Sara Winter divulgou dados da menina nas redes sociais e instigou protesto em frente ao hospital onde o aborto seria realizado
Por Lays Furtado, na Página do MST
No último domingo (16), mesmo após a investida de ataques de fundamentalistas, a menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio em São Mateus, no Espírito Santo, pôde, finalmente, realizar o aborto legal. Para acessar esse direito, garantido pelo Código Penal Brasileiro, precisou ser levada para Recife (PE), no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros – CISAM, após o procedimento ter sido negado no Hospital Universitário de Vitória. Em nota, seus advogados declaram que a mesma passa bem e está sendo assistida pela família.
Antes mesmo da criança ser levada do Espírito Santo a Pernambuco, a criança e sua família foram assediadas por fundamentalistas conservadores em sua própria casa depois da divulgação do endereço nas redes sociais. Os agressores tentaram convencer a avó da vítima a não autorizar a interrupção da gravidez. “Se esse assédio foi feito mediante algum tipo de ameaça, isso também configura delito. E tanto nessa situação quanto na exposição dos dados pessoais na Internet, cabe uma responsabilidade civil, de indenização por dano moral”, explica Maíra Zapater, professora de Direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Durante o abortamento, os dados pessoais da vítima de estupro e o local onde foi feito o procedimento cirúrgico também foram divulgados nas redes sociais, o que levou a movimentos fundamentalistas protestaram em frente ao CISAM, chamando a vítima, inclusive, de “assassina”. Estiveram no local parlamentares contra o aborto, incitadas pela deputada estadual Clarissa Tércio, ao lado do vereador Renato Antunes do PSC, apoiados pela vereadora Michelle Collins, como também pelos deputados estaduais Joel da Harpa e Cleiton Collins, todos do PP. Além da ex-deputada e pré-candidata a vereadora do Recife Terezinha Nunes (MDB).
Por outro lado, militantes feministas e grupos de apoio em defesa da garantia da interrupção da gravidez se contrapuseram frente ao protesto dos que tentavam impedir o procedimento e forçar a criança a levar a gestação após ter sofrido consecutivos estupros desde os 6 anos de idade.
Informações sobre a criança foram vazadas
Uma das pessoas que expôs informações sigilosas do caso nas redes sociais, foi a bolsonarista Sara Fernanda Giromini (conhecida como Sara Winter), líder da milícia armada “300 do Brasil”, que quer o extermínio da esquerda. Ela se tornou alvo de investigações, após executar ataques antidemocráticos ao país, pedindo intervenção militar, o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso, com a tomada de um novo AI-5 – o que fere a Constituição Federal. Na ocasião, a bolsonarista cumpriu prisão temporária de 10 dias, após abertura de inquérito a pedido do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, para apurar “fatos em tese delituosos”. Sara também é investigada por outros crimes em uma apuração sobre fake news, conduzida pela Polícia Federal. Ela chegou a ser presa, mas agora cumpre medidas cautelares, como uso de tornozeleira eletrônica.
Segundo especialistas em matéria de direitos, Sara pode voltar à prisão pelos crimes cometidos ao divulgar informações que ferem os direitos da criança sobrevivente de estupros. Por violar a preservação da identidade da mesma, por causar inseguridade à integridade da própria vítima, incitando publicamente desobediência civil frente a uma determinação da Justiça, que autorizou o aborto legal como e com a garantia de proteção à criança grávida.
Ana Paula Freitas, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), concorda que o ato de Sara poderia ser considerado incitação à violência, ao instigar as pessoas, com um discurso de ódio, a irem até o hospital para cometer atos que violam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e negam à menina o tratamento médico, assegurado por direito.
Para Celeste Santos, que coordena Avarc, programa de atendimento à vítima do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), atos como o de Sara, de constrangimento da vítima, têm um fator agravante. “É um ato de censura pública à vítima, que desestimula que outros estupros sejam denunciados. Estima-se que só 2% das meninas vítimas de estupro denunciem o crime”, diz Santos. Ou seja, é algo que, em última instância, beneficiaria criminosos, como o que estuprou a menina de 10 anos.
Já o advogado Guilherme Nostre tem uma visão mais restrita em relação à ação da moça, embora concorde que Sara possa ter cometido crimes contra a honra, tanto da menina quanto dos médicos que chamou de “aborteiros”, e, aos quais, prometeu processá-los até o “último fio de cabelo”. Para Henrique Rocha, advogado especializado em Direito Digital, “essa exposição gera danos à imagem e pode ser considerada crime contra a honra da criança e de sua família”, afirmou.
A bancada do PSOL na Câmara dos Deputados protocolou, nesta segunda-feira (17), uma representação no Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) contra Sara Giromini, solicitando a investigação e apuração de suas responsabilidades com imediata tomada de depoimento para que ela revele de que forma teve acesso aos dados sigilosos da criança que, neste caso, não se trata de “perseguição à liberdade de expressão”, argumento geralmente usado por aqueles que disseminam discursos de ódio nas redes sociais.
Lei de proteção de dados é necessária
“Esse caso é paradigmático porque é hediondo em todos os aspectos”, afirma Sílvia Chakian, promotora de Justiça do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID) do Ministério Público do Estado de São Paulo. No entanto, ela explica que, como não há no Código Penal algo que contemple especificamente a “divulgação de dados pessoais de criança vítima de violência sexual”, cabe ao Ministério Público Federal apurar cada violência ocorrida no caso e encontrar as tipificações legais para elas.
“Estamos em vias de ter aprovada no Brasil uma Lei de Proteção de Dados Pessoais que contemplaria esse caso, porque conta com um capítulo específico para o tratamento de dados de crianças e adolescentes”, lembra Henrique Rocha.
Essa lei, que deveria entrar em vigor precisamente no dia 16 de agosto, mas cuja efetivação foi adiada pelo Congresso devido à pandemia do novo coronavírus, aponta que o tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e, em destaque, dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal.
O caso trouxe novamente à tona o debate sobre a responsabilidade das empresas de redes sociais na disseminação de discursos de ódio e em suas consequências para além do mundo virtual, debate “urgente” no país. “Essas plataformas permitem que essas publicações eternizem essa violação aos direitos da criança. Elas não fazem o filtro do que pode ser postado ou não e, em casos como esse, isso traz consequências a longo prazo para a vítima. Nunca vi divulgarem nome e endereço de uma criança vítima de violência sexual”, comenta Silvia Chakian.
A filósofa e escritora Djamila Ribeiro, que, junto com três coletivos negros, entrou com uma representação no Ministério Público Federal contra o Twitter por permitir discurso de ódio na plataforma, explica que essas empresas não são responsabilizadas judicialmente porque vendem-se como empresas de tecnologia e não empresas de mídia, não podendo, portanto, responder pelo conteúdo veiculado nelas.
“É muito injusto esperar que a pessoa que se sentiu ofendida por uma determinada publicação entre com uma ação legal, quando, na verdade, são essas plataformas que disseminam e lucram com discurso de ódio. Por que o YouTube não derrubou o vídeo de Sara Winter, por exemplo? Ela é uma pessoa que não deveria nem ter perfil”, afirma Ribeiro. A filósofa considera o caso da menina de 10 anos emblemático pela violação de direitos e diz que ele revela a urgência desse debate no Brasil. “Essa criança foi vítima do tio estuprador, do Estado brasileiro e dessas plataformas”, afirma.
Por meio de liminar, as plataformas Google, Twitter e Facebook foram acionadas para retirem de suas plataformas as publicações que expõem os dados da vítima. Na noite desta segunda (17), as contas da extremista bolsonarista foram suspensas das redes sociais. De acordo com a mensagem mostrada no perfil @_SaraWinter no Twitter, “a conta foi retida no Brasil e em todo o mundo, em resposta a uma demanda legal”. Fontes da Defensoria Pública do Espírito Santo confirmaram os vídeos em que ela divulga o nome, o Estado e o local em que a vítima seria atendida.
Os constantes atos contra à ordem já cometidos pela extremista miliciana já poderiam render sua condenação por múltiplos crimes. Em represália aos vazamentos de Sara, o grupo de hackers Anonymous Brasil publicou uma série de dados pessoais dela no Twitter, incluindo número de cartão de crédito.
Silvia Chakian ainda explica que quem divulgou a identidade da criança violou os Artigos 5 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que protegem os menores de “violência, crueldade e opressão” e garantem o direito à “preservação da imagem e da identidade”, respectivamente. “A pessoa, provavelmente servidora do Estado, que passou a terceiros a identidade e o local em que a menina estava, pode responder criminalmente por violar o Artigo 325 do Código Penal, que tipifica a violação de sigilo”, ressalta a promotora.
O caso já havia se tornado alvo de uma disputa política desde que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, usou as redes sociais para lamentar a decisão do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, após conceder à criança o direito previsto na lei brasileira de interromper uma gravidez fruto de um estupro.
Aborto no Brasil
No Código Penal Brasileiro, há duas situações em que se afasta a criminalização do aborto: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e no caso de gravidez resultante de estupro, desde que precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Considerando que se trata de uma criança de 10 anos de idade, a situação atende as duas previsões. Há duplo respaldo legal autorizando o procedimento, pois o prosseguimento da gestação decorrente de estupro coloca em risco a vida da criança grávida. Fazendo-se por via do aborto legal, a urgente tomada de medidas para a interrupção da gravidez o mais cedo possível, consistindo-se em obrigação do Estado para a garantia da proteção integral dessa criança.
O sistema internacional de Direitos Humanos já afirmou, reiteradas vezes, que as mulheres têm direito à realização segura do aborto não criminoso e que o Estado, nesses casos, tem o dever de garantir a sua prática de forma segura, eficaz e sem a interposição de obstáculos e exigências inúteis e ilegais que viabilizem esse direito. Segundo já afirmou o Comitê de Direitos Humanos da ONU, “os direitos reprodutivos das mulheres estão firmemente baseados nos princípios dos direitos humanos” e “negar acesso ao aborto não criminoso é uma violação dos direitos mais básicos da mulher”.
Enquanto o debate sobre a legitimidade da realização do aborto e a culpabilização recaída sobre a vítima não se esgotam, como se o corpo e a vida dessa criança fosse puramente um órgão de disputa de domínio público; o suspeito de estuprá-la e engravidá-la, seu tio, só foi preso ontem pela manhã (18), após mandado de prisão preventiva contra ele, expedido no último dia 12 de agosto, pela Justiça do Espírito Santo. Ele estava foragido pela polícia e foi encontrado em Betim, Minas Gerais. A informação foi publicada pelo governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB). O suspeito de 33 anos será encaminhado ao Complexo Penitenciário de Xuri, em Vila Velha, e sua identidade não foi revelada.
*Editado por Luciana G. Console
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Imagem: Charge de Gilmar – Cartunista das Cavernas