Numa sentença racista, os 500 anos de opressão

Em decisão de juíza paranaense, a história do pós-abolição: para controlar população negra, casa-grande criou novos aparatos repressivos — da lei de vadiagem, de 1890, à “guerra às drogas”. O resultado perverso: 2/3 dos presos são negros

por Almir Felitte*, em Outras Palavras

“Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”. Esta foi a frase usada pela juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, para justificar o aumento de pena na condenação de mais um homem negro no Brasil. Após repercussão, a magistrada recorreu àquela desculpa que, em nosso país, já virou chavão sempre que um erro escabroso é cometido: a frase teria sido tirada de um “contexto maior”. A verdade, porém, é que a condenação não poderia estar melhor contextualizada do que nos mais de 500 anos de racismo da história brasileira.

O Brasil passou por séculos de escravidão negra e, por mais que este sistema tenha se encerrado formalmente no fim do século 19, nunca nos livramos de suas heranças. Aliás, é nesse período de transição entre o regime escravocrata e a abolição que podemos perceber como foram desenvolvidos mecanismos para que, mesmo que liberta, a população negra continuasse sob forte controle das elites do país. É justamente neste ponto que o Judiciário brasileiro ganhou um papel central que se mantém até hoje.

Durante os tempos de escravidão no Brasil, o Judiciário e as primeiras polícias públicas representavam um verdadeiro auxílio ao poder privado sobre os corpos negros. Nesta coluna já escrevi, por exemplo, sobre a atuação das polícias militarizadas, que surgiam no início do século 19, na repressão às insurgências e fugas de escravos. Já ao Judiciário, costumavam caber as punições físicas aos negros nos casos em que os escravagistas preferissem não o fazer com as próprias mãos. No Rio de Janeiro, por exemplo, fora criado o Calabouço, onde escravos poderiam ser trancafiados pelo poder público a pedido de seus proprietários sem maiores justificativas.

Quando o sistema escravocrata começa a sofrer duros golpes pela política internacional e a abolição começa a surgir no horizonte, porém, algumas mudanças vão colocando a lei penal e o Judiciário no centro das políticas de controle sobre as pessoas negras. Em 1835, por exemplo, quando uma maior quantidade de negros livres já circulava pelo Rio de Janeiro, o então Chefe de Polícia da cidade, Eusébio de Queiroz, escreveu ao Ministro da Justiça que, ao abordar pessoas negras nas ruas, o melhor seria presumir que estas fossem escravas fugidas, cabendo a elas o ônus de se provarem livres1.

Essa nova política de controle, um preparo das elites brancas para o novo mundo em que a escravidão negra não seria mais tolerada, se traduzia em números. Entre 1834 e 1837, registros da Bahia e do Rio de Janeiro mostram que, até então, as cadeias aprisionavam, proporcionalmente, muito mais pessoas livres, estrangeiras, brancas e pardas do que negros e escravos. Afinal, estes últimos estavam mais sujeitos aos castigos privados dos escravagistas ou às penas sumárias de açoite e de morte. Esta proporção começaria a mudar nos próximos anos, à medida que o próprio número de prisões teria grandes aumentos. No Rio de Janeiro, 4 pessoas por dia eram detidas na cadeia central em 1850, número que subiria para 35 já em 18762.

A situação foi observada em outras nações de abolição tardia, como nos EUA. No estado norte-americano do Alabama, apenas 1% da população carcerária era negra em 1850. 5 anos depois, mais próximo do fim da escravidão no país, que viria em 1865, esse índice explodiu para 75%, chegando a 85% no fim da década de 1880. Reflexos da 13ª Emenda que, apesar de abolir a escravidão negra, possibilitou a exploração do uso da mão de obra de prisioneiros3.

No Brasil, este controle penal e judicial sobre pessoas negras se aprimoraria ainda mais durante a Velha República. Marcado por teorias eugenistas e supremacistas brancas, este período veria o intenso uso de princípios racistas para legitimar leis absurdas com claras intenções de controle sobre camadas específicas da população. O primeiro Código Penal Republicano de 1890, por exemplo, manteve a criminalização da vadiagem, delito que consistia, basicamente, em não ter emprego, renda e domicílio fixo. Isso num período em que pessoas negras acabavam de sair do regime escravocrata para uma sociedade que não as acolheu com políticas de moradia ou emprego. Para se ter uma ideia do peso desta legislação, em São Paulo, entre 1892 e 1916, mais de 80% das detenções realizadas foram por vadiagem4.

Outros artigos penais da época faziam menção ainda mais direta ao controle da população negra, como a criminalização da “capoeiragem”, podendo ser punida com até 6 meses de detenção. A criminalização da “magia” e do “espiritismo” eram, também, um duro golpe às religiões de matriz africana. “Termos de bem viver” assinados por Juízes de Paz e Delegados exerciam de forma intensa o controle sobre todos estes comportamentos e eram uma constante ameaça a negros e negras em qualquer cidade do país.

O que se percebeu no Brasil, portanto, é que nossa elite branca “preparou o terreno” para que a abolição da escravidão não enfraquecesse a estrutura racista que lhes garantia poder. Não só o fim do regime escravocrata não fora acompanhado de políticas de inclusão referentes à moradia, terra e trabalho, como ele ainda acabou sucedido por novos mecanismos institucionais de controle sobre as populações trabalhadoras e negras, como as polícias militarizadas que se consolidariam na virada para o século 20 e as práticas judiciais que levaram ao superencarceramento, ambas observadas até os dias de hoje.

Atualmente, de forma completamente desproporcional ao total da população, estima-se que cerca de 2/3 dos presos no Brasil sejam negros. A Lei de Drogas tem se tornado uma espécie de “salvo-conduto” para as polícias agirem rotineiramente em comunidades pobres e majoritariamente negras, e a condenação por tráfico baseada única e exclusivamente na palavra dos policiais já virou a regra para o Judiciário brasileiro.

O fator racial também continua presente: em São Paulo, um estudo de 2017 que analisou 4 mil sentenças já demonstrou que pessoas brancas têm mais acesso a penas alternativas. Também mostrou que pessoas negras precisam de quantidades muito inferiores de drogas portadas para serem consideradas traficantes, ao passo que réus brancos conseguem ser enquadrados apenas como usuários com maior facilidade, mesmo portando maiores quantidades de drogas5.

Números e fatos que explicitam aquilo que já é claro: no Brasil, sentenças racistas como a da juíza paranaense não são frases retiradas do contexto, mas apenas mais um dos muitos capítulos da história de 500 anos de racismo estrutural brasileiro.


1 CHALHOUB, Sidney. The precariousness of freedom in a slave society (Brazil in the nineteenth century). International Review of Social History, v. 56, p. 405-439, 2011.

2 KOERNER, Andrei. Habeas Corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo: IBCCrim, 1999.

3 THOMPSON, Heather Ann. The racial history of criminal justice in America. Du Bois Review: Social Science Research on Race, v. 16, p. 221-241, 2019.

4 KOERNER, Andrei. Habeas Corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo: IBCCrim, 1999.

5 https://exame.com/brasil/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/

*Advogado e estudioso de Políticas de Segurança Pública

Cela superlotada de prisão em Vila Velha (ES), em 2009. Foto: Wilson Dias, Agência Brasil

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