, quando os evangélicos votaram esmagadoramente em um partidário de Trump acusado de pedofilia, que havia se comprometido, todavia, com a ideia de criminalização do aborto.
Lendo o livro, não se tem a impressão apenas de que compartilhamos o mesmo modus operandi, mas que em certas situações, a política na periferia é uma espécie de déja vu do poder central.
Como conclui Brown, a desagregação do papel do governo atingiu o auge com Trump: “os órgãos governamentais destinados a conduzir o bem-estar social, nos domínios da saúde, serviço social, educação, moradia, trabalho, desenvolvimento urbano e meio ambiente são chefiados por pessoas comprometidas com a comercialização ou eliminação desses bens, e não com sua proteção ou administração”.
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MARCELO SEMER é juiz de direito e escritor. Doutor em criminologia pela USP, é membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia
Ilustração: Outras Palavras