‘A gente percebe a mata diminuindo de forma perversa, aos pouquinhos’

Proprietária de RPPN alerta: pandemia é mais uma evidência da urgência de proteger as florestas

Por Fernanda Couzemenco, Século Diário

Imersas em contagem de mortos e contaminados, em monitoramento da evolução da velocidade de transmissão do vírus em sua cidade e em elucubrações sobre como manter a saúde física, mental, emocional e financeira em meio à pandemia de Covid-19, as pessoas, das mais variadas idades e contextos socioeconômicos, têm dedicado pouca atenção à dimensão ambiental da tragédia, apesar de sua origem vir, ao que tudo indica, de um crime ambiental infelizmente muito comum nos quatro cantos do mundo, que é a caça ilegal de animais silvestres. Como ocorreu com os vírus causadores de hepatite, ebola, HIV, febre amarela e tantas outras arboviroses devastadoras para a espécie humana ao longo das últimas décadas, o novo coronavírus, batizado de SARS-CoV-2, chegou aos corpos humanos por meio de interações antiecológicas – e mesmo antiéticas, sob uma perspectiva não antropocêntrica – com animais selvagens. 

“Animal silvestre é animal silvestre, nós não domesticamos”, afirma a escritora e arte-terapeuta Renata Bomfim, ambientalista e proprietária da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Reluz, em Marechal Floriano, região serrana do Estado. “Nós não tocamos nos animais, nossa interação, nesses treze anos, não passa disso: a gente coloca bananas pra eles na beira da mata, eles comem e voltam para a mata. A gente sempre teve esse cuidado”, relata, ao narrar um dos tantos vídeos postados nas redes sociais da RPPN onde os macacos se alimentam das frutas ofertadas por ela e o marido.

O espetáculo acontece sempre que os macacos precisam atravessar a reserva pra chegar até o rio e matar a sede. A beleza e a emoção, no entanto, são acompanhadas da constatação de que a Mata Atlântica continua sendo espremida por plantios comerciais diversos.

“Na nossa reserva, nós fazemos parte de um cinturão de mata, que já está se extinguindo porque as pessoas estão construindo na beira da mata, vão cortando na beira das matas. No outro lado é só plantação de eucaliptos e bananas. Os animais não têm acesso à plantação de bananas, então a nossa reserva virou uma espécie de corredor que eles usam pra chegar no rio”, descreve.

“Mas a situação deles é muito precária, o cinturão de matas vai diminuindo a cada dia. E diminuindo de uma maneira muito perversa, porque vai tirando aos pouquinhos e aumentando a plantação, principalmente de eucaliptos. A gente vai observando que a mata que existia está menorzinha, menorzinha, e quando vê, não tem mais nada. A gente que olha e enxerga, vê tudo isso”, lamenta.

Para além da redução da segurança na manutenção de serviços ambientais fundamentais, como produção de água, solo, ar puro e microclima saudável, as florestas também são os maiores bancos genéticos para todos os reinos viventes no planeta, desde os grandes mamíferos, passando por toda as formas vegetais e chegando à infinidade de microrganismos essenciais aos equilíbrio dos ecossistemas, incluindo os vírus e bactérias que, ao atravessarem as fronteiras das espécies, podem, por vezes, provocar tragédias humanas da magnitude da pandemia de Covid-19. 

Tatu e hanseníase
“O Ibama já alertou sobre isso, inclusive sobre uma bactéria que está acometendo as pessoas com a caça do tatu”, conta Renata. De fato, no Espírito Santo, também já foram identificados tatus com a bactéria causadora da hanseníase, assim como em vários países do continente americano, conta o virologista e professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Edson Delatorre.
“Há evidências em diferentes frentes de que os tatus apresentam uma prevalência da infecção significativa para hanseníase: 62% em um estudo feito no Pará e 10,6% no estudo do Espírito Santo, o que indica que a doença circula nos animais e que eles poderiam funcionar como reservatórios”, explica.

“Essa relação entre tatus, pessoas e hanseníase vem sendo estudada nos Estados Unidos desde a década de 1970 e em diferentes estudos se notou uma maior prevalência da hanseníase em pessoas que tinham reportado contato direto ou indireto com tatus, indicando um alerta para o risco de transmissão entre os tatus e seres humanos”, conta o pesquisador.

O contato direto, explica, se dá por meio da caça e da manipulação do cadáver do animal para o consumo da carne, e o contato indireto ocorre quando a pessoa circula por locais onde há tatus infectados. “A bactéria pode estar no solo e em tubérculos onde os tatus estiveram”, diz, citando um trabalho em que 90% das pessoas contaminadas com hanseníase haviam tido contato direto ou indireto com tatus.

No início de agosto deste ano, o médico sanitarista e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonçalo Vecina, afirmou, em entrevista à GloboNews, que o desmatamento na Amazônia pode levar a outras epidemias, como a da Covid-19, pelo fato de a floresta abrigar muitos outros vírus.

Mais florestas e menos monoculturas
“Nós temos que estar cuidando disso desde agora. E cuidar disso significa identificar esses agentes o mais cedo possível e desenvolver remédios e vacinas”, alertou, repercutindo declarações feitas na ocasião pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que havia recuado da proposta de diminuir a meta de preservação da Amazônia. O mesmo ministro que, em maio, declarou, em reunião dos ministros do presidente Jair Bolsonaro, de que era o momento ideal para “passar a boiada” sobre a Amazônia, aproveitando o momento em que a atenção da imprensa e da sociedade estava voltada para a pandemia.

 Na Mata Atlântica, provedora de serviços ambientais pra cerca de três quartos da população brasileira, apesar da maior devastação, a riqueza genética que ela ainda abriga – o bioma é um dos 34 hotspots do mundo: as áreas mais ricas em biodiversidade e mais desmatadas do planeta – envolve, certamente, segundo afirmam os pesquisadores e os estudos já feitos, além de belezas, potenciais medicamentos e alimentos, também muitos patógenos humanos em potencial.

O Espírito Santo patina, historicamente, na ausência de políticas públicas efetivas de proteção das florestas, que hoje cobrem apenas cerca de 12% do território, onde as pastagens são a principal forma de uso do solo, seguidas de outros monocultivos, como eucaliptos, café e cana-de-açúcar, que continuam se expandindo sobre a paisagem e reduzindo as fontes de água e vida. Até quando?

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