O caso dos chiquitanos: O grito dos excluídos na Semana da Pátria Brasil

“Tudo se torna mais trágico, difícil e cruel quando o ‘bandido’ usa farda, pois se utilizam do aparelho do Estado para os seus crimes. E fica também mais perigoso mexer nisso, pois, atualmente no Brasil, o Governo Federal apoia e sustenta esse tipo de crime contra os indígenas e os pobres”, escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.

IHU On-Line

Para facilitar a compreensão, farei aqui um relato mais parecendo um diário de campo, diante da tragédia ocorrida na fronteira Brasil-Bolívia, no dia 11 de agosto de 2020.

No ano passado, fui com Saturnina Urupe Chue (Chiquitana da aldeia Vila Nova Barbecho – Mato Grosso) para 42ª sessão da Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas, em GenebraSuíça; e ela já denunciava os abusos contra seu povo: “Hoje somos ameaçados abertamente pelo presidente da República, que coloca em risco nossas vidas e a vida do nosso planeta!” Os Chiquitanos sofrem com a invasão do seu território e com o estabelecimento das fronteiras que passam no meio de suas aldeias. No caso da Vila Nova Barbecho, onde há décadas aguardam a demarcaçãoSaturnina diz: “Meu povo tem sido atacado e violentado gravemente. O governo do Brasil insiste em não reconhecer nossos direitos constitucionais sobre nossas terras. Muitos Chiquitanos já estão deslocados do território. São obrigados a viver fora, nas cidades não indígenas e abaixo de extrema vulnerabilidade.”

Não bastasse o longo conflito em que vivem o povo Chiquitano na fronteira, no dia 11 de agosto 2020, foram mortos na região de San Matías (Bolívia), [1] por agentes do Grupo Especial de Fronteira (Gefron), os indígenas: Paulo Pedraza ChoreEzequiel Pedraza TosubeYonas Pedraza Tosube e Arcindo Sumbre García, todos da comunidade San José de la Frontera [2] – e que foram identificados somente no dia seguinte, já no necrotério de Cáceres-MT.

Enquanto entidades ligadas aos Direitos Humanos e aos Povos Indígenas, nos organizamos no Brasil para dar assistência às famílias afetadas por uma tragédia na fronteira. Elas buscam justiça e reparação do Estado brasileiro, que retirou da comunidade quatro homens que providenciavam o sustento de suas famílias. Toda a aldeia San José de la Frontera, localizada no município boliviano de San Matias, estava dolorida. Melânia Pedraza Chore fez as intermediações para a nossa ida na aldeia, pois disse: “Paulo Pedraza Chore é meu irmão; Yonas Pedraza Tosube é meu sobrinho e afilhado; Ezequiel Pedraza Tosube é meu sobrinho também e Arcindo Sumbre García é meu cunhado. Estamos muito sofridos e a comunidade precisa de uma Missa…” E começou a chorar.

Na manhã desta quarta-feira, dia 02 de setembro de 2020, eu, Padre Aloir Pacini, membro do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e antropólogo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), fui com Soilo Chuê – irmão de Saturnina, mencionada acima – representando a Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), além de Lucio Andrade, representando a Ouvidoria das Polícias, Inácio Werner e Armando Júnior do Centro de Direitos Humanos de Cuiabá (Henrique Trindade) e Edson pelo CDH de Cáceres (Dom Máximo Bienès) nos encontrar com Dom Jaci e a Irmã Claudete, articuladora da Pastoral Indígena na Diocese de Cáceres, e com os parentes dos indígenas que foram brutalmente assassinados na fronteira. Juntos, fomos em visita à aldeia onde estão as famílias enlutadas, para levar 20 cestas básicas, apoio espiritual e jurídico.

O alcalde de San Matías, Fábio Alcaide Lopez (prefeito), nos recebeu na comunidade e afirmou que houve uma injustiça que precisa ser corrigida: “Estamos buscando uma solução pacífica, pois todo mundo comete erros e estamos sempre aprendendo. Acionamos os Direitos Humanos no Brasil para solucionarmos essa injustiça.” Soilo disse na sua apresentação: “Existem crianças que perderam os pais, esposas que perderam os maridos, pais que perderam os filhos!”

A Missa foi presidida pelo bispo de San Ignácio, concelebrada por padres brasileiros e bolivianos. O bispo de San Ignácio, juntamente com o pároco de San Matías mobilizaram-se para celebrar uma missa na aldeia com a comunidade enlutada e conosco que vínhamos do Brasil. [3] O monsenhor Roberto na homilia afirmou que é muito bom ter padres que escutam a voz de Deus e do povo e que o Espírito Santo o sequestrou para estar ali naquele momento. [4] Depois foi servido o almoço.

Mostramos, com essa visita, que a sociedade brasileira não está de acordo com a forma truculenta como a polícia brasileira agiu nesse caso. Por conta da quarentena, [5] tomamos os cuidados para evitar a infecção pelo corongo entre indígenas, pois, quanto menos brancos tiverem contato direto com esses povos, melhor.

Maria Natividad Chore Mejia falou que não estava ainda curada da dor da perda do esposo Pascoal Pedraza Soares e já tinha que suportar essa dor maior, porque morreu o filho, genro e netos sem precisão. Os familiares afirmam que os mesmos estavam caçando, atividade comum dos indígenas, quando foram mortos, sendo pessoas humildes da comunidade, sem qualquer vínculo com atividades ilícitas.

Fomos até o local onde ocorreu a execução dos indígenas pelo GEFRON. No chão duro, mesmo três semanas após o ocorrido, havia sinal de sangue espalhado. O local é aberto, e tanto os policiais como os caçadores estavam à pé. Segundo informações apresentadas pelo dono da fazenda, o Gefron, depois de ter feito a chacina, quebrou o cadeado da porteira e entrou com o carro para pegar os corpos e serem levados até o Hospital Geral em Cáceres.

Os quatro Chiquitanos foram levados para Cáceres e chegaram ao hospital regional – já sem vida. Relatam que uma assistente social testemunhou que um deles afirmara que eram inocentes, que não estavam fazendo nada de errado.

prefeitura de Cáceres conseguiu os caixões e, com doações e o Consulado da Bolívia, conseguiram o translado dos corpos dos Chiquitanos de Cáceres até sua comunidade, onde foram devolvidos às famílias ainda na noite do dia 12.

Os 4 foram sepultados um ao lado do outro, porque diziam: “Eram amigos, caçavam juntos e tiverem esse fim trágico juntos, melhor serem sepultados assim juntos…” Nos vídeos e reportagens divulgados, as famílias pedem justiça pois são quatro famílias que ficaram desamparadas e a dor da comunidade é sem fim.

No Boletim de Ocorrência feito pelo Gefron, na época dos fatos, não constam seus nomes, mas dizem que deram voz de prisão e estes teriam revidado “imediatamente com tiros” e, em meio ao tiroteio, os homens correram em direção à Bolívia. Não sabemos exatamente como ocorreram os fatos, mas o BO relatou que as vítimas eram traficantes e que os policiais apenas reagiram em meio a um tiroteio. Ao cessar dos tiros, os militares seguiram em busca dos fugitivos e teriam encontrado os quatro caídos no mato, “todos estavam com as armas ainda em mãos”. O que vimos e escutamos mostra que isso não corresponde aos fatos, porque os indígenas apresentavam nos corpos, indícios evidentes de tortura: dentes quebrados, perna quebrada, braço quebrado, tiros à queima-roupa, orelha cortada e costas arranhadas como se estivesse arrastado pelo chão.

A comunidade relata que os cachorros voltaram para casa sem seus donos, e deram o alerta para as famílias, no final de tarde do dia 11. As famílias foram procurar os desaparecidos e encontraram muito sangue próximo ao local onde cevavam os animais, muitos tiros no tronco de uma árvore, um estilingue e um tatu abatido. A espingarda 22, que era usada para a caça, o enxadão e o facão não foram encontrados, nem no local da chacina, nem junto com as armas que o Gefron afirma ter sido apreendida com os caçadores.

BO joga toda a culpa nas vítimas, os caracterizando como traficantes, armados (ilegalmente) e ainda que abriram fogo contra a polícia que se defendeu atirando. No entanto, não sabemos quantos policiais atuaram, nem o nome deles ou o tipo de arma. É necessário um inquérito mais profundo. Se eles estivessem já baleados, não necessitariam dessa crueldade posterior.

Diante das denúncias dos indígenas e da possibilidade de o Gefron ter extrapolado suas competências, além do fato em si de um massacre que abala a todos, o Governo Estadual também deve ser responsabilizado. Os Chiquitanos afirmam que fazem dois anos que a violência policial aumentou e é acobertada pelos governos, e as posturas anti-indígenas estão atingindo de modo mais dramático sua etnia, que vive num território com partes no Brasil e na Bolívia, sempre com a desculpa que são traficantes.

Houve outras mortes isoladas na fronteira : três (3) ou quatro (4) Chiquitanos de Las Petas foram mortos em circunstâncias ainda não esclarecidas no final de julho, no município de Porto Esperidião. Na terça-feira, dia 11 de agosto, outros quatro foram mortos por policiais do Gefron. Os relatos em vídeo e áudio nos quais seus parentes pedem justiça são chocantes. O canal Pantanal Comunicación é que me alertou, no dia 17, à respeito do acontecido e hoje, no Facebook [7], traz outra matéria sobre essa visita que fizemos.

Cristiane Martínez Ramos, viúva de Paulo Pedraza Chore falou: “Eu peço justiça porque ele saiu para caçar e nunca mais voltou. Quero que me ajudem com meu filho de oito anos, porque quem vai me dar comida ou o material para quando começarem as aulas?” Também a irmã de Yones Pedraza conta que ele levou quatro tiros e foi encontrado com uma orelha cortada e o rosto machucado. Em sua denúncia, é dura com os policiais: “Eles passam por aqui sem autorização. Nos tratam como animais!”.

Tudo se torna mais trágico, difícil e cruel quando o “bandido” usa farda, pois se utilizam do aparelho do Estado para os seus crimes. E fica também mais perigoso mexer nisso, pois, atualmente no Brasil, o Governo Federal apoia e sustenta esse tipo de crime contra os indígenas e os pobres.

As polícias haviam conseguido abafar o caso e estava difícil abrir o cerco. O Conselho Nacional de Direitos Humanos está acompanhando o caso, pois é preciso ir fundo nas investigações, apurar os responsáveis e encontrar meios de reparar, ao menos em parte os danos causados, pois os crimes já aconteceram. Todos estão com medo, por isso, depois de três semanas, nem inquérito policial foi feito ainda. Nada se sabe, nem quem eram os policiais do Gefron que estiveram envolvidos.

Fomos juntos conversar com a comunidade. Conseguimos mobilizar os bispos dos dois lados da fronteira para criar um fato público e não nos sentirmos tão frágeis. Agora é buscar soluções. Fomos bem acolhidos na comunidade que ansiava por esse auxílio. As polícias na fronteira já sabiam que estávamos indo lá para isso, e que o bispo e os padres da Bolívia também iriam.

Pelos depoimentos recolhidos, tudo indica que eram inocentes. Não havia nada que os associasse ao tráfico, estavam somente caçando onde costumavam caçar – numa “espera” onde cevavam os animais. Foram encontrados pelo Gefron e, provavelmente, torturados para contarem onde tinham a droga e, como não tinham nada, foram cruelmente torturados até a morte. Simplesmente horrível. As famílias estão chocadas.

O local fica em uma fazenda do lado do Brasil (localizado cerca de dois quilômetros da aldeia San José de la Frontera), que pedia para eles caçarem, pois os porcos estragavam as plantações. Assim, caçavam ali frequentemente.

Imaginem que precisaram torturar até a morte para pegar a droga! Todos os dados recolhidos mostram que o GEFRON está errado. Quanto mais rápido agirmos, melhor. Temos que, não só divulgar o fato e cobrar providências urgentes das autoridades brasileiras, mas também, ver medidas de proteção dos familiares que querem que se apurem os fatos, eventual exumação dos corpos – e ter respeitada a posição dos Chiquitanos quanto à isso.

Trata-se deu uma comunidade muito religiosa. Queriam rezar, tirar o peso, e foi muito bom também ir até o local onde aconteceu a chacina e ali pedir perdão aos céus pelo acontecido. Na necrópsia e sem exame de balística, os especialistas que viram os corpos, dizem que os tiros foram de perto e, depois de torturados, provavelmente gemendo de dores, foram mortos pelos tiros.

Vivemos num país homicida. Ocorrem em torno de 60 mil mortes violentas por ano. Mesmo países em guerra, não é tão grande a tragédia. O governo precisa aparelhar melhor os agentes de segurança e puní-los quando se excedem, e não criar um confronto com os Direitos Humanos, contra quem busca justiça.

A primeira coisa que estamos conseguindo é dar visibilidade aos fatos, e foi muito bom estar na comunidade para auxiliar a curar as feridas, sentiram-se apoiados. Vanda Vilas Boas, de Vila Bela da Santíssima Trindade assim se expressou:

Eu quero lhe agradecer pela tua presença aí junto à minha família por conta desse acontecido. Toda essa família é da minha parentela por parte de mãe. São parentes próximos. São meus primos, netos do meu tio – que é irmão da minha mãe. Isso é a prova de que o povo Chiquitano é um só em duas nações. Minha família é muito grande, tanto aqui no Brasil, quanto na Bolívia. Muito obrigada por dar esse apoio a minha parentela, padre.” (02/09/2020).

Para quem quiser acompanhar mais dados a respeito, ver o convite da live a seguir:

Notas: 

[1] Os indígenas estariam indo para um lugar de espera, às 14 horas do dia 11/08 onde cevavam os animais com sal e milho a fim de fazer uma caçada, cerca de 2 quilômetros da aldeia San José de la Frontera, próxima à cidade de San Matías.

[2] No dia 17/08 recebemos essa denúncia “Justiça para São José da Fronteira” pelo Pantanal de Comunicación com as informações detalhadas e depoimentos das famílias da comunidade de San José de la Frontera que afirmam que os quatro (4) Chiquitanos foram caçar e dizem que o Gefron os matou. Conferir aqui.

[3] Para termos mais segurança, fiz questão de termos o bispo de Cáceres e de San Ignacio, o padre de San Matías solidários a nós nesse momento, mas principalmente a comunidade sabendo que iríamos até lá e muita informação foi encaminhada por eles mesmos e assim tivemos uma comunidade junto conosco sem mais conflitos. Como são resilientes, eles várias vezes disseram que o pessoal do Gefron estava com medo que a comunidade iria lá colocar fogo como fizeram em Ribeirão Cascalheira depois que os policiais mataram o Padre João Bosco Burnier em 11/10/1976, mas os Chiquitanos foram lá dizer que não está neles esse tipo de violência, só querem justiça para os órfãos.

[4] Parentes de chiquitanos mortos pelo Gefron pedem justiça em missa. Ver aqui.

[5] Acesse aqui.

[6] O Gefron também é suspeito de matar a tiros o boliviano Vicente Tapeosi Masai, no dia 1º de julho, às 19 horas, no município de San Ignácio de Velasco. Por ser na Bolívia, o caso está sendo investigado pelo procurador Roger Mariaca, do Ministério Público da cidade de Santa Cruz.

[7] Acesse aqui.

Foto: Maria Natividad Chore Mejia, a Matriarca que perdeu o filho, o genro e os netos (Aloir Pacini)

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