Por Alexandra Beurlen e Arísia Barros*, em ConJur
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo primeiro, aduz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos…”, entretanto, a história recente ainda registra escravidão formal no mundo e, atualmente, ainda se vê situações “análogas” à de escravo, além das usuais discriminações, sobretudo em razão da cor, origem, etnia… Segue como meta o ditame da amada Declaração.
Indignada com recentes discussões, resolvi escrever um artigo sobre racismo e submetê-lo a Arísia Barros, líder do movimento social antirracista em Alagoas, a quem admiro muito. Com a dureza necessária à luta de pouca ressonância, fez várias ponderações que me levaram a propor esse diálogo em homenagem não apenas à Declaração Universal dos Direitos Humanos mas à democracia, vez que igualdade e liberdade são sua essência.
Como preâmbulo à resposta à pergunta aparentemente simples que dá início a este diálogo, trago a lição de Amartya Sen. Ao tratar da igualdade e das teorias que a envolvem justificando ou recusando políticas inclusivas, propõe como crucial a questão: “igualdade de que?”. Reconhece a diversidade inerente à humanidade e afirma: “ser igualitarista de algum modo significativo se relaciona com a necessidade de ter igual consideração, em algum nível, por todas as pessoas[1].” Não ser racista, então, impõe não se considerar pessoas melhores ou piores em razão da raça, origem, etnia etc. O racismo viola o que há de mais caro na democracia.
Nunca me considerei racista, mas percebo que compreendo muito pouco do tema e seria uma ousadia da minha parte escrever sobre isso sozinha, como pensei de início. Primeiro, nunca sequer tinha lido o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n° 12.288/10) até pensar em escrever sobre o tema. Também não tinha lido sobre o “racismo estrutural”. Que coisa! Nunca me aprofundei nesse tema, apesar de cerca de 80% dos adolescentes que processo se autodeclararem negros ou pardos. Por quê? Porque os coloquei dentro da categoria dos pobres, 99% do público com quem trabalho.
Minha tendência, enquanto branca analisando o racismo, era pensar que as mesmas dificuldades por que passam negros ocorrem com “a”, “b” e “c”, tirando por menos a discriminação racial, como se não fosse importante. Até mesmo equiparando estatísticas drasticamente distintas.
Sabia que, até a década de 60, aborígenes australianos não eram sequer considerados seres humanos? Sabia que na Mauretânia, em 1981, ainda havia escravidão?
Posso até responder que não sou racista, mas não posso negar que o mundo ainda é. Mas será que, mesmo nessa visão simplista, posso mesmo garantir não ser racista? Sei que tento não ser, luto para não ser e espero não ser! Mas não sou?
Racismo não permite respostas simples
Diante de um Estado produtor de invisibilidades sociais, o comprometimento, o engajamento de uma promotora de justiça (que lida com crianças em situação de vulnerabilidade, em sua maioria preta), com a luta antirracista, a despeito do incômodo que o tema causa na supremacia branca é de suma importância. É muito pertinente colocar em xeque a ideia de “democracia racial”. Dizer-se não racista é fácil, difícil é o percebimento dessa questão (você puxa a bolsa pra frente, como forma de proteção, ao ver que é uma pessoa preta que está em tuas costas?). Dizer-se não racista é fácil, difícil é abrir mão de incontáveis privilégios vivenciados de geração em geração.
É importante que branc@s busquem problematizar a questão do racismo estrutural, entretanto, urge sair do discurso solidário e ser cúmplice, no exigir que governos executem medidas de ação para que políticas de promoção da igualdade racial sejam implementadas. Mais do que abraços, lives etc e tal, é urgente a aplicabilidade de políticas públicas que deem cabo às estatísticas aterradoras e crônica da violência letal: 75,5% das vítimas de assassinato no Brasil são pretas.
O racismo, mais do que uma postura, é um câncer necrosado e internalizado no tecido social. Ser pret@ é crime de lesa à pátria.
Em tempos de violência policial norte-americana, há uma onda de manifestações enfáticas antirracistas pairando nas redes sociais, agora já mais amainadas, entretanto, no chão da terra do apartheid, corpos mortos de pret@s invisíveis continuam substantivando a paz de cemitérios. Genocídio de um povo forjado e reforçado ideologicamente por meio de mecanismos políticos e simbólicos. Nós importamos o Black Lives Matter e desimportamos/sufocamos o Vidas Pretas Importam. O racismo é uma camaleão poliglota que se transveste dependendo da ocasião e conveniência.
Como não ser racista?
O racismo não se limita à aparente distinção pelo tom de pele, por sua origem, por sua raça, por sua descendência. E, de fato, foi com essa compreensão superficial que inicialmente respondi à provocação de Arísia Barros. Não que a resposta simples não seja necessária, pois ainda há no mundo essa forma de racismo, mais óbvia. Mas não é a forma majoritária com que o racismo (estrutural) age atualmente. Como esclarece Arísia Barros: “Dizer-se não racista é fácil, difícil é abrir mão de privilégios vivenciados de geração em geração”.
Mas de que privilégios estaria falando? Não devo me considerar merecedora do meu status social? Outra vez recorro a Amartya Sen, pois, para além do “tratar igual”, para compreender onde se encontra um ser humano dentro da sociedade em que vive (consequentemente se há/houve sempre isonomia assegurada), propõe o economista que analisemos duas perspectivas distintas: “(1) a realização de fato conseguida, e (2) a liberdade para realizar”.[2]
Para entender se integro e me beneficio da estrutura social racista, preciso observar se, proporcionalmente, os negros e brancos têm realizações similares e, não as tendo, se houve a mesma liberdade para que as realizassem. A pergunta inaugural, a partir da explicação de Sen, fica mais fácil de responder, não é?
Pela lei brasileira, deve-se à população negra um olhar de “reparo”, se é que isso algum dia será inteiramente possível. Não compactuar com o racismo estrutural não implica abrir mão do que alcançamos, a partir dos privilégios que nos foram assegurados, como brancos, mas reconhecê-los e admiti-los como prejuízos para terceiros (nunca os defendendo como puros méritos).
Não ser racista impõe uma postura ativa em defesa da mudança reparadora da estrutura desigual. Exige que passemos a um olhar restaurativo imediato em toda situação estruturalmente desigual, além de lutar para que condições de igualdade, de base, sejam asseguradas.
Parece um pouco mais complexo? Que tal começarmos sem permitir que brancos discutam sozinhos situações que envolvem discriminação racial?
Não é sobre compaixão. É sobre respeito e igualdade
Sim, é papel dos diversos segmentos sociais promover o debate político e crítico sobre o racismo estrutural e as desigualdades raciais, respeitando o protagonismo preto. Entretanto, em um estado etnicista e sangrante para pret@s, como o Brasil, é importante não só humanizar o olhar, mas, e principalmente, problematizar os privilégios da branquitude.
Nascer branc@ no Brasil, uma pátria artificialmente inventada, a partir da geografia hegemônica do conservadorismo, do apartheid naturalizado e consentido, já é um grande privilégio. A violência étnica é uma barbárie cotidiana. Violência estrutural, legalizada, institucionalizada. De um lado os privilégios hegemônicos, n’outro quilombos destemperados. Apagamentos históricos. Pés no pescoço. Sufocamentos de identidades.
O Brasil perpetua um genocídio diário contra a população preta. Não é só a morte física de corpos mortos atravessados pelas balas do estado, certeiramente, perdidas, ou agora o processo do pé no pescoço. É a destruição premeditada de valores que substantivam ideários normativos de uma raça, e para muita gente essa conversa é mimimi ou, como diria no meu tempo, uma conversa de um povo complexado pela inferioridade.
Peguemos como exemplo a religião de matriz africana. Desacreditar, inferiorizar, perceber as religiões de matriz africana como algo demoníaco, de uma raça incivilizada é a busca de destruição do patrimônio espiritual. Induzir à intolerância religiosa é um plano bem traçado. A geopolítica de segmentar para homogeneizar, esmagar alteridades e diferenças. Territorializar as segregações.
O racismo estrutural é uma máquina social e econômica com plano, método, processo e normas tendo como foco substantivar o exílio de direitos da população preta nos múltiplos territórios brasileiros. O racismo é esquizofrênico, e para confrontá-lo é preciso ir além da onda pontual de solidariedade cristã. Como diria a filósofa socialista estadunidense, Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista é preciso ser antirracista”. A gente sabe, de verdade, o que é o antirracismo?
O que é o antirracismo?
Liberdade pressupõe igualdade e vice-versa. Não me canso de repetir a lição de Franklin D. Roosevelt[3]: ninguém é livre sem liberdade de expressão e religiosa, sem ser livre da necessidade e do medo. O que vemos no mundo ainda é a grande e forte opressão à liberdade dos negros, acompanhada da condescendência dos brancos que não se consideram racistas. “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons” disse Martin Luther King. Parece que seguimos, muitos, calados. Só não sei se somos bons.
O que você tem a ver com o racismo?
Sim, há muita gente que segue muda/calada fazendo de conta que o problema não existe, tipo o que tenho a ver com o racismo? E a afirmação surge: o racismo não é problema de pret@s. Afinal, são as relações de poder que hierarquizam o conceito de raça que subjaz ao racismo. E poder, no Brasil, está intimamente ligado à supremacia branca, que além de não abrir mãos dos privilégios, cria estratégias para desmantelar qualquer coesão (organizações antirracistas) que ouse lutar contra esse poder secularmente instituído.
O racismo estrutural conta com o silêncio cúmplice de uma circunvizinhança imensa. E, para que novos diálogos sobre o tema sejam possíveis, é urgente que as questões relativas ao preconceito e às diferentes formas de racismo sejam postas diante do espelho social, de modo a mobilizar mudanças estruturais na concepção secular de hierarquização humana, presente nas relações sociais.
Que venham novos diálogos, Alexandra. Sem máscaras.
[1] SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001, pg. 21.
[2] Idem, pg. 69.
[3] “Discurso das quatro liberdades”, 6 de janeiro de 1941
- Barros, Arísia. A Pequena África chamada Alagoas. Pernambuco- Edições Bagaço, 2007
- Barros,Arísia. O Racismo é um Camaleão Poliglota. Brasília. Editora Ética do Brasil, 2011
*Alexandra Beurlen é promotora de Justiça do MP-AL e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.
Arísia Barros é ativista preta, professora, redatora publicitária, escritora, consultora para elaboração de programas para equidade racial/pesquisadora no estudo das relações étnico-raciais, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas, em Alagoas.
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Foto: Google/CUT