A Amazônia é o principal alvo de expansão e consolidação do agro-minero-hidro-negócio e a política agrária e ambiental do governo Bolsonaro quer consolidar essa perspectiva. Para tanto, mercantiliza os bens da natureza e subordina e exclui pessoas e comunidades inteiras
por Ayala Ferreira e Kenarik Boujikian*, em Le Diplomatique Brasil
A imagem da Amazônia que arde em chamas e sua devastação é o corolário do cenário de terra arrasada da política ambiental de Bolsonaro. A frágil democracia e a perspectiva de justiça social estão bloqueadas pela classe dominante, que sempre está em movimento para salvar o capital em crise econômica, política, social e ambiental.
O governo de Bolsonaro coloca em prática um modelo que soma o neoliberalismo na economia e o fascismo nas relações políticas e sociais.
Uma combinação que impõe a retirada dos direitos do povo brasileiro de ter acesso à educação, saúde, moradia, cultura e segurança, como política de Estado e, ainda, flexibiliza direitos dos trabalhadores, via reforma trabalhista e previdenciária e, por fim, mercantiliza bens da natureza para satisfação da ganância da indústria madeireira, de minérios e agrícola e, especialmente, desconsidera por completo o maior bem que é a própria vida, como se vê nestes tempos de pandemia em razão da Covid.
A aplicação desse modelo só é possível pela repressão e controle social, dimensões que elegem inimigos que precisam ser aniquilados ou excluídos do convívio social.
O modelo Bolsonaro atua para afirmar que os sujeitos críticos do campo, das águas e das florestas, que vivem nas comunidades e periferias, majoritariamente mulheres negras que se organizam em movimentos sociais, sindicatos e conselhos populares, são os inimigos, na medida em que questionam esse modelo de desenvolvimento predatório e acabam por ser os destinatários da violência.
Bolsonaro busca legitimar ações de violência contra esses sujeitos e legalizar o uso das armas por proprietários rurais, garantindo-lhes segurança institucional para cometer atentados contra a vida. Nega políticas públicas da própria existência desses sujeitos em suas comunidades e flexibiliza a legislação agrária e ambiental, favorecendo a regularização de terras públicas griladas e a privatização de áreas de conservação ambiental.
A Amazônia é o principal alvo de expansão e consolidação do agro-minero-hidro-negócio, de grandes obras de infraestrutura para produção de energia e de conexão da região com outras fronteiras mundiais. A política agrária e ambiental do governo Bolsonaro quer consolidar essa perspectiva e atender os interesses do capital nacional e internacional. Para tanto, mercantiliza os bens da natureza e subordina e exclui pessoas e comunidades inteiras.
O exemplo mais contundente da ação predatória diz respeito à questão ambiental na Amazônia, celebrizada pelo desmatamento e pelas queimadas que o mundo assisti.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciou em setembro de 2019, na Comissão de Direitos Humanos da ONU, o aumento de 88% dos focos de incêndio nas terras indígenas do Brasil entre janeiro e agosto daquele ano, período que teve 9.078 focos, em 274 terras indígenas. Atrás dos ataques estão os interesses de tomada das terras indígenas e toda a política que o governo pretende colocar em prática. É lamentável se pensarmos que, em período recente (2004-2012), houve significativa redução do desmatamento no Brasil, considerada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU a maior contribuição oferecida por um país no combate ao aquecimento global.
Junto com o fogo temos: o discurso de ódio; a paralisação das demarcações dos territórios indígenas, quilombolas e tradicionais; o genocídio dos povos indígenas; a regulamentação da mineração em terras indígenas; cortes no orçamento dos órgãos públicos de controle e fiscalização ambiental; a perseguição e desqualificação das pessoas e pesquisas realizadas por órgãos estatais; a delegação de responsabilidade de presidir órgãos estratégicos para latifundiários e militares.
A pandemia aguçou o descaso do Estado com os povos indígenas, que lutam pelo direito de viver. Como diz o advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Luiz Eloy Terena: “A história se repete, pois, no período da ditadura, a disseminação de vírus por meio de distribuição de roupas foi utilizada como forma de extermínio dos indígenas, conforme o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Essa pandemia está escancarando vários problemas sociais que assolam as comunidades indígenas. Desde a precariedade do subsistema de atenção à saúde indígena, passando pela negativa de atendimento aos indígenas que se encontram nas terras ainda não homologadas, até a importância de se respeitar a biodiversidade presente em nossos territórios… Mesmo neste contexto de pandemia, nossas comunidades não tiveram paz. O número de desmatamento e invasões aumentou sobremaneira. Estes fatos, públicos e notórios, constituem crimes, mas neste momento são também os vetores diretos para a disseminação do vírus nas terras indígenas”.
Sabemos que o objetivo é um só: colocar em prática o “plano de ocupação e desenvolvimento da Amazônia” do governo Bolsonaro, que pretende explorar as riquezas da região, incentivar grandes empreendimentos com atração de população não indígena para se instalar na Amazônia e aumentar a participação da região Norte no PIB, como revelado pelo Intercept, e poucos se deram conta.
O quadro de devastação ganha repulsa dos organismos internacionais.
Os desafios são inúmeros para os setores populares da Amazônia, que reafirmam a soberania nacional, obrigatoriamente acompanhada da proteção da natureza, do meio ambiente, da saúde, da vida e dos direitos humanos.
Os sujeitos coletivos estão aproximando as bandeiras, a capacidade de indignação e de rebeldia e afirmam que ali se transpira luta e resistência!
*Ayala Ferreira, setor de direitos humanos do MST.
Kenarik Boujikian, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia e da ABJD, desembargadora do TJSP (1989/2019).
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Entre agosto de 2018 e julho de 2019, a área destruída na Amazônia foi de 10 mil quilômetros quadrados, rompendo a tendência das últimas décadas de queda no desmatamento durante o período seco (Foto: João Laet/The Guardian/Repórter Brasil)