A Niterói de Iris e Alessandro desenha o mapa da segregação racial brasileira

Negros ainda não desfrutam completamente dos índices de qualidade de vida que fazem a fama da cidade. Índices de mortes pela polícia, expectativa de vida expõem fosso entre brancos e negros

por Felipe Betim, em El País

A nutricionista Iris Motta, 46, e o jornalista Alessandro Conceição, 37, moram em Niterói, município a 15 quilômetros da capital Rio de Janeiro que ostenta alguns dos melhores indicadores sociais e econômicos de todo o Brasil. Porém, ambos vivem realidades bem diferentes. É fim de tarde e, assim como algumas dezenas de pessoas, Iris se exercita no calçadão da praia de São Francisco, bairro de classe média-alta da cidade. As ruas estão impecavelmente limpas e uma viatura de polícia faz a segurança do local. “Morar aqui é ótimo, me sinto muito segura”, afirma Iris, que é branca e vive no Canal, bairro de classe média. Alguns desses serviços de qualidade até chegam no Complexo de favelas do Viradouro. Mas o cotidiano de Alessandro, que é negro, é cheio de armadilhas. “Em toda minha existência ocupar certos lugares significa sempre gerar muita desconfiança. Eu sei que os olhares vigilantes de policiais viram para mim”, conta. O rapaz vem convivendo desde 19 de agosto com uma nova ocupação da Polícia Militar em seu bairro, apesar de o Supremo Tribunal Federal ter proibido operações policiais nas favelas do Rio durante a pandemia de coronavírus.

O vizinho rico do Rio de Janeiro se orgulha de ter o sétimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais alto de todo o país. De acordo com o IBGE, o PIB per capita em 2017 foi de 55.000 reais no município, enquanto o país inteiro registrou pouco mais de 31.000 reais naquele mesmo ano. Mas a “cidade sorriso”, como ficou conhecida por causa de sua qualidade de vida, também retrata um Brasil que é profundamente racista. Essa é a conclusão que emerge do Mapa da Desigualdade da região metropolitana do Rio de Janeiro divulgado neste mês pela ONG Casa Fluminense. Em análise anterior feita pelo jornal Nexo a partir dos dados do IBGE e da Brown University, Niterói aparece como a cidade que mais segrega pela cor da pele do Brasil.

Violência policial contra os negros

Os índices que melhor ilustram essa realidade são os de violência urbana e policial. Em Niterói, 60% de todas as mortes violentas ocorridas em 2019 foram cometidas por agentes policiais do Estado do Rio. De todas as vítimas da polícia, 88% eram negras, de acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública analisados pela Casa Fluminense. O percentual chega a ser maior que em todo o Brasil (75,4%), na região metropolitana do Rio (79%) e na capital Rio de Janeiro (81%). Em números absolutos: a polícia matou 125 pessoas no ano passado em Niterói; 110 eram negras.

Esses índices ficam ainda mais alarmantes diante do fato de que na cidade os negros são minoria: representam 35,77% de toda a população, a menor proporção da região metropolitana, segundo o censo de 2010 do IBGE. Naquele ano, o percentual médio na região ficou em 52,78%. “Eu ainda moro no morro e convivo com assassinatos de vizinhos, de conhecidos e até de familiares”, conta Alessandro. Em 2007, seu irmão foi assassinado por agentes do Estado em Campo Grande, bairro da vizinha Rio de Janeiro. “Eu mesmo já acordei com a polícia dentro da minha casa com a arma na minha cabeça. Isso era recorrente”, conta.

O Comando de Operações Especiais da Polícia Militar vem realizando uma operação nas favelas do Viradouro, Igrejinha e Grota desde 19 de agosto. De acordo com a imprensa local, lideranças do tráfico de drogas local queriam impor uma taxa de 20.000 reais para que a prefeitura realizasse obras de infraestrutura. Alessandro explica que as melhorias “são muito interessantes, mas falta diálogo com a comunidade”. A operação teria começado a pedido do prefeito Rodrigo Neves (PDT), que se reuniu com o governador Wilson Witzel. “Já há algumas mortes. Também estão invadindo casas de moradores e moradoras, uma delas de uma moça que trabalha no posto de saúde. Arrombaram tudo”, relata o rapaz.

O EL PAÍS questionou a PM sobre essas acusações, além da legalidade da operação após a decisão do Supremo. A corporação se limitou a dizer a enumerar a apreensão de armas “além de duas prisões e quatro indivíduos feridos em confrontos socorridos para unidades de saúde”. Quando a operação começou, o coronel Sylvio Guerra, comandante do 12º BPM, afirmou que a ocupação da área vinha sendo planejada há um mês e contará com três fases, sendo que a última delas incluirá a instalação de cabines blindadas em pontos estratégicos.

Já a gestão Neves explica que a operação “faz parte da estratégia prevista no Pacto Niterói Contra a Violência”, que “completou dois anos este mês, quando os índices de criminalidade na cidade estão nos menores índices dos últimos 20 anos”. A prefeitura também destaca que os dados Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) apontam para uma queda de 90,63% no indicador letalidade violenta em junho deste ano, na comparação com o mesmo período em 2019. Ainda de acordo com a administração local, as obras de infraestrutura custarão 40 milhões de reais e devem começar ainda em agosto. Incluirão oito pontos de contenção de encostas, “além de reflorestamento, saneamento, drenagem, requalificação dos acessos, equipamento cultural, parque de inclusão social e esportiva e uma Plataforma Digital”.

Além das operações policiais nas periferias da cidade, Alessandro conta que ele e seus vizinhos vivem em estado de vigilância constante. “Tem essa coisa de que você deve continuar no seu lugar. Ir para o centro significa que você será perseguindo por ter o corpo negro”, argumenta ele, sobre a dinâmica da cidade. Ele conta ainda que muitos acabam evitando circular pelo centro ou por bairros luxuosos como Icaraí, que tem o melhor IDH de todo o Estado. “Se você não veio para trabalhar, então, por favor, não venha aqui”. Nos últimos dias, ganhou destaque no noticiário a prisão, no centro de Niterói, do jovem negro Danillo Félix Vicente de Oliveira, de 24 anos, sob acusação de roubo a mão armada. Numa segunda visita à delegacia, a vítima acabou reconhecendo Danilo em uma fotografia a ela apresentada. A família e a defesa protestam: dizem que a foto exibida era antiga, de 2017, quando ele nem tinha as tranças no cabelo (dreads) que exibe agora, e que nem buscaram as câmeras no local do roubo. “Prenderam só com a palavra da vítima. É um caso de racismo”, protesta a mulher dele, Ana Beatriz Sobral, ouvida pelo portal UOL. Ana Beatriz faz um abaixo-assinado na Internet para livrá-lo da cadeia.

Investimentos em cultura e saneamento

Já Iris não sabe o que é ser abordada pela polícia. “Não, nada nada nada”, responde, ao ser questionada sobre o tema. “Me sinto bem segura mesmo. Com esse programa de segurança presente, ficou melhor ainda”. Para ela, viver em Niterói é sinônimo de contar com muitas opções de serviços ao seu redor e principalmente de qualidade de vida. O estudo da Casa Fluminense corrobora essa percepção e mostra alguns índices dos quais os niteroienses mais se orgulham: é o único município em que 100% de seus 500.000 habitantes possuem abastecimento de água e 97,7% contam com esgoto coletado e tratado, de acordo com dados de 2018 do Instituto Estadual do Ambiente (INEA) usados pelo estudo —nove municípios da região metropolitana, como Japeri, possuem 0% de esgoto coletado e tratado por empresas de saneamento.

Além disso, a gestão Neves é a que mais investe em cultura na região: em 2018, destinou 1,55% de seu orçamento para o setor. “Temos o Museu de Arte Moderna, o Teatro Popular… Aqui a gente vê que as coisas estão em seus lugares. Limpeza urbana, iluminação, tudo”, diz Iris. As pessoas vivem em média até os 70 anos de idade, o que também torna a cidade com o maior índice de longevidade na região metropolitana, cuja média é de 66 anos —o do Brasil é de 65.

Na mesma cidade, porém, a diferença de idade média ao morrer entre brancos e negros é de 13 anos, a maior discrepância na região metropolitana verificada pelo estudo da Casa Fluminense. Isso significa que a população negra vive, em média, 57 anos. “Minha avó morreu com 72 anos, o que é bastante. Mas ela foi trabalhadora doméstica e sua vida inteira foi dedicada a cuidar de pessoas brancas”, conta Alessandro. “Ela cuidou de uma pessoa branca que morreu com 99 anos. Talvez minha avó pudesse ter vivido muito mais se não tivesse que cuidar de alguém que morreu com 99.”

Vitor Mihessen, um dos coordenadores do estudo, argumenta que, apesar de Niterói apresentar bons resultados, “quando a gente racializa os dados vemos que essa qualidade de vida não contempla a população como um todo”. No Brasil, essa diferença de idade média ao morrer entre brancos e negros é de oito anos; na região metropolitana do Rio é de dez anos. “As estruturas sociais determinadas para essa população definem quem vive e quem morre mais. É a consequência desse cenário amplo da falta de acesso a saúde, assistência, educação… Tudo isso está acumulado na idade média ao morrer”, acrescenta o coordenador.

Tragédias ambientais

Apesar de sua infraestrutura urbana bastante elogiada, Niterói também aparece como o campeão de tragédias ambientais na região metropolitana do Rio. A cidade registrou 188 óbitos entre 2010 e 2019 por causa de desabamentos de terra, tempestades e inundações, estando na frente de Petrópolis (108) e da capital (69). Alessandro e sua família foram uma das vítimas dos deslizamentos de terra mais conhecidos da cidade, ocorridos em 2010 no Morro do Bumba e em outras favelas da cidade após uma forte tempestade.

“A nossa casa no Complexo do Viradouro caiu e tivemos que morar com familiares. Eu fui morar com minha avó e minha mãe foi morar com a irmã. Então nosso núcleo familiar se separou a partir de 2010”, conta Alessandro, para quem a tragédia não é resultado apenas de uma catástrofe ambiental. Ele fala de “racismo ambiental”, uma vez que esses territórios de favelas são habitados sobretudo pela população negra que foi historicamente segregada espacialmente do espaço urbano. “As memórias são de desolação, de ficar despedaçado, sem teto e sem chão. São memórias de os bens materiais indo morro abaixo. E também deixamos de ter esse núcleo familiar”, explica Alessandro. “A gente precisa sempre estar reconstruindo a vida, sempre recomeçando do zero. Isso esgota, te deixa tenso, você não pode descansar nunca”.

Apesar de tudo, Alessandro reconhece que alguns serviços públicos estão bem estruturados mesmo para a população negra que mora nas favelas. “Algumas recebem mais investimento que outras, mas vejo a educação bastante universalizada. Na área da saúde, qualquer comunidade conta com médicos de família e funciona muito bem”. Ele também reconhece o trabalho da prefeitura no setor cultural, assim como o esforço de prevenção contra coronavírus nas periferias. “Ninguém aqui está dizendo que não existem índices maravilhosos em relação a esgoto ou qualidade de vida, mas a gente ainda vê que a população negra está morrendo mais. Seja por covid-19, seja em operações policiais. E essas mortes seguem a mesma lógica de extermínio da população”.

Questionada pelo EL PAÍS sobre o tema, a prefeitura de Niterói ressalta ter criado a Coordenadoria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Ceppir). “O organismo municipal possui um serviço de atendimento a pessoas vítimas de racismo e injúria racial, com orientação jurídica para encaminhamento aos órgãos competentes para a investigação, além da realização de campanhas para conscientização de direitos”, explica a gestão Neves. Também foi criado o primeiro Conselho Municipal de Igualdade Racial da cidade, com representantes do Governo e da sociedade civil para promoção e controle da execução de políticas públicas municipais na área da Igualdade Racial. A prefeitura destaca a sanção em 30 de julho da lei que regulamenta cotas para candidatos pretos e pardos nos concursos públicos do município, com uma reserva de vagas de 20%.

O comunicador social Alessandro Conceição participa de espetáculo no Complexo do Viradouro, em Niterói, em foto de arquivo.HUGO LIMA / ARQUIVO PESSOAL

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