General nomeado para Ministério da Saúde por sua “capacidade de gestão”, segundo Bolsonaro, deixa faltar remédios essenciais para pacientes na UTI enquanto entope o país de cloroquina; mortes por Covid-19 eram 15 mil quando o interino assumiu a pasta
Por Poliana Dallabrida, em De Olho no Genocídio
Em um resort de luxo em Itacaré, no Sul da Bahia, onde as diárias custam quase R$ 1,5 mil, cerca de 500 convidados se divertiam na pista de dança do casamento de Marcela Minelli, irmã da influencer Gabriela Pugliesi, no começo de março. Um deles, paulistano recém chegado de Aspen, destino preferencial para praticantes de esqui nos Estados Unidos, relatou sintomas de gripe no dia seguinte. Era o início de um dos surtos de Covid-19 no Brasil, até então uma doença associada às elites econômicas.
Dos aeroportos para as festas, reuniões e coquetéis de luxo, o vírus logo chegou às periferias. No dia 31 de março, o Ministério da Saúde registrava 5,7 mil casos e 201 mortes em decorrência da Covid-19 — 136 delas no estado de São Paulo. Neste sábado (08), o Brasil ultrapassou a marca de 100 mil mortes em decorrência do novo coronavírus e 2,9 milhões de casos.
Quem são os responsáveis por essa marca? A série Esplanada da Morte detalha, desde o dia 28 de julho, o papel de cada ministro (entre outros executivos do governo Bolsonaro) na explosão dos casos e na minimização da crise sanitária. A nona reportagem trata da pasta central para o tema: o Ministério da Saúde, há três meses com um ministro interino.
Embora reconheçam a dificuldade de se controlar uma pandemia em um país com dimensões continentais, especialistas ouvidos pelo De Olho nos Ruralistas avaliam que o país carece de transparência, estratégias claras e ações eficientes de prevenção e combate à Covid-19.
Testes clínicos estão estocados à espera de insumos laboratoriais. Faltam remédios essenciais para pacientes em estado grave nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e sobram comprimidos de cloroquina. O planejamento errático também se reflete na troca dos titulares da pasta em plena pandemia — foram três ministros em um intervalo de trinta dias, entre abril e maio, um recorde mundial.
À frente do Ministério da Saúde está o general carioca Eduardo Pazuello, o interino jamais efetivado, no cargo desde a saída do ministro Nelson Teich, o breve, que ficou no cargo apenas 28 dias. Foi em sua gestão que a pandemia, no Brasil, alcançou a casa da centena de milhares de mortes, sob a coordenação indiferente de Jair Bolsonaro — ele que não é um presidente interino.
‘NÃO SEI O QUE É AI-5, NUNCA NEM ESTUDEI PARA DESCOBRIR O QUE É’
O general Eduardo Pazuello está em Brasília desde abril, quando assumiu o posto de secretário-executivo do Ministério da Saúde durante a transição das gestões dos médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. À época, Bolsonaro justificou o convite ao general por sua capacidade de gestão.
Teich pediu demissão no dia 15 de maio antes de completar um mês no cargo. Naquele momento, 14,8 mil brasileiros haviam morrido em decorrência da Covid-19, enquanto 218,2 mil já haviam se infectado. No dia 3 de junho, Pazuello foi oficializado como ministro interino.
Antes de chegar à capital federal, Pazuello era o responsável pelo comando da 12ª Região Militar da Amazônia, em Manaus. Em 2014, quando alçou ao posto de general, coordenou o logístico das tropas do Exército que atuaram nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. O militar também foi responsável pelo comando da Operação Acolhida, liderada pelo Exército Brasileiro para atendimento aos imigrantes que chegavam pelos municípios roraimenses de Boa Vista e Pacaraima.
“Sem ele, a Olimpíada do Rio não teria acontecido”, afirmou o presidente Jair Bolsonaro em uma live, no dia 30 de julho, justificando a permanência de Pazuello no cargo de ministro interino. O general, segundo o presidente, faz um “excelente trabalho”. No mesmo dia do pronunciamento, o número de mortes por Covid-19 no Brasil chegava à marca de 91 mil.
Na função de ministro, o general foi ridicularizado nas redes sociais ao declarar que o inverno no Norte e no Nordeste do Brasil seguiria o calendário do Hemisfério Norte. “Para efeitos da pandemia, nós podemos separar o Brasil em Norte e Nordeste, que é a região que está mais ligada ao inverno do Hemisfério Norte, são as datas do Hemisfério Norte em termos de inverno”, disse Pazuello, em 9 de junho.
O general voltou às manchetes ao afirmar, em entrevista à revista Veja, que não sabia o que era o Ato Institucional nº 5 (AI-5), o dispositivo editado em 1968, durante a ditadura (1964-1985), que abriu caminho para o período de maior repressão do regime ao permitir que o presidente da República fechasse o Congresso, cassasse mandatos e suspendesse direitos políticos:
— Nasci em 1963, não sei nem o que é AI-5, nunca nem estudei para descobrir o que é. A história que julgue. Isso é passado, acabou.
GENERAL TENTOU OMITIR DADOS E DRIBLAR JORNAL NACIONAL
Nomeado por Bolsonaro em 1º de janeiro de 2019, o médico Luiz Henrique Mandetta foi deputado federal pelo Democratas em Mato Grosso do Sul. Em 2016, o ex-ministro votou a favor da proposta de emenda constitucional do Teto dos Gastos Públicos. Ela impôs limites aos gastos públicos em todas as áreas, incluindo a saúde. A proposta orçamentária de 2020 propôs R$ 9,6 bilhões a menos que o orçamento mínimo anterior à emenda. Presidenciável, Mandetta ganhará um perfil à parte na série Esplanada da Morte.
O substituto de Mandetta foi o médico e empresário Nelson Teich, que ficou menos de um mês no cargo. Ele ficou marcado pela participação na reunião do dia 22 de abril, espremido entre os ministros da Educação, Abraham Weintraub, demitido em julho, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Teich parecia não se sentir à vontade com as falas raivosas dos colegas.
Ambos, Teich e Mandetta, deixaram o ministério por divergências relacionadas à política de isolamento e à prescrição de medicamentos contra a Covid-19 sem comprovação científica. Teich é mais comedido, mas Mandetta se tornou uma voz de oposição a Bolsonaro.
Sob o comando interino de Pazuello, a primeira mudança na pasta da Saúde — em obediência às demandas presidenciais — foi na contagem dos casos e óbitos da doença. Em abril, durante a gestão Teich, o general questionara, em entrevista à Veja, a confiabilidade dos dados sobre mortes e casos de Covid-19 no país:
— O meu grau de conhecimento específico, técnico, de médico, é leigo. A gente observa que dados precisam ser melhorados. A gente precisa ter números mais fidedignos, com menos risco de manipulação, para que se definam as estratégias em cima de dados reais. Se você não tiver certeza absoluta dos dados, tudo o que você planejar não tem resultado.
Em junho, já sob seu comando, o Ministério da Saúde alterou o horário de divulgação dos dados e modificou a forma como as informações eram disponibilizadas no site da pasta. A justificativa era valorizar o número de pacientes recuperados, e não mortos ou infectados. A página chegou a ficar temporariamente fora do ar.
Questionado por jornalistas, em 05 de junho, sobre os atrasos na liberação dos dados, Bolsonaro reagiu com deboche: “Acabou matéria do Jornal Nacional”. Ele sugeria que a demora na divulgação dos balanços da Covid-19 teria o intuito de impedir a veiculação de novos números durante o telejornal de maior audiência do país.
Dias depois, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que reúne representantes das secretarias de saúde das 27 Unidades da Federação, passou a disponibilizar dados atualizados sobre o número de casos da Covid-19 no país em uma plataforma própria. Alguns dos maiores jornais do país e o UOL também se articularam no que definiram como um consórcio de imprensa, com critérios próprios de divulgação.
PAÍS TINHA OS INSTRUMENTOS, MAS GOVERNO SE OMITIU
Quando assumiu a secretaria-executiva do Ministério da Saúde, Pazuello afirmou — como sempre, à Veja — que os problemas na condução da crise seriam resolvidos com “estratégia, planejamento, distribuição e utilização das logísticas em infraestrutura de outros ministérios para apoiar”. E completou: “É botar a mão na massa. É relação, discussão, decisão, priorização e levar isso para a execução”.
Ironicamente, as críticas mais recorrentes à gestão Pazuello se referem à falta de estratégia e planejamento. Para o médico Aristóteles Cardona Jr., que integra a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, faltam orientações claras do governo federal aos estados e municípios para gerenciar a crise: “Temos várias pandemias dentro do Brasil. A diversidade de realidades é muito grande”.
Por isso, argumenta Cardona, seria necessária uma condução central forte, “um Ministério da Saúde comprometido com o combate à pandemia, com o salvamento de vidas”. “E não é isso que estamos vendo”, diz o médico, que atua na zona rural de Petrolina, em Pernambuco. “Vemos muitos esforços fragmentados por parte de estados e municípios, mas falta uma organização central do ministério”.
“Não há desculpa para a falta de planejamento nem para a ineficiência das ações”, avalia Luis Eugenio de Souza, conselheiro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e vice-presidente da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública. “O Brasil tem proporções continentais, mas dispõe de recursos em escala continental, incluindo o setor da saúde”.
Souza explica que a estrutura capilarizada o Sistema Único de Saúde (SUS) permitiria implementar estratégias de prevenção e combate à pandemia tão exitosas quanto as da Alemanha, da Nova Zelândia e de Kerala, estado no Sul da Índia. Nos três casos, foram respeitadas as orientações dos protocolos de vigilância epidemiológica: identificar os casos suspeitos, tratar os pacientes com sintomas e, em paralelo, rastrear, pôr em quarentena e testar todos aqueles que tiveram contato com os infectados.
“Infelizmente, a negação da gravidade da pandemia, a demora para a liberação de recursos, a falta de campanhas de comunicação, a insuficiência das ações de proteção social para permitir a quarentena voluntária e a não-mobilização das equipes de atenção primária em tempo oportuno fizeram o número de casos explodir”, lamenta o conselheiro da Abrasco.
Os esforços de gestão foram dirigidos para a ampliação da capacidade de atendimento dos casos graves em hospitais e UTIs, segundo a análise de Souza. “Sem dúvida, essa ampliação foi necessária e está ajudando a salvar vidas, mas mais vidas teriam sido preservadas se ela tivesse sido precedida ou acompanhada do fortalecimento das ações de vigilância epidemiológica”.
FALTAM REMÉDIOS ESSENCIAIS, SOBRA CLOROQUINA
Desde maio, a pasta tem sido alertada sobre a falta de medicamentos essenciais para o tratamento da Covid-19, como anti-inflamatórios, sedativos e antibióticos necessários para atendimento a pacientes graves, como revelou o Estadão. Contrariando evidências científicas, Bolsonaro e seus seguidores apostam na cloroquina para o tratamento da Covid-19, mesmo nos casos iniciais da doença.
Em junho, o medicamento teve sua indicação de uso suspensa nos Estados Unidos. Já o Conselho Nacional de Saúde (CNS) não recomenda, desde maio, o uso da substância para o tratamento da doença, especialmente em casos ambulatoriais. Enquanto isso, de forma teatral, o presidente ofereceu o medicamento até para as emas do Palácio da Alvorada.
Com os estoques cheios, o governo federal — e neste caso sem teatro — tenta até hoje desovar o medicamento. Em rara aparição em coletiva de imprensa, no dia 24 de julho, Pazuello e sua equipe divulgaram que a pasta já havia distribuído 100,5 mil comprimidos de hidroxicloroquina para indígenas no país, conforme noticiou o observatório: “Governo federal distribuiu 100 mil unidades de cloroquina para indígenas“.
A pandemia do novo coronavírus já atingiu 23.453 indígenas de 148 povos, com um saldo de 652 mortos, conforme os dados da Articulação Indígena dos Povos do Brasil (Apib). A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), criada pelo Ministério da Saúde em 2010, é responsável pela garantia de atenção básica de saúde aos indígenas. Robson Santos da Silva, militar à frente da Sesai, será personagem de uma das próximas reportagens da série Esplanada da Morte.
Como titular da pasta e chefe de Santos da Silva, Pazuello fez o que os dois antecessores haviam recusado: orientou o SUS a receitar cloroquina desde os primeiros sintomas da Covid-19, conforme defendia Bolsonaro.
Mas não sem críticas contundentes de quem entende do assunto. “O único protocolo que existe, que o ministério divulgou, é um protocolo que ofende a ciência”, avalia José Gomes Temporão, ministro da Saúde entre 2007 e 2010, durante o segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
A falta de planejamento também tem impossibilitado aumentar o número de testes no país. No dia 30 de julho, o Ministério da Saúde possuía em estoque 9,85 milhões de testes do tipo PCR, o mais recomendado para o diagnóstico da doença, segundo o Estadão. O principal motivo para os testes ficarem parados nas prateleiras é a falta de insumos usados em laboratório para processar amostras de pacientes.
GILMAR MENDES AJUDOU A POPULARIZAR A PALAVRA ‘GENOCÍDIO’
Uma das críticas mais contundentes à atuação do general e às políticas do Ministério da Saúde partiu do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Em 11 de julho, Mendes afirmou que a situação na pasta da Saúde era intolerável e que o Exército estava se associando a um genocídio:
— Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso.
A declaração foi dada em uma live organizada pela revista IstoÉ e pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
De Olho nos Ruralistas utiliza desde o dia 03 de junho a palavra genocídio para sua cobertura da pandemia, sintetizada na editoria De Olho no Genocídio.
Em resposta a Gilmar Mendes, Pazuello declarou o seguinte, em entrevista à revista Veja: “Quem são os genocidas? Os 5 mil funcionários do ministério? Os dezoito oficiais que eu trouxe para trabalhar comigo? Foi uma conversa muito mal colocada, atravessada, num momento errado e de uma pessoa que não precisava falar isso. Mas eu e o ministro Gilmar já conversamos”.
O ministro interino contou como foi o diálogo com Mendes:
— Ele me ligou, eu não pude atender, mas retornei depois a ligação. Foi uma conversa tranquila. Eu disse a ele: ‘O senhor não tem culpa alguma de ter informações tão truncadas a ponto de fazer tal declaração. Se o senhor quiser saber exatamente como é, vem me visitar’. Ele concordou e disse para nós conversarmos. Se ele entender que tem de conhecer o ministério, verificar o trabalho que estamos fazendo e assim mesmo achar que é um genocídio, é direito dele. Mas faço questão de mostrar tudo. Ele vai ver, inclusive, que não existe militarização do ministério.
PASTA DEIXOU DE INVESTIR 70% DO ORÇAMENTO
Sete ex-titulares da pasta consideram que o ministério “se tornou uma instituição desacreditada e vista com reservas pela opinião pública, seja ao distorcer estatísticas oficiais, seja por aprovar protocolo que não se baseia em evidências científicas para o manejo da doença”.
É o que diz artigo assinado pelos ex-ministros Alexandre Padilha, Arthur Chioro, Barjas Negri, Humberto Costa, José Gomes Temporão, José Saraiva Felipe e Luiz Henrique Mandetta na Folha , no dia 17 de julho. O título resume como o grupo vê a gestão de Pazuello à frente do ministério: “60 dias de omissão na Saúde”.
Gestores experientes foram substituídos, segundo os ex-ministros, em um processo de militarização da pasta. Hoje, o ministério possui 23 membros das Forças Armadas em postos de liderança.
O texto dos ex-ministros faz referência a uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) que apontou baixa execução orçamentária no enfrentamento do novo coronavírus. A auditoria constatou que o Ministério da Saúde desembolsou somente 29% (R$ 11,4 bilhões) dos R$ 38,9 bilhões disponibilizados em créditos extraordinários para reforçar o atendimento hospitalar e ambulatorial, entre março e 25 de junho.
“A gestão militarizada do MS não trouxe nenhum ganho em eficiência logística e sequer tem sido capaz de adquirir os testes necessários ou de executar os recursos orçamentários disponibilizados, já que apenas 30% foram gastos até agora”, diz o artigo. Na opinião dos ex-ministros, uma postura diferente do governo federal teria reduzido o impacto da pandemia no país.
À reportagem, Temporão ressalta que o ministério falha ao não coordenar ações junto aos estados e municípios: “Estamos sem ministro e vivendo uma situação esdrúxula e gravíssima: em um país continental, uma das questões centrais, talvez a mais importante é ter capacidade de coordenação nacional para o enfrentamento da pandemia. E o governo federal abdicou desse processo”.
GESTÃO DÁ AS COSTAS AOS POVOS DO CAMPO
Na zona rural, o coronavírus confirmou a precariedade no atendimento à saúde dos povos do campo e a letargia das ações do Ministério da Saúde. Entre as centenas de indígenas, quilombolas e camponeses que perderam a vida, estão o cacique Aritana Yawalapiti, líder do Alto Xingu desde 1980, e Carivaldina Oliveira da Costa, a Tia Uia, uma das principais líderes quilombolas do país.
No dia 8 de julho, Bolsonaro sancionou o Projeto de Lei (PL) nº 1142/2020, que prevê medidas de enfrentamento ao avanço da Covid-19 nos territórios quilombolas, indígenas e de comunidades tradicionais.
Entre as medidas listadas no Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 estão o acesso à água potável, a distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies, o acesso a testes rápidos, medicamentos e equipamentos para identificar a doença, profissionais de saúde com equipamentos de proteção individual, ações de tratamento hospitalar e controle de acesso às terras indígenas.
O PL teve dezesseis vetos de Bolsonaro — catorze deles foram justificados com a ausência de demonstração do impacto financeiro das medidas. Entre os dispositivos não autorizados pelo presidente estão a garantia de acesso a água potável, a oferta emergencial de leitos hospitalares e de respiradores mecânicos e a distribuição gratuita de materiais de higiene nos territórios indígenas e quilombolas.
No dia seguinte, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, minimizou os vetos e afirmou que povos indígenas não precisam de água potável já que “se abastecem da água dos rios que estão na sua região”. O general também é presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, região onde crianças indígenas morrem por diarreia devido ao consumo de água contaminada.
Aimberê Gomes, dirigente estadual do Setor de Saúde do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da Bahia, lembra que os camponeses produzem o alimento que sustenta milhões de famílias durante a pandemia. O escoamento da produção se dá por meio de feiras livres. “Esse tem sido um fator de risco e uma porta de entrada para o novo coronavírus no interior”, alerta.
Após quase cinco meses de tramitação no Congresso, o Senado aprovou apenas na última quarta (05) um pacote de medidas emergenciais de auxílio a agricultores familiares, pescadores, extrativistas, silvicultores e aquicultores. Pelo PL nº 735/2020, aqueles que não obtiveram o auxílio emergencial poderão receber recursos para fomentar sua atividade e terão prorrogados os prazos para o pagamento de dívidas.
A dificuldade de acesso a medicamentos e vacinas, como a da gripe, tem sido um obstáculo para a prevenção entre as populações de zonas rurais. “A descentralização de prioridades não é garantida”, diz Aimberê Gomes. “As pessoas que deveriam tomar a vacina [da gripe] não conseguiram tomar na zona rural, enquanto quem não precisava tomou”.
PANDEMIA ALAVANCOU VIOLÊNCIA E DESMATAMENTO
O avanço da pandemia coincide com o aumento do desmatamento, invasões e violência em territórios indígenas. A Funai não deu sequência a nenhum processo de homologação de Terras Indígenas (TIs) durante a gestão Bolsonaro. O órgão, comandado pelo delegado Marcelo Xavier, tem desistido de processos de demarcações em disputa na Justiça, mesmo quando há decisão favorável aos indígenas em instâncias anteriores. Sem um plano emergencial com estratégias claras, a pasta tem se limitado à entrega de cestas básicas, kits de higiene e à construção de barreiras sanitárias.
As titulações de territórios quilombolas estão paralisadas. Já são 148 quilombolas mortos e 4.017 infectados pela Covid-19, segundo levantamento realizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e pelo Instituto Socioambiental (ISA).
“A falta de titulação deixa as comunidades quilombolas vulneráveis”, disse o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), presidente da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Quilombolas, em entrevista ao observatório. “Em vez de combater a Covid-19, eles têm que se preocupar em defender o território. É uma questão grave para os quilombolas no Brasil”.
Em 2019, segundo dados da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas, foram abertos dezesseis processos de titulação de quilombos. Entre janeiro e maio de 2020, apenas um. Entre 2016 e 2018, durante a gestão do presidente Michel Temer, a média de novas análises territoriais foi de 77 processos por ano. Já entre 2004 e 2009, durante o governo Lula, foram abertos, anualmente, 148 processos no Incra.
Segundo levantamento da Terra de Direitos, o país levaria, no atual ritmo, 1.170 anos até o Incra concluir todos os processos de titulação de comunidades quilombolas.
“Sabemos que o vírus só é democrático na busca indiscriminada de tentar se reproduzir”, afirma José Gomes Temporão. “Mas, tanto do ponto de vista da suscetibilidade quanto da vulnerabilidade, a proporção de casos e de óbitos entre os mais vulneráveis e mais frágeis é maior”.
PASTA TERCEIRIZA RESPONSABILIDADE PARA PACIENTES…
Procurado pelo De Olho nos Ruralistas, o Ministério da Saúde alegou que a pasta tem se esforçado para atender as necessidades da população brasileira. “Entre as ações já realizadas pelo Governo do Brasil podem ser citadas as habilitações de 11.302 leitos de UTI exclusivos para Covid-19 com o repasse de R$ 1,6 bilhão, em parcela única, para estados e municípios, sendo que os pedidos de habilitações são feitos pelos gestores locais do Sistema Único de Saúde (SUS)”, diz a nota.
O ministério informa ainda ter distribuído 16 milhões de medicamentos, sendo 4,8 milhões de comprimidos de cloroquina e 11,1 milhões de cápsulas de oseltamivir. A pasta diz ter comprado e distribuído 245,4 milhões de Equipamentos de Proteção Individual (EPIS) para uso de profissionais de saúde, como máscaras, luvas, aventais e álcool em gel. E que enviou mais de 13 milhões de testes de diagnóstico para todo o país, adquiriu e distribuiu 8.637 ventiladores pulmonares e contratou mais de 6,5 mil profissionais de saúde para reforçar o atendimento à população.
“É importante reforçar que o Ministério da Saúde possui um corpo técnico de servidores qualificados que mantêm a normalidade das atividades da pasta”, prossegue a nota. “Além de profissionais com experiência em gestão pública e especialistas de diferentes áreas da saúde nas secretarias que compõe o Ministério. Cabe ressaltar que todos os cargos de gestão possuem indicações de substitutos e, portanto, suas atividades estão sendo administradas por esses gestores”.
Embora divulgue os números sobre distribuição de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19, ou até mesmo arriscados, o Ministério da Saúde alega que a prescrição de medicamentos permanece a critério do médico, “sendo necessária também a vontade declarada do paciente”. “No caso de pacientes pediátricos ou incapacitados, é necessário o consentimento dos pais ou responsáveis legais”.
O Ministério da Saúde diz ter enviado uma resposta aos questionamentos do TCU. Que as informações foram apresentadas em coletiva. E que a execução dos recursos pode ser conferida.
… E ENXERGA ATENDIMENTO ‘RÁPIDO E EFICIENTE’ NAS ALDEIAS
Confira a resposta da pasta em relação aos efeitos da pandemia entre os indígenas:
“O Ministério da Saúde tem garantido assistência aos mais de 750 mil indígenas brasileiros aldeados durante a pandemia da Covid-19. Por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), reforçou o atendimento desde antes mesmo do decreto de pandemia feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Dessa forma, foram realizadas ações de informação, prevenção e combate ao coronavírus, orientando comunidades indígenas, gestores e colaboradores em todo o Brasil. O Ministério da Saúde já investiu cerca de R$ 70 milhões em ações específicas para o enfrentamento da Covid-19, incluindo-se compras realizadas por cada um dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Até agora já foram enviados 789.273 mil itens. Todos esses insumos complementam os estoques próprios dos 34 DSEIs, que também mantém processos permanentes de aquisição de Equipamentos.
O Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo coronavírus em Povos Indígenas detalha como as equipes de saúde devem agir conforme cada caso. Os DSEIs também elaboraram Planos de Contingência Distritais, ou seja, cada um dos 34 DSEIs já tem um plano para as diferentes situações de enfrentamento da Covid-19 respeitando as características de cada povo e suas necessidades específicas. Todo esse planejamento e estudo antecipado resultam em atendimentos rápidos e eficientes executados diretamente nas aldeias.
Conforme dispõe a legislação em vigor, a população indígena especificamente residente em aldeia deve ter atendimento local de atenção básica à saúde ofertada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, por meio dos Distritos Sanitários Especiais (DSEIs) e suas Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI). Em função disso, os indígenas residentes em regiões urbanas são atendidos pela rede pública de saúde estadual e municipal.“.
| Com reportagem de Demétrio Weber |
|| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas ||
Imagem principal (Gabriela Leite): Bolsonaro lidera ministros, mas país tem mais responsáveis pela matança