Povo Kaingang vence batalha histórica no STF

Após longa batalha judicial, decisão da Suprema Corte não deixa dúvida: território Toldo Boa Vista, no Paraná, pertence aos indígenas

por Nanda Barreto, em Cimi

O povo Kaingang conquistou uma vitória histórica no Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada. No dia 28 de agosto, a corte reconheceu – por oito votos a dois – a ocupação tradicional da Terra Indígena (TI) Toldo Boa Vista, em Laranjeiras do Sul (PR). Embora declarada pelo Ministério da Justiça, a posse da área estava sendo questionada judicialmente desde 2012 por um proprietário rural da região. Em 2019, a comunidade recorreu ao STF para fazer valer seus direitos.

De acordo com Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e advogado do povo Kaingang no caso, o processo que pedia a nulidade da demarcação transitou em julgado sem que a comunidade tomasse conhecimento. “Não houve a citação da comunidade. Com base nisso, os indígenas entraram no STF com uma ação rescisória para desconstituir o processo”, explica Rafael, acrescentando que a conclusão do julgamento não deixa dúvida: a terra é indígena.

O advogado salienta que os povos indígenas são sujeitos plenos de direitos e precisam ser citados e ouvidos nos processos judiciais, como determina o artigo 232 da Constituição Federal. “É importante dizer que a Constituição Federal opera de forma retroativa, que vai ao passado resolver os problemas e vícios jurídicos. Atualmente, temos outras ações rescisórias no STF, semelhantes a esta, quatro delas com medida cautelar deferida – o que aponta novas vitórias nesse sentido”.

Próximos passos: pleno usufruto

Atualmente, 36 famílias vivem na TI Toldo do Boa Vista. A área possui 7,3 mil hectares. No entanto, a maior parte ainda está ocupada por não-indígenas. O cacique Cláudio Rufino Kaingang conta que a comunidade está celebrando o triunfo no STF. “Somos 170 pessoas aqui. Estamos muito felizes com esta decisão dos políticos. Foi uma batalha grande, mas valeu a pena”.

Para o cacique, o próximo passo é fazer com que os agricultores – que ocupam a maior parte da área – sejam realocados. “O nosso sonho é que possamos usufruir dos quatro cantos desta terra, para que a gente possa plantar e sustentar nossa famílias tranquilamente, mas para isso os agricultores precisam ser retirados. Hoje ocupamos apenas um pedacinho do nosso território”,  argumenta.

Segundo a liderança, a relação com os agricultores é tensa. “Já tivemos uma relação mais próxima, mas hoje não temos muita proximidade, inclusive já fui ameaçado por eles. Tem só dois fazendeiros que têm diálogo com a comunidade. A gente fica triste porque eles estão devastando a mata e acabando com a caça. Mas nós temos esperança de que a justiça será feita. Eu quero estar com meus filhos e meus netos e mostrar pra eles que toda nossa luta valeu a pena”.

Roberto Liebgott, coordenador do Cimi Regional Sul, explica que o caso relatado pelo cacique é recorrente em muitos territórios e destaca que o Cimi seguirá ao lado dos Kaingang até que todo o processo seja finalizado. “É necessário que o Estado supere a omissão e atue de forma contundente no sentido de garantir que os povos indígenas tenham direito à terra e que nelas eles possam então viver com dignidade, afastando-se da vulnerabilidade das rodovias e assentamentos improvisados”, pontua.

Embates no STF: Marco Temporal e Repercussão Geral

Rafael explica que o esforço do Cimi é para que sejam anulados todos os processos de contestação de demarcação em que os indígenas não foram ouvidos. “O êxito do povo Kaingang foi um passo muito importante nessa direção. Queremos que a Justiça revigore e cancele todos os processos que anularam demarcações com base na tese do marco temporal, que é uma tese muito controversa, defendida pelos ruralistas”.

A tese do marco temporal corre no STF e defende que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988 – dia em que  entrou em vigor a Constituição Brasileira. Os indígenas, no entanto, sustentam que têm direito “originário à terra” por estarem aqui antes da criação do estado brasileiro. Além de uma forma de garantir o sustento, para os indígenas, os territórios também são uma maneira de conexão com a antepassados, de manutenção da sua cultura e conservação da biodiversidade.

No ano passado, admitindo que precisa definir uma posição sobre o tema, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, processo que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Isso significa que a Suprema Corte utilizará o julgamento deste caso específico para fixar uma tese que servirá de referência para todos os processos envolvendo demarcação de terras indígenas no Brasil.

Povo Kaingang reivindica direitos em Brasília Foto: Guilherme Cavalli

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