Na Revista Cult
Publiquei na edição de maio da Cult o artigo Pandemia: a antítese entre sociedade e mercado. Retomo o tema à luz do que ocorreu nesses últimos três meses. Naquele artigo citei Rousseau que, a propósito de uma catástrofe natural, o terremoto de Lisboa em 1755, disse que a maior parte dos nossos males são sociais e não naturais. A humanidade não vive a salvo de desastres naturais, mas as consequências não são necessariamente obras da natureza. Elas se distribuem desigualmente e é a estrutura social que determina quem sofre, quem morre, quem tem sua vida destruída.
No artigo, também cito o terremoto de São Francisco de 1989, de intensidade 7,1 graus na escala Richter, que causou a morte de 63 pessoas e deixou cerca de 3.700 mil feridos. Em comparação, o terremoto de Porto Príncipe de 2010, magnitude 7 na escala Richter, deixou 300 mil mortos e mais de 300 mil feridos. Dez meses depois, uma epidemia de cólera matou nove mil pessoas. A natureza não pode ser responsabilizada pelas mortes a mais em Porto Príncipe ou pelo 1,5 milhão de pessoas que lá ficaram desabrigadas. Isso é obra humana.
A hipótese mais aceita para a origem do coronavírus é o comércio de animais selvagens na China. Teria saltado dos morcegos para os humanos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os primeiros casos na China apareceram em dezembro de 2019, dois meses antes de a doença se espalhar pelo planeta. O país teve cerca de 84 mil infecções e apenas 4.600 mortes. Os Estados Unidos têm até agora 4,3 milhões de infectados e 150 mil mortos. No Brasil, há aproximadamente três milhões de infecções e 100 mil mortos. Essa diferença não vai para a conta do morcego. Deve-se à desigualdade, a um modo de vida em que o mercado é a racionalidade hegemônica e – produto arrasador de 40 anos de neoliberalismo – ao entorpecimento da consciência da massa pela ideia de que não há sociedade, mas indivíduos que lutam por seus interesses, como acreditava Margaret Thatcher. Ou, como disse Marx certa vez, a uma estrutura em que indivíduos são “mônadas dobradas sobre si mesmos”.
Vejamos como um fato da natureza transforma-se em catástrofe social tomando o município de São Paulo como exemplo para evitar que disparidades regionais contaminem as conclusões. Aqui, o prefeito e o governador (antes do seu plano arco-íris) apareceram inicialmente como heróis do combate à pandemia. O que, em contraponto com o genocida Jair Bolsonaro, não era exatamente um grande feito.
Em 23 de março, a capital tinha 477 casos confirmados e 30 óbitos. A quarentena foi decretada em 24 de março. Funcionavam apenas os serviços essenciais de alimentação, abastecimento, saúde, bancos, limpeza e segurança. No final de maio, João Doria apresentou seu plano de fases coloridas que não era um “relaxamento” da quarentena, mas o fim gradativo dela. Com sua linguagem pomposa e pernóstica, apresentou a proposta como um “monitoramento e ajuste fino regional”, tudo “seguindo a orientação da ciência, da medicina e da saúde”. Punha-se de maneira dissimulada na mesma esfera de Jair Bolsonaro, permitindo que a capital reabrisse shoppings, atividades imobiliárias, comércio e concessionárias. Enquanto Bolsonaro defendia às claras o fim do isolamento social – fascistas normalizam a loucura moral –, o outro aparecia como representante de uma burguesia ilustrada que sabe ser oblíqua. Ambos a serviço do mercado.
Nessa trajetória paulistana de fechamento à abertura, de março a agosto, passamos de 477 casos e 30 óbitos no dia 23 de março para cerca de 246 mil infecções e mais de 10 mil óbitos no dia 8 de agosto, segundo boletins da prefeitura de São Paulo. Vejamos mês a mês, tomando aleatoriamente o dia 15 para efeito de comparação. Infecções e mortes, respectivamente, em 15 de abril: 8.024 e 563. Em 15 de maio: 37.106 e 2.695. Em 15 de junho: 100.627 e 5.703. Em 15 de julho: 179.850 e 8.510. Em 8 de agosto: 246.650 e 10.172. Considerando as subnotificações, podemos multiplicar isso tudo por algum número que não se pode saber ao certo.
No período de 15 de maio a 15 de julho, desde o fim do isolamento, passamos de cerca de 37 mil casos para cerca de 179 mil, com a reabertura de shoppings, imobiliárias, comércio e concessionárias de carros. Agora, já são 246 mil casos. João Doria e Bruno Covas jogaram centenas de milhares de trabalhadores nas ruas, nos transportes coletivos e em contato com a população em geral, em situação de vulnerabilidade, provocando o agravamento da pandemia.
Quem precisa de shoppings abertos? Quem precisa comprar carros? Quem precisa comprar imóveis agora? Quem não pode esperar alguns meses para ter carros novos, perfumes, roupas de grife e sapatos de 800 reais? A elite empresarial – com seus interesses econômicos e sua ânsia desenfreada por lucros – e os consumidores da classe média para cima. Qual a lógica de fechar a cidade com 477 casos e prosseguir na reabertura quando se atingem 246 mil?
A Unifesp fez uma pesquisa sobre desigualdade e vulnerabilidade na pandemia e concluiu que regiões com mais presença de autônomos e pessoas que usam transporte público têm mais mortes do que regiões em que pessoas usam mais carros, são empregadores ou profissionais liberais. O responsável pelo estudo, Kazuo Nakano, foi taxativo em entrevista à Folha: “de uma maneira bem contundente estão acontecendo mais mortes onde você tem mais viagens de transporte coletivo, de ônibus, trem e metrô”.
O que todos os especialistas com um mínimo de comprometimento com a ciência e a razão afirmam é que, não havendo vacina ou qualquer antiviral eficaz, a única maneira de enfrentar a pandemia é o isolamento. Mas a própria estrutura do capitalismo inviabiliza isso porque somente uma porcentagem ínfima no topo da pirâmide é capaz de se proteger desse modo. Além do mais, temos uma das burguesias mais estúpidas do planeta (de que Bolsonaro e Doria são legítimos representantes), incapaz de ver seus interesses estruturais de classe. Se conseguisse raciocinar além do balanço mensal, os danos teriam sido atenuados. Além disso, 40 anos de hegemonia neoliberal deixaram marcas na ideia de consciência social e de solidariedade, transformando cada vez mais os indivíduos em mônadas dobradas sobre si mesmas. De qualquer forma, o capitalismo será sempre incompatível com a totalidade e com a ideia de uma humanidade em que todos possam ser igualmente protegidos por direitos.
A culpa não é do morcego. É do capitalismo. Comecei com Rousseau e termino com Rousseau, citado por Marx em Sobre a questão judaica (1844): “quem se propõe a tarefa de instituir um povo deve transformar a natureza humana (quer dizer, o homem em seu estado natural) de um todo perfeito e solitário a parte de um todo maior, de substituir a existência física e independente por uma existência parcial e moral. Deve ser despojado de suas próprias forças para que receba outras, que lhe são estranhas e das quais só possa fazer uso com a ajuda de outros homens”.
Substituir a “existência física” por uma “existência moral” expressa em outras palavras que o mercado não é sociedade. Quando a “existência física” deriva para a loucura moral, passamos para o fascismo, a forma mais perversa de capitalismo. É o capitalismo, com eventuais derivações fascistas, que está nos matando. Não o morcego.
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MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
Cemitério de Manaus. em maio 2020. Alex Pazuello /Semcom /Fotos Públicas